domingo, 2 de agosto de 2020

Les enfants du dimanche...

"Um homem não sente dificuldade em caminhar por uma tábua enquanto acredita que ela está apoiada no solo; mas ele vacila - e afinal despenca - ao se dar conta de que a tábua está suspensa sobre um abismo..."
Abu Ali Hufeine Inne Sina 
(Avicenna) 

Mesmo para quem está solto, em suposta liberdade, os domingos à tarde são terríveis, e em qualquer lugar do mundo. Esse silêncio, esses espaços vazios, esse cheiro de pó de arroz, de incenso e de mirra, ou mesmo de naftalina nos elevadores, e essas cantigas ébrias que nos chegam das meninas que sobrevivem das mucosas, no desterro das sobre-lojas e das quitinetes, mesmo neste dia santo, ou da meta-linguagem dos bêbados ou dos lamentos dos corais evangélicos... São um horror! 
O mendigo K. tem uma teoria própria (pesquisa randomizada!!!) sobre o assunto e atribui essa espécie de melancolia, ao catolicismo. 
Aos sinos! Os badalos da igreja já as 8 da manhã ou, pior, na hora da Ave Maria e da missa das 19:00, para onde acodem dezenas de velhinhas de preto, quase todas viúvas, com seus véus, também pretos, por sobre os cabelos e as orelhas e com aquele livreto de Salmos com capa de madrepérolas bem apertado junto às mamas disfarçadas. Senhoras que vão em seus passinhos curtos e religiosos movendo os lábios e que, ainda antes de subir os degraus da igreja já começam a cantarolar os adágios do Miserere mei... Isso tudo, somado ao início das trevas da noite; aos lamentos solitários dos bêbados nas escadarias das feiras; ao lero-lero dos casais se amaldiçoando mutuamente por bagatelas; à pressa das domésticas em trancar as portas e as janelas (com medo dos ladrões, dos íncubos e dos extraterrestres), criou na mente das crianças de todo mundo (os filhos do domingo!), esse sentimento meio melancólico e quase de pânico e de apocalipse. Sem falar dos besouros, dos morcegos e dos mosquitos que, como as mulheres do livro com capa de madrepérola, começam a aparecer na hora do crepúsculo, a dar voltas e mais voltas ao redor dos lampiões e das luzes de 40 watts, numa agonia sem fim. E sem esquecer do ronronar das pombas no interior das cornijas das casas. De um ou outro idiota voltando alquebrado e cabisbaixo de um estádio, com uma bandeira ensanguentada em punho. E não há solução! Por mais que o dia tenha sido repleto de aventuras, de promessas e de ilusões, de churrascos, de bebedeiras, de tiroteios, de seduções, de banquetes, de elogios e de mentiras mútuas e de leituras, nada impede que os presságios daqueles tempos emerjam. E por falar em leituras, estirado ao sol das 10, ao lado de meio  cálice de Vermouth, me aventurei num libreto de Mark Twain (Un majestueux fóssil littéraire), desse sujeito que, curiosamente, nasceu no dia 30 de novembro de 1835, dia da passagem do cometa de Halley e que morreu no dia 21 de abril de 1910, dia em que o cometa Halley reapareceu.
Mas não me perguntem do que trata o tal livro, porque, como vocês podem ver, está em francês, e desse idioma, já não sei mais do que cinco ou seis palavras. Vou correndo os olhos pelas páginas, pelas linhas, pelas palavras, pontos e virgulas, fingindo entender alguma coisa, mas, na verdade, inventando a história que quero. Sou o típico leitor e tradutor da pós modernidade e da pós verdade.

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