sábado, 30 de abril de 2022

Em busca de um cineasta...

  "O CINEMA é a arte de representar de maneira atraente, em duas dimensões, as coisas de que estamos fartos em três..."(Freire)




 

 Se você é ou tem pretensões de ser um cineasta, existe um conto na nossa literatura que daria um filme estupendo. Não sei como é que até hoje não o fizeram. Trata-se de um conto breve, de umas seis páginas, escrito por Euclides da Cunha. Uma maravilha! Título: JUDAS-AHSVERUS. Um texto estupendo que coloca em cena  a malhação de Judas, Ahsverus (o judeu errante) e os seringueiros do Alto Purus, na Amazônia, num sábado de Aleluia.

Um filme que pode ser feito em duas três semanas, sem os delírios, as frescuras e as mistificações habituais de estar lidando com pavões bipolares da "SÉTIMA ARTE" e sem desviar os também habituais milhões de quem, na maioria das vezes, nem sequer gosta de perder tempo num barracão sem janelas, com cheiro de pipocas e a media-luz......




quinta-feira, 28 de abril de 2022

O Bolsonaro, o Papa & a sogra...

  "O importante é que a sogra e a nora não se comportem como dois cachorros brigando pelo mesmo osso".  Papa Francisco (ontem)





Ouvir o Bolsonaro falando em "Liberdade de expressão" e o Papa falando sobre "Relações familiares", é mais ou menos como ouvir um eunuco dando lições sobre o Kamasutra. E pior, parece que não se trata apenas de demagogia, mas de um desmazelo linguístico... O Mendigo K, que estava fantasiado de palhaço e que discutia essas questões com seu bando, ali na padaria da esquina, repetiu várias vezes aquele ditado + ou - popular: "Sapateiro, não vá além das sandálias!"

Enquanto isso, no Parlamento inglês, estão acusando uma das deputadas de, durante as sessões, sentada diante do Boris Johnson, para obnubila-lo ainda mais, ficar dando aquela cruzada de pernas que, se o cara ainda tem testosterona e uma boa visão, pode divisar até a alma da trapaceira. Ah, que progresso panorâmico entre os dias de hoje e os tempos da M. Tatcher!

E o Putin, vendo a matilha Ocidental cercando suas fronteiras, volta a lembrar que pode, de um momento para outro, transformar o mundo num amontoado de escombros. Ah! e eu, que deixei cair no asfalto a lente principal de minha Canon!..

Para mim, até agora, a guerra agregou apenas duas informações preciosas: que existe um lugar no mapa da Moldávia chamado Transnistria, quase um ninho de cossacos e que, como dizia Cervantes, a morte é surda...

 

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Depois da Mamadeira de piroca, a creperia de Ipanema e o pênis inflável de Palma de Maiorca...



"Doravante, as operações serão praticadas com radar, para que os instrumentos cirúrgicos não se percam dentro do paciente..."

Rámon G. de la Serna

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Minha correspondente do Rio de Janeiro acaba de enviar-me fotos e notícias da mais nova creperia de Ipanema (Rua Visconde de Irajá, 260), LA PUTARIA. Empreendimento que já vem fazendo sucesso também na terra de Tiradentes e de Xico Xavier, onde se pode comer picolés em forma de piroca; xotas encharcadas de caldas e etc. E todos esses produtos - diz ela - ficam bem expostos na vitrine, mais ou menos como lá no Bairro Vermelho de Amsterdã, novidade que está indignando as papa-hóstias, beatas e carolas milionárias da Zona Sul.

E ela faz uma observação: pelo nome do negócio, deve ter um argentino, um uruguaio ou um espanhol como sócio. E por falar em espanhol, na recente Semana Santa, dia em que se comemorou o Renascimento de Cristo, flagraram duas mocinhas chegando no aeroporto de Palma de Maiorca com um imenso pênis cor de rosa inflável, nos braços.:

Não é curioso?

E lembra do conflito sobre a Mamadeira em forma de piroca?.

O que estaria acontecendo?

Estaríamos no meio de uma nova revolução sexual? De uma nova religião? A religião do Phalo e do Rhabo? Ou é só pantomima e compensação? Trâmites para o funeral do desejo? Uma nostalgia por coisas que faltaram no passado e que continuam faltando no presente? Uma forma de manter a sublimação e a repressão sob controle? Espécie de autismo genital?

A pandemia teria escancarado a fixação oral (ou anal?) do rebanho?

O caso da mamadeira de piroca, sabemos, foi uma jogada eleitoral; a creperia remete tanto a um estágio oral como a resquícios de uma pretérita antropofagia e as senhoritas com o pênis inflado no aeroporto de Maiorca, pode ser ainda um reflexo do conflito com Franco; uma indicação de que, para o mundo feminino pós moderno, esse órgão passou a ser apenas uma peça decorativa, útil apenas para mijar, engravidar, ameaçadora, cômica, folclórica e em desuso... (vejam a cara do repórter da TVE, abaixo) 

Ou trata-se de um alerta de que, em breve, se poderá ir, da circuncisão para a castração!?

Bobagens! Trata-se apenas da teatralidade do sexo! 

De um momento lúdico da tropa entediada. Saudades das tetas! Aliás, lembram da sorveteria de Londres (Covent Garden) que oferecia (ou que oferece) sorvetes feitos com leite de mulheres? E quem é que não entrou na fila, lá, para experimentar e deliciar-se com uma regressão? Menininhas e menininhos entediados, roendo unhas e fingindo que estão além do Papai e da Mamãe! Mistura de comércio, michê e melancolia! É evidente que a espécie patina e não consegue ir além dos 11 anos! E é normal que depois de passar séculos apostando inutilmente na alma e em outras ficções, agora se comece a apostar na ereção, nos buracos e nos genitais! Quem é que não leu ainda o livro EU E ELE, do Alberto Moravia? Ou La quête phallique, do James Wyly? Ou a Histoire de la circoncision, des origines à nos jours, do Malek Chebel? Ou La femme blessée, essai sur les mutilations sexuelles f'éminines, de Michel Erlich?

E la nave va... superlotada de fetichistas, onanistas e de otários...












 



segunda-feira, 25 de abril de 2022

Outro fragmento do Vade mecum da vadiagem (um capítulo extraviado dos evangelhos...)






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(...)  ... Quer fazer medicina para quê? (...) Quer fazer advocacia para que? (...) teologia para quê? 

Teologia? Ora! Só se fosse louco! Pensava nas visitas sazonais à zona. Aqui a resposta era mais fácil. Qualquer merda que dissesse servia. E dizia o que me vinha à cabeça: para compreender o voo das abelhas! Para dialogar com os fantasmas! Para saber por que os cães latem. Para traduzir a poesia de Tagore ou de T. S. Eliot. Para entender melhor as origens da demência…Para recitar Villon nas catedrais! Para reajustar as tonalidades do sol… para descobrir por que os ovos coagulam na frigideira. E enquanto ele ouvia minhas respostas “filosóficas” eu mantinha os olhos fixos em algum detalhe de seus óculos, a cor, o material, o grau: bifocal? Tri focal? E pensava na entrevista que tinha marcada para o outro dia numa farmácia. Vai a uma entrevista? Lembre-se, é necessário saber fazer lobby de si mesmo e vender-se. Pense nas putas. Na atuação das putas mais bem sucedidas no interior dos puteiros. Carmim, simpatia, muita simpatia e submissão não fazem mal a ninguém! E não esqueça: todo ofício tem seus malefícios! E na farmácia, ia pensando: os remédios! A fobia das pacientes! Fórmulas! Barbitúricos! 90% placebos! A letra indecifrável dos médicos! A ética! As bulas! (1) 'Eu sou um farmacêutico sem farmácia; e tu és a nota mundana da minha farmácia imaginária!' (Pitigrilli). Enquanto ele me olhava por detrás dos óculos... Eu viajava em fantasias farmacêuticas e em diagnósticos. As panaceias! O mundo como uma imensa enfermaria, como um hospital onde ninguém se salva. Na melhor das hipóteses adquire mais meia dúzia de bactérias, passa a ingerir medicamentos tóxicos e tem seu funeral adiado, cercado por meia dúzia de  negociantes de branco. As doenças inventadas e até criadas. Os males da iatrogenia clínica somados aos males da iatrogenia social. Uma moça só com três dedos, os efeitos da talidomida. Doenças inexistentes! A vida medicalizada! O Mercado negro da saúde! Remédios para combater a preguiça, já que, dizem, ela não é apenas um Pecado Capital, mas uma infâmia social! A iatrogenia médica! O médico é o único que pode matar impunemente. Ao lado do defunto, coloca a culpa no morto, nos equipamentos, nos colegas, nos remédios e até na fatalidade… E só não assopra um pífano, porque não tem o dom musical. Penso em Nêmesis Médica (a deusa grega da vingança) e nos progressos científicos em proveito da indústria e não dos sujeitos. O entrevistador me olha através daqueles óculos quase bizarros. Onde os teria comprado? As indústrias das lentes e das armações praticam e fomentam todo tipo de trapaças. Esconderia duas cataratas ou um glaucoma congênito? E a tal retinose pigmentar? Teria sido receitado por alguém ou comprado num Mercado chinês? Penso fugazmente nos dias alucinados em Hong Kong. A chinesa do hotel que havia fugido de Pequim e que perscrutava minha mala em minha ausência. Seus óculos eram quase como o fundo das garrafas de saquê. O que estaria buscando? Quais seriam suas fantasias? Seus avós haviam morrido nos campos de trabalho forçado do velho Mao? (2) E por quê se diz 'óculos', no plural? Alguém os teria trazido de uma viagem à Buenos Aires ou à Itália? Teria pertencido a seu avô? Quem introduziu seu uso no mundo? Então os olhos também tinham validade? Seria míope? Estaria me vendo como eu realmente era? E os nativos asiáticos que operavam míopes com estiletes de bambu? E as cataratas que, como o Alzheimer, simbolicamente são cortinas que pretendem poupar o sujeito das aberrações do mundo? Os médicos decidiram que elas são doenças e se apressam em querer arrancá-las. Ainda o encontraria cego e mendigando numa avenida poluída e envenenada pelos automóveis e pelos gritos dos pequenos comerciantes? Atravessando a rua conduzido por um samaritano qualquer? Lembro que vi o Borges tateando as paredes de uma livraria em Buenos Aires… Me ausentava intencionalmente. A entrevista. Que horror! E a Carta aos cegos, do Diderot? Sim, e o Borges? O bibliotecário argentino que não enxergava nada? Que ironia para com alguém que precisava ler. E os especialistas em iridologia? Fugia daquela situação esdrúxula, assimétrica e tirânica. Foda-se o porvir e a prosperidade! Acreditava que já havia em mim tudo o que existia de mais próspero: a resistência e a vagabundagem. O horror a todo e a qualquer tipo de servidão. Pensava em Marcuse e via por todos os lados gente que se esforçava por inventar e manter uma “força de trabalho feliz". E vagava pela cidade sem rumo, sem tempo e sem nenhum projeto a não ser o de vadiar, mas sempre atento à Lei que criminalizava a vadiagem. Havia sido o Getúlio, aquele baixinho de botas que a havia instituído. Sempre que passava por uma loja de sapatos pensava em Sacco e Vanzetti, os dois italianos que foram acusados de participarem de um assalto numa fábrica de sapatos nos EEUU e que foram condenados à morte. Também eles estariam tentando esquivar-se do trabalho? As prisões! A ideia imperativa de derrubar as prisões! Mas mesmo preparar um assalto deve dar muito trabalho, não é? E os mendigos iam chegando todas as manhãs, nos mesmos horários e nos mesmos lugares, embriagados pela acídia. Teatralizavam. Um ou outro pronunciava uma frase teatral de Brecht. Brecht? Quem era Brecht? A haviam ouvido do lado de fora do teatro. Do mesmo teatro onde, uma semana depois, mendigavam um bilhete para ver Ubu Rei e Esperando Godot… Mas, afinal, quem era Alfred Jarry e Samuel Beckett? (pp.71,72)



1. Foi meu segundo trabalho, os dois em farmácias. O primeiro, ainda adolescente, foi verdadeira e paradoxalmente uma iniciação prazerosa. Sentia-me bem dentro daquela ‘botica’, e do avental branco. Percebia que o sentimento do rebanho a meu respeito era quase como se eu fosse o ensaio de um feiticeiro ou de um sacerdote. Apesar de toda minha ignorância, simbolicamente era visto como quem curava. E lia em pé, lá no balcão, aquilo que foi minha primeira Enciclopédia: o Almanaque Biotônico Fontoura, idealizado por Monteiro Lobato. Acreditava piamente na ciência, nos elixires, nos xaropes, nos frascos lacrados e nas drágeas coloridas. Fui descobrindo que vários escritores também haviam sido balconistas de farmácias e passado por aquela iniciação, em pé, abusando da empatia e da compaixão. Montando fórmulas, homeopatias, relendo bulas, entrando na intimidade corporal das pessoas: Erico Veríssimo, aquele dos Lírios do Campo; Drummond de Andrade; Avelino Fóscolo; Manoel Lobato e mais tarde, o poeta Mario Quintana. Garcia Marquez, o dos 100 anos de solidão que herdou a farmácia do pai. (Ver: Literatura, história e farmáciaum diálogo possível,artigo de Irene Nogueira, 2015) E ali, no meio de vasos de louça azulada, seringas, esparadrapos, ampolas, pequenos tachos de bronze onde se preparavam as pomadas e se maceravam as raízes, lia a Revista O farmacêutico brasileiro, bancada pela Bayer (se é Bayer é bom!) e ia vendendo as mais variadas fórmulas mágicas, as mesmas misturas para sete ou oito doenças diferentes, e tomando consciência da dependência do país e dos médicos às multinacionais dos medicamentos. Magia! Pompas líricas! Os principais pós vinham da Alemanha, da Holanda e da Suíça (para não dizer da Amazônia). Serviriam para alguma coisa? Enquanto ia aviando uma ou outra receita, olhava o paciente aflito, alquebrado, assoando o nariz, secando uma lágrima, ou apertando as duas mãos sobre os rins e pensava na frase de Jean Cocteau: "É possível que esses infelizes passem toda a vida sem jamais acharem remédio. É possível também que o remédio que consigam descobrir, os mate”. A ilusão da luta contra os sintomas. Morria-se com ou sem remédios. Nas farmácias não há nada além de uma xaropada de simulacros para os presunçosos, dizia Cioran. Muitos doentes, inclusive, tinham uma espécie de paixão por suas doenças e por seus sintomas e não queriam livrar-se delas em hipótese nenhuma. Até iam ao médico e compravam os remédios recomendados, mas os jogavam fora. Curar-se? E com que preocupar-se depois? E o velhinho alquimista que misturava as pomadas e os pós num quartinho reservado, gostava de falar em filogenia e em ontogenia. Que porra era essa? Uma – explicava um professor, no outro dia - tratava da relação evolutiva entre grupos de organismos e a outra, da origem e do desenvolvimento de um organismo. O corpo! Os mistérios e as armadilhas do corpo! Os preços... os rótulos e a mistificação dos serviços de saúde. Muitos remédios, com fórmulas iguais, eram produzidos por fábricas distintas e levavam nomes e preços diferentes. Placebos superfaturados. Ilusões. Do pó ao pó e finalmente ao pó! O Cheiro forte do formol para embalsamamentos. A família do morto mora no outro lado do planeta. Quer ver o parente antes que seja enterrado. As funerárias oferecem o trabalho de embalsamamento. Aparam-lhe os bigodes e entopem-lhe as veias de formol. O horror da vida coroado pelo horror da morte. Os cheiros! A farmácia, essa usina do Pensamento mágico. Ver A farmácia de Platão (Derrida). A cura do incurável. Drogas injetáveis, drogas orais, vaginais, anais, dérmicas, oculares. Aparelhos de borracha e vidro para extrair leite de mulheres. Hormônios. Calmantes. Bulas, Excitantes. Pílulas para dormir e para acordar. Aquelas cápsulas de quinino que pareciam hóstias retorcidas. Tinturas para o cabelo e para os bigodes. E as unhas, objetos para cortar as unhas. Fungos. Qual seria o mistério das unhas? E o rabo? De vez em quando uma criança nascia com uma espécie de minúsculos rabos que logo eram amputados. Por que as unhas e o rabo, mesmo depois do iluminismo, continuam insistindo em crescer? Manchas amareladas de iodo nas unhas. A postura artificial de sacerdote, nos dias em que o delírio era maior pensava-se até em Hipócrates... em nigromancia. Aqueles que conhecem a origem dos males, podem mitigar as dores e diminuir o desespero da hora final... Quando aparecia o vagabundo colombiano por lá, e me via com aquele avental com o slogan da Bayer desenhado no bolso e numa postura de palhaço sóbrio, gostava de ironizar-me com outra citação de Vargas Vila: “Basta escrever livros, defender teorias, fundar sistemas, para que qualquer ajudante de farmácia venha um dia a diagnosticar vossa genialidade..." (IN: De sus lises y de sus rosas, vol, 17, p. 114)

 2. No dia em que mudei-me para um hotel mais vagabundo ainda, presenteou-me com o livrinho vermelho do Mao. Quotations from chairman Mao Tse-Tung. Um livreto de 569 páginas, com uma dezena de fotos do velho revolucionário, uma delas jogando ping-pong. Não lembro muita coisa dos dias em que estive por lá. Mudo, indo e vindo por aquele luxo artificial e por aquela Idade Media disfarçada atrás dos prédios gigantescos. Os gafanhotos em gaiolas. Os sapos, as serpentes, as meninas, com seus óculos espelhados e seus relógios falsificados que abriam as pernas por meia dúzia de dólares, mesmo na retaguarda do imenso e sagrado Templo. As luzes na rua do Templo dos mil Budas! O que diriam? Confucionistas. Elogios à embriaguez. O Mercado das flores, em pequenos arranjos ou em vasos da Dinastia Ming, pareciam olhar-me bem nos olhos. Uma alfaiataria quase no meio da rua, com o alfaiate cercado por dois pequenos cachorros. Os operários das pizzarias, jogando a massa de um lado para outro. Cheiros inesquecíveis. Os milionários no saguão dos hotéis. Garçons afeminados, quase como meninas. As máfias de gigolôs desfilando pela rua principal que não anotei o nome. As luminárias e as luzes vermelhas. O chá numa pequena bandeja onde estava estampada a trompa de um elefante. Os mendigos ruminando sobras. Ruelas misteriosas que acabavam no interior de prédios antigos. Uma família dormindo no interior de um riquixá. Uma borboleta imensa dando voltas ao redor de um pisca pisca e de um neon psicodélico. Aquela fala que, vinda de um beco ou de um bêbado, parece sempre estar nos ameaçando e nos acusando de algo. O livro de poemas IN QUEST de Cho En Lai, esquecido no balcão de uma peixaria. Abro-o ao azar, página 19. Leio (sem entender) o trecho sublinhado: "Co-existence with mutual benefit? The sweating of men alive? The indolence of line-in-death! E as lojas imensas sob um cartaz imenso da CANON. Lentes, tripés, detonadores. A câmera como fetiche. A religião da fotografia. E gente do mundo inteiro se acotovelando por lá. Um filtro, um diafragma, um detonador quase mágico. Fazer a melhor foto do mundo. Ser um novo Sebastião Salgado, um novo Cartier-Bresson, sem precisar fazer cumplicidade com o clero e nem com a academia. Confúcio! O capitalismo! Seria isto a Revolução cultural de Mao Tsé Tung? O barco para Macao. O cassino. As marcas dos lusitanos ainda por lá. E todo mundo trabalhando, nem que fosse só para encher as tripas. Ah! Se se pudesse cagar dinheiro!

sexta-feira, 22 de abril de 2022

A Cruzada dos Mendigos... e a aporofobia...

"Ni la bestia ni Dios tienen problemas. La una porque no piensa y el otro por omnisciente"

Rodolfo R. De Roux




Hoje, sexta-feira, lá pelas 8:00 da manhã, as escadas e a frente do mercado francês estavam congestionadas de mendigos. As figuras mais exóticas dessa fauna pareciam ter se reunido todas ali. Haveria alguma razão especial? E mandavam suas mulheres abordarem os velhinhos que desciam caquéticos de seus carros de cinco toneladas e de 30 mil dólares.

Pode me ajudar?

Pode me comprar uma cesta básica?

Um saco de arroz? 

Uma garrafa de cana?

Os velhinhos se apressavam em entrar e os 'leões de chácara' do mercado apaziguavam a turma. Pediam paciência. Mencionavam o Estatuto do Idoso e os diversos impostores que, recentemente, foram estrangulados pelos capatazes dos mercados. Se a gente não for duro com vocês, a gente perde o emprego! Colaborem aí.

A turba se aquieta até a chegada de outro cliente.

Fiquei assistindo aquele movimento e pensando na Cruzada dos Mendigos, lá do ano 1080. Lembram? Aquele exército de Mendigos, indigentes, loucos,  bandidos, colonos arruinados, putas e etcetera, que partiram da cidade alemã de Colônia, em direção à Asia Menor, com a intenção de resgatar o Santo Sepulcro e de livrar Jerusalém do domínio dos muçulmanos? 

Foi uma pena ainda não existir máquinas fotográficas naqueles tempos! Dizem que, liderados por um tal Pedro, o Eremita, iam destruindo, assaltando e tocando o terror em tudo por onde passavam, até que ao chegarem em Constantinopla (a atual Turquia), o sultão que estava de plantão, gritou: NO PASARAN! E mandou suas milícias recebê-los com uma chuva de flechas...

No interior do mercado fui abordado por uma delas que dizia ser licenciada em letras e que implorava para que eu lhe pagasse dois quilos de grão-de-bico.

Ao mesmo tempo em que me implorava, ia falando desordenadamente sobre a parte do Levítico que trata do Bode expiatório e do Bode Emissário.

Nós - dizia, tentando imitar personagens das novelas  - encarnamos os dois. Ora um e ora outro...

E insistia para que eu lhe pagasse além dos dois quilos de grão de bico, mais uma lata de leite em pó.

Caralho, retruquei-lhe, apalpando instintivamente os bolsos: não leve a mal, mas eu estou tão arruinado quanto você! 

Ela olhou-me fixamente nos olhos, com uma certa compaixão, depois, dos pés à cabeça com desprezo e, abrindo o livro Elogio de la incertidumbre, de Rodolfo R. De Roux, (que levava num saco de plástico) retirou de entre as páginas uma nota de dois reais e a enfiou agressivamente no bolso de minha camisa.

Para não passar por mentiroso, aceitei.

Agora, pretendo investi-los em ações da Petrobrás.



domingo, 17 de abril de 2022

Já que hoje é domingo...

"Carecer de convicções a respeito dos homens e de si mesmo, esse é o elevado ensinamento da prostituição, essa academia ambulante de lucidez, à margem da sociedade como a filosofia..."
E.M.Cioran

sábado, 16 de abril de 2022

A PÁSCOA! Mas afinal, fomos todos convertidos em judeus tupiniquins?

 
"Hegel, ese sinvergüenza propagador de necedades con la colaboración de los profesores de filosofia..."

(A. Schopenhauer, in: degeneración de la filosofia, p. 86)


 

O Mendigo K. que teve que comprar para sua mulher um punhado de chocolate, não sabia exatamente se 100 ou 150 gramas e que pagou 119,00 reais, estava furioso! Sentindo-se um idiota. Um estelionato! Colocou sobre a mesa um caderno com anotações recentes e discursou: Veja aqui: paguei por 100 gramas de chocolate o preço de uma arroba de cacau. Estelionato! Assalto! Ladrões com alvará! Se não acreditam, liguem para Itabuna. Uma arroba, vocês sabem, são quase onze quilos. Onze quilos de cacau são vendidos para as aves de rapina  nacionais e internacionais por 185,00 (Cento e oitenta e cinco reais), preço de 100 gramas de chocolate! Isso, além de assalto, não é uma idiotice? Um diagnóstico de retardamento mental? Que não tenhamos bagos para construir estradas de ferro, tudo bem, mas por que é que não temos bagos para montar nossas próprias fábricas de chocolate? E não é só o cacau que é rapinado, também o leite, o açúcar e o papel com o qual se  embrulha essa fraude, são oficial ou clandestinamente, levados  daqui... Isso não é uma afronta? E depois vêm os comerciantes, as beatas, as 'titias' nas escolas e os padres com essa babaquice e com esse lero-lero de coelho da páscoa. Páscoa? O que é isso? O que essa anedota tem a ver conosco? Com nossa cultura? Com nossos genes? Com nosso tesão? Como é que nos deixamos humilhar e pisotear dessa maneira? Mimetismo? Nossos ancestrais teriam sido camaleões? Ou será que fomos todos, além de cretinos, convertidos em judeus Tupiniquins? 

Todos de volta ao Antigo Testamento! Feliz Páscoa! Prosperidade aos cacaueiros... E, no próximo abril, vão foder outros!








Albergue da juventude de Brasília - Não teremos tudo destruído enquanto não demolirmos inclusive as ruínas...

 


"Nada foge ao seu destino histórico, 

seja um império que desaba ou uma barata esmagada..."

Mario Quintana

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Construída num endereço insólito e mais do que impróprio, bem em frente a um barracão da SLU, o albergue aqui da cidade, que deveria, como tantos pelo mundo a fora, facilitar a interação, o entrosamento, a transação e o cruzamento planetário de jovens; de estudantes, de  nômades, pesquisadores, vagabundos, e viajantes de todos os pedigrees, não teve uma história muito memorável e nem muito longa. Ficou abandonado às moscas, às baratas, aos ratos e, ultimamente, aos pobres indigentes que, não são poucos. 

Hoje, ao ciceronear um casal que chegou da Ilha de Java e que pretendia hospedar-se lá, fomos surpreendidos: em seu lugar, um monte de ruínas. Os proletários, cobertos de poeira, nos explicaram: a derrubada aconteceu porque o albergue, segundo denúncias dos moradores da região, havia se transformado numa boca de fumo. O mais curioso, é que quem estava se sentindo incomodado e que pressionou a derrubada foram os mesmos que há alguns anos atrás destruiram o cerrado com suas nascentes e expulsaram os Tapuias, os Kariri, os Guajajara e outros indígenas que viviam ali numa espécie de o Santuário para, em seu lugar, poderem levantar seus prédios. Enquanto eles iam falando, nós pensávamos em Mario Quintana: ninguém foge ao seu destino histórico! 

Faziam esse relato e riam do meio dos escombros - aquele riso vingativo da luta de classes - ao verem o casal de javaneses com as mochilas ainda nas costas, um livro de Le Corbusier e um mapa da cidade abertos sobre os joelhos, extremamente decepcionado.

O que teria acontecido?  

 














 

sexta-feira, 15 de abril de 2022

A Ministra Damaris, os capetas... e as pulgas do inferno...


"Mandai minhas lembranças às galinhas..."
(IN: Maquiavel no inferno, p32)

"O inferno são os outros"
(Entre 4 paredes, J.P.Sartre)


Como já disse outras vezes, tenho uma simpatia especial pela Ministra Damaris. Suas declarações, sobre qualquer assunto, são sempre Transcendentes, fascinantes e de outro mundo. Cada vez que ela se manifesta, me obriga a passar o dia inteiro vasculhando minha biblioteca atrás da temática que ela colocou em pauta. Nesta semana, como todo mundo pode ver no video abaixo, foi sobre os capetas. Tema, sobre o qual, por ter escrito recentemente um livro sobre Paganini e seu 'pacto' com o demônio, tenho um acervo respeitável. Neste caso, sobre os capetas, curiosa e paradoxalmente, mesmo os que estão ironizando sua fala, não saem de casa sem dois ou três rosários e patuás enrolados no pescoço, nas calcinhas ou nas cuecas. A ministra começa sua fala declarando que o inferno está se levantando. Que seus portões foram abertos e que uma legião de capetas se espalharam pelo mundo, principalmente pelo ensolarado Brasil, para prejudicar o governo atual e, o mais curioso: que alguns desses capetas são carecas. 
Amontoei sobre a mesa meus 19 livros que tratam do tema, e até agora não encontrei nada sobre esse particular, nem mesmo na Divina Comédia (do pároco italiano) e nem no de Sebastian de Grazia: Maquiavel no inferno. De onde a Ministra teria arrancado essa informação?
Continuo a pesquisa. Georges Minois, em seu LE DIABLE, não me acrescenta grande coisa. Traça os caminhos seculares dessa crença religiosa, literária e psicótica até chegar no Diabo Superstar de agora. 
Na HISTÓRIA DO DIABO, de Vilén Flusser, vejo logo uma frase sublinhada: "A ciência termina, onde começa a magia". Umas duas páginas mais adiante, leio: "embora o Deus ocidental desempenhe o papel do diabo oriental e o contrário também ocorra, o paraíso é igualmente inatingível para ambos os fiéis e o diabo lhes seduz pela mesma força irresistível". No livro de Miguel Ángel Prieto, LA MUSICA DEL DIABLO, encontro esta referência ao músico Franz List: "considerado a veces demoníaco, nos dejó quatro piezas para piano tituladas 'El vals de Mefisto', asi como su Sinfonía "Fausto'. Um pouco mais adiante: "em 1966, Anton LaVey fundou a Igreja de Satã em São Francisco (USA), atraindo várias estrelas do cinema e da música que estavam entediadas e famintas por novas sensações". No livro de Jairo Enrique Soto Hernández: EL DIABLO EN LA CULTURA POPULAR DEL CARIBE COLOMBIANO, está escrito: "Con historias de demônios se atemorizava a indígenas y afrodescendientes, como estratégia para obligarlos a obedecer los princípios del cristianismo". No livro de Michel Pastoureau, O PANO DO DIABO, pode-se ver esta maravilha: "No Ocidente medieval são numerosos os indivíduos, reais ou imaginários, a quem a sociedade, a literatura ou a iconografia impõem vestes listradas. Todos esses são, por um ou outro motivo, excluídos ou rejeitados, desde o judeu e o herético até o bufão ou saltimbanco, passando não só pelo leproso, o carrasco ou a prostituta, mas também pelo cavaleiro traidor dos romances da Távola Redonda, pelo insensato  do livro dos Salmos ou pelo personagem de judas. Todos perturbam ou pervertem a ordem estabelecida; todos têm em maior ou menor grau algo a ver com o Diabo".
Tomo um chá de mandrágora, coloco na radiola a Sonata número 10 em A  menor, de Paganini e em seguida o Rock do Diabo bom, do Renato Matos e continuo minha pesquisa, com RELATOS DE BELZEBU A SEU NETO, de Gurdjieff.
Na BIOGRAFIA DEL DIABLO, de Alberto Cousté, leio logo na introdução um pensamento de Baudelaire: "La mayor astucia del Diablo es la de convencer-nos que no existe...". No LIVRO DOS DANADOS, de Charles Fort, me chama atenção a história dos super-lobos que foram vistos atravessando o sol durante um terremoto em Palermo. E uivavam... p. 232.
Na ALTERNATIVA DO DIABO, de Frederick Forsyth, também não há nada sobre capetas carecas. Passo para LE DÉMON DU BIEN, de Montherlant, mas o titulo é apenas uma trapaça editorial. Abro A DANÇA DO DIABO, de Ollivier Pourriol, que já na primeira página cita uma bobagem de Jó, 23: "Deus enervou o meu coração, o Omnipotente encheu-me de terror. Não pereci, certamente, no meio das trevas, nem a obscuridade envolveu o meu rosto." Esse nem tenho saco de folhear. Passo para LE DIABLE À PARIS, de Pierre Gasgar, publicado pela Gallimard, onde acabo me distraindo com o capítulo da página 53, titulado: Rue de la Femme-sans Tête.
Hoje é sexta-feira! Já estou de saco cheio com esse assunto. Dou uma olhada no penúltimo, que é o de Georges Minois: HISTOIRE DE L'ENFER, que é uma maravilha e que faria os crentes sentirem vergonha; passo para o de Giovanni Papini (que também é uma maravilha); dou uma olhadinha na ERVA DO DIABO, do Carlos Castañeda, percebo que não mencionei DEMONS (Visions of Evil in Art), de Laura Ward & Will Steeds; e, por fim, leio em voz alta esta parte do DIABO COXO, de um tal Luis Vélez de Guevara:
- És demônio plebeu, ou dos de bom nome?
De grande nome - respondeu o vidro endemoniado - e o mais celebrado dos dois mundos.
És Lúcifer - repetiu dom Cleofas.
Esse é demônio de beatas e escudeiros - respondeu a voz.
És Satanás? Prosseguiu o estudante.
Esse é demônio de alfaiates e açougueiros - repetiu a voz.
És Belzebu? - tornou a perguntar dom Cleofas. e a voz respondeu: Esse é demônio de jogadores, amancebados e carroceiros.
És barrabas, Belial, Astarot? - Disse finalmente o estudante.
Esses são demônios de maiores ocupações - respondeu a voz. Sou demônio mais miúdo, apesar de me meter em tudo; sou as pulgas do inferno, a fofoca, a confusão, a usura, a fraude, eu trouxe para o mundo a algazarra, a chacota; eu inventei as pandorgas, os comas, as marionetes, os saltimbancos, enfim, me chamo Diabo Coxo..."


 









quarta-feira, 13 de abril de 2022

BRASÍLIA 62 anos! E eis que Brasília, finalmente, entra na era da pós modernidade... Estão inaugurando um crematório...


"El conocimiento previo de la muerte es una enfermedad que requiere un pharmakon".

(Ver Esquilo, em Prometeu acorrentado).


Bye bye cemitérios! Esses latifúndios lúgubres que infectam as cidades e que ficam ali com seus buquês murchos; com suas lápides de granito brilhantes, com seus coveiros terceirizados palitando os dentes sem consciência de porra nenhuma, e com seus fantasmas mantendo a turba de cócoras... 

Brasília 62 anos! 

Como presente de aniversário à população de fodidos e de nômades que vieram para cá em caravanas lá pelos nos anos 60/70, de todos os cafundós, acreditando que isto aqui seria um Shangri-lá paradisíaco, os burocratas resolveram, finalmente, instalar um crematório elétrico... O Mendigo K, que estava lá no meio dos burocratas que benziam o monumento, deu um jeito de cochichar-me: Sabia que os animais também lamentam os mortos? Que os elefantes depositam ramos de árvores sobre um amigo defunto? E que os ursos enterram os animais mortos, do grupo, preparando-os para comê-los mais tarde? E que os golfinhos, como as vacas, têm rituais de luto quando morre alguém do cardume ou do rebanho?

Fez um silêncio, colocou-se ao lado e um alto funcionário do cemitério e recitou (mesmo sabendo que lá ninguém conhecia esse idioma de bárbaros), um poema de Tennyson, em inglês:

O me, why have not buried me deep enough?

Is it kind to have made me a grave so rough,

Me, that was newer a quiet sleeper?

Maybe still I am but half-dead;

Then I cannot br wholly dumb..." 

Exibem o forno. Não consigo ver o nome do fabricante. 

Já viram um forno crematório? Mil graus centígrados! Que "viagem" para os masoquistas! Mas e a alma? Malandramente, já teria debandado? 

A mim, lembram de imediato os de minha infância onde eram enfiadas as cucas cobertas de farofa açucarada, ou as frictilias de dezembro, que na Roma Antiga eram dedicadas ao Deus Saturno (aquele que devorava os próprios filhos). Ah, e as tortas de banana! De vez em quando também um leitão recheado de abacaxi... Que guinada! Agora somos nós as tortas, os grostolis e os leitões... E, falando em Saturno, por mais que me esforce, não consigo deixar de associar aos fornos também aquele mito terrível lá da argentina, El mito del nino asado, que os psicanalistas daquele país não se cansavam de mencionar.

Enfim, alteramos o projeto original, trocamos o pó pela fumaça! Mas a desgraça é a mesma! Se o demiurgo tivesse sido mais lúcido e tivesse tido uma visão mais a longo prazo, teria modificado sua maldição: lembrem-se, seus merdas, que são pó e que virarão fumaça!

No fundo da maioria das casas daqueles tempos se podia ver, principalmente na hora do almoço, duas ou três mulheres vestidas rigorosamente dos pés à cabeça e quase sempre de preto, meio copo de vinho sobre um caibro, com um rosário - daqueles com uma cruz de ferro trazidos ainda do Vêneto, esparramando-se por sobre as tetas carcamanas - enfiando delicadamente uma pá imensa, de madeira, no fundo daqueles buracos feitos de barro e de pedras.

Devem ter sido aqueles fornos domésticos que, para mim, pareciam estar sempre exalando um aroma de canela, que inspiraram estes, que agora, são o símbolo maior de todo nosso fracasso... 

terça-feira, 12 de abril de 2022

Do viagra à ética do prazer! Navegar é preciso...


Nesta terça-feira que amanheceu com um céu azul estupendo, a velhinha armênia estava estacionada na porta do mercado como quem espera por Godot. Quando me viu veio logo se arrastando em minha direção e entrou de cara no assunto da imensa compra de Viagra que o governo fez e distribuiu praticamente toda para o pessoal da marinha.

Quando falava em Viagra, diminuia o tom de voz deixando claro que há um preconceito com essa pílula, mais ou menos como havia com os anti conceptivos nos anos 70. Pare de tomar a pílula! Pare de tomar Viagra!

Estava um pouco excitada com o assunto. E digo excitada para não dizer assustada, pois em outra oportunidade me havia confessado que quando seu companheiro (um velhinho de quase 100 anos) ingere uma, de 50 mg, passa três dias com a coisa dura, a ponto dela ter que dormir fora do barraco se não quiser, na manhã seguinte, ter que ser levada numa padiola para o ambulatório do Sara. 

Muita gente está criticando o governo por essa aquisição. A mídia está cheia de ironias e de moralismos por desconfiar que esta seja + uma estratégia do Bolsonaro para, finalmente implantar a dita-dura...  Eu, sinceramente, acho que foi o ato mais subversivo dos últimos tempos, praticado pelo executivo. Quem conhece as teses de Wilhelm Reich sabe da importância do orgasmo, tanto para a saúde, como para o humor, para a criatividade e para a felicidade em geral, inclusive, que uma dose de sêmen semanal é crucial para manter em equilíbrio o humor feminino. E talvez - e isso qualquer um já constatou - não exista antidepressivo mais eficaz do que uma ereção vigorosa e duradoura, tanto para turbinar amor próprio como a auto-estimaAliás, já é tempo de abandonar o neurótico Conhece-te a ti mesmo e de colocar em seu lugar o revolucionário Estima-te a ti mesmo!

Acho, inclusive, que se deveria distribuir esse 'insumo' para os casais que vivem juntos por mais de dois anos; também para os professores, para o proletariado; para o lumpenproletariat; para os pastores, para os internos nos asilos; para a dupla de mórmons que passa todas as manhãs ali pela avenida, com suas camisas brancas, de mangas curtas; bem como para esses merdas que se dizem 'influenciadores digitais' e para a sociedade anônima dos poetas barrocos. E mais, que junto à conta de luz, todas as famílias deveriam receber mensalmente uma cartela, do original, do genérico ou mesmo do falsificado no Paraguay, já que o efeito é o mesmo.

Mas, voltando aos marinheiros, quem é que não gostaria de ter uma vida daquelas? Navegando pelos mares azuis, bebericando biere, degustando salmão na proa no meio de uma brisa salubre, ouvindo o Zeca Baleiro e com a pressão pulmonar controlada? E mais: em direção à Pasárgada, vendo o amanhecer na Babilônia; passando pelas Ilhas Virgens, estacionando nos portos femininos do Taiti, nas feiras das artesãs africanas e, claro, pelos remansos encantadores da Ilha de Lesbos, na Grécia?

 Imaginem ancorar em San Torino, lá pelas quatro da tarde, com 50 mg de Citrato de Sildenafila circulando nas artérias...

Ah, seríamos ingratos se não reconhecêssemos a grandiosidade da ciência, da alquimia e das farmácias, neste particular! 

Quem sabe se amanhã, num gesto de igualdade de gêneros, não se comece a distribuir alguma coisa parecida também para as mulheres... para elas que, por enquanto, apesar de manterem tudo sob sigilo, têm buscado gozo, prazer e felicidade apenas nos textos tirânicos de São Paulo; no brilho das panelas e das vidraças; erguendo peso nas academias ou de joelhos no silêncio sepulcral das catedrais...

 





FRANÇA - Do 18 Brumário ao 10 termidor...


 "Todos los hombres han sido revolucionarios hasta que han formado parte del gobierno; pero también todos, cuando han formado parte del mismo, han sofocado la revolución. Yo mismo, si um  día se os ocurriera entregarme el gobierno y si, en un momento de olvido o de vértigo, en vez de sentir piedad y desprecio por vuestra estupidez, aceptase el título de amparador del robo que habéis perpetrado contra vosotros mismos, Os juro por Dios que os las haría ver negras! No os bastan las experiencias que habéis tenido? Sois bien duros de mollera..."
 Anselme Bellegarrigue




Meu amigo Mohamed, um expatriado árabe que vive na França há uns 40 anos mendigando nos arredores da Maison du Brézil, na Cité Universitaire, e que está acompanhando de perto a pantomima das eleições francesas, me mandou uma breve noticia de lá.

Bazzo, depois do 18 Brumário a França agora, está encarando o teatro do 10 Termidor, com um banqueiro de um lado e com uma matrona do outro. Macron ou Le Pen? Com brioches ou sem brioches, com escargot ou sem escargot, com lentilhas ou sem lentilhas, esses jacobinos com alma de girondinos terão que optar por reeleger um banqueiro (Macron) ou colocar em seu lugar uma matrona de direita (Marine Le Pen). O teatro será perfeito e escatológico. E a esquerda daqui que, como em outros países, gastou décadas prostituindo, pervertendo e nocauteando a si mesma, terá que arrumar mil e uma desculpas para, mais uma vez, justificar o injustificável e esse vexame. Como não lembrar do Malade imaginaire, do Molière? 

Vagabundeando pela periferia, penso em Ravachol! Ouvindo o Macron, penso na família dos Rothschild e prestando atenção na coreografia da Le Pen, rememoro as idéias delirantes da Simone de Beavouir, daquela freirinha disfarçada que defendia a ideia de que ninguém nasce mulher, que a mulher é engendrada pela cultura... Oh là là...



segunda-feira, 11 de abril de 2022

Outro fragmento do Vademecum dos maus funcionários... (Um texto sagrado da vadiagem!) No prelo.

 O futuro ginecologista que, às vezes, respondia pelo apelido de Akaki (uma referência ao  personagem de Gorki e ao casaco que usava) silenciava por uns instantes, tempo suficiente para reprimir uma pueril emoção e nos prevenia: Isto não é literatura, é verdade. Quê sinais deveriam identificar em mim? E que lembranças persecutórias deveriam trazer de seus ancestrais e de suas histórias pessoais? Só sabia deles que haviam atravessado o Atlântico jogados nos porões de precárias caravelas, trinta dias rezando ou ouvindo, além do murmúrio das ondas, as mesmas músicas de um mísero realejo. Na manivela uma velhinha magra e sorridente. Ela própria, em sua terra natal, construía aqueles instrumentos e confeccionava aqueles rolos de papel furado, suas exóticas partituras e aqueles feixes de flautas[1].

 Desse jeito, vai acabar sendo sapateiro! Essa ameaça paterna voltava a atormentar-nos e sempre no auge de nossa vagabundagem.

Um padre amigo da dona da pensão aparecia por lá de vez em quando, com sua postura andrógena e de deprimido, com as unhas roídas. Era um pobre personagem que causava piedade em qualquer um, até nos ateus, e que ninguém sabia se por debaixo daqueles arreios havia um homem ou uma mulher. Enquanto a velha fazia ruídos estranhos no banheiro, ele acomodava-se num sofá da sala e ia lendo um livreto publicado em 1854, em Roma: Venere ed Imene (Manuale dei confessori). Para nós, era a personificação da decadência e da melancolia.

 E a preguiça, para aqueles imigrantes cristãos, (quase todo o clero e derivados era descendente e de italianos) era considerada um pecado. Tanto é que Dante, aquele pároco disfarçado, reservou para os preguiçosos um lugar no IV Círculo do Purgatório, ao lado dos iracundos, no III Círculo e dos avaros e pródigos, no V.[2] Mas para outros, como diria Alphonse Allais, “o preguiçoso é o homem que não finge que trabalha". E nesse particular, admirávamos cada vez mais aos mendigos que estavam todos os dias lá, na mais descarada vagabundagem. Eram os avatares de miséria concreta. Haviam precocemente entendido que a luta pela sobrevivência desqualificava a vida. Radicalizaram! Temiam e detestavam o trabalho e o demonstravam, na prática! Como não desejavam possuir nada – diria mais tarde Cioran – cultivavam seu desprendimento, que era a condição principal de sua liberdade…

E a vida, continuava salpicada de incógnitas. Seguíamos fingindo estudar, mas com a mente sempre voltada para o Gogó da Ema e para o Cracóvia, duas casas noturnas, não necessariamente puteiros, que ficavam no caminho de nossa pensão e que atormentavam nosso imaginário… De vez em quando entrávamos lá, tímidos e excitados. A recepcionista, uma mulher simpática e luterana de uns 40 anos, já nos conhecia e gostava de chamar-nos de guris.

E então guris, chegou a mesada?

Riamos mais intimidados ainda por estarmos torrando o dinheiro de nossos pais com putas.

Hoje, - seguia ela – só a Gisele e a Ingrid estão trabalhando. Qual vocês preferem?

 Estão trabalhando! Aquela frase interferia em minha ereção. Em seguida a Ingrid aparecia sorridente, infantil e sutilmente hebefrênica por detrás de uma cortina avermelhada. Havia chegado há menos de um ano, vinda de uma comunidade de imigrantes alemães. Também era luterana, mas trazia no pescoço a medalha de uma santa católica. Panteísta! Não se diferenciava em nada de minhas colegas de colégio, das operárias das fábricas e do rebanho de adolescentes que ficava em fila no restaurante estudantil. O estigma que pesava sobre elas era falso e cruel. Sobre uma cama estreita e improvisada, aquele corpo ainda com pentelhos escassos, lembrava os afrescos no teto da Capela Sistina. O corpo feminino era o ópio do povo! Sobre a mochila escolar, pendurada num braço da cama, estavam dois livros de Gibran Kalil, O Louco e O vagabundo. Mesmo já tendo efetuado o pagamento à cafetina luterana, antes de sair do quarto dividia com ela o dinheiro que havia reservado para a comida da semana. Esse gesto, percebia depois, era não apenas de um cristão romântico e babaca, de um Filho Pródigo, mas de um verdadeiro otário. Lembro de ter ouvido de uma daquelas pequenas cortesãs esta frase mais profunda do que todas as filosofias posteriores: Bazzo, no amor, se não quer decepcionar-se, apaixone-se sempre por uma ou até mesmo por várias pedras!

Um caminhão de boias-frias atravessa perigosamente o cruzamento. Muitos daqueles trabalhadores da agricultura, descalços, com artrose nas mãos, o nariz escorrendo, com a enxada ou a foice em punho, se comparados aos mendigos não passavam de uns palhaços da fatalidade, que gostavam de recitar o Rerum Novarum de 1891, do Papa Leão XIII (o Papa dos operários): “O homem, - dizia - mesmo no estado de inocência, não era destinado a viver na ociosidade…” E quem já entrou num mosteiro católico deve ter visto por lá uma tabuleta com a seguinte inscrição: Ora et labora! Que o trabalho é a chance de passar do temporal para o eterno. Nos templos budistas ou Xintoístas de Bangkok ou de Katmandu se encontravam tabuletas semelhantes. Quase a mesma coisa que decretaram Marx e Marcuse: O trabalho como expressão real da liberdade. E lá na antiga Grécia, dizem que São Paulo, dirigindo-se aos vagabundos de Tessalonic ordenava: "procurai viver com serenidade, trabalhando com vossas mãos. É assim que vivereis honrosamente em presença dos de fora e que não series pesados a ninguém." Praticamente a mesma pregação que o judeu Marx, viria a fazer mais tarde: “O trabalho desempenha um papel fundamental na constituição do ser humano. É através dele que os seres humanos se diferenciam dos animais". Tudo igual! Como se por detrás de tudo houvesse uma confraria de sanguessugas, de trapaceiros e de mercenários… uma queimação de incenso ao patronato. Quanto menos pensar, melhor será o trabalhador. Eis aí o mantra dos empregadores. E a tosse indicando uma tuberculose vinha dos andaimes do prédio vizinho. Empregos para pobres! O álcool. As fábricas de álcool auxiliavam os patrões. Finais de semana bêbados! O que poderiam querer mais os exércitos de trabalhadores? E mistificavam a embriaguez.[3] Parecia-lhes até o máximo de liberdade. Ah, se fosse possível ir trabalhar com uma garrafa no bolso! Acelerava a morte. O que anseia um trabalhador da linha de produção, (enfiado naqueles uniformes de idiotas e sabendo que todo apelo à produtividade é um apelo à escravidão, seja de sapatos ou de automóveis), além de apressar o seu fim? Greves! Retratos da miséria dos trabalhadores. No famoso Maio de 68, não só em Paris, mas pelo mundo a fora, estudantes como nós e operários denunciavam a ditadura do trabalho produtivo e o trabalho estereotipado como a fonte dos piores males, como uma fonte do medo, do estresse, da alienação e do desastre pessoal, engendrado e mantido pelas elites para, entre outras coisas, garantir a manutenção da ordem. Mas tudo ia ficando apenas na retórica e na performance literária. Sejamos realistas, exijamos o impossível! Esta frase, escrita nos murros de Paris nos emocionava. Mas, o que seria o impossível? Os mais niilistas respondiam: não ter nascido! (páginas 29, 30, 31)



[1]Foi uma neta dessa senhora que, já quase demente, contava agora a um de seus bisnetos a história dos sirgadores do Volga lá na Rússia imperial. Aqueles escravos que amarrados em arreios de couro tinham a função de rebocar barcos contra a correnteza. Segundo ela, esse trabalho desumano e de bestas, foi documentado numa tela do pintor russo Ilia Repin. E ela fazia o relato com uma certa emoção, principalmente quando descrevia as vezes em que navegou pelo Volga, desde sua nascente no planalto de Valdai até sua desembocadura no Mar Cáspio. Ia tocando seu realejo nas embarcações e nos vilarejos ao longo do rio para sobreviver. Ficava indignada com as cantorias dos sirgadores, aqueles escravos que enquanto puxavam as embarcações como animais, iam cantarolando para amenizar o sofrimento:

Caminamos junto a las barcazas/cantamos al sol nuestra canción/

Ai-sí, sí, ai-sí/Ai-sí, sí, ai-sí/cantamos al sol nuestra canción.
Hey, ¡tirad!
Hey, ¡tirad!
¡Una vez más, y otra vez!
Hey, ¡tirad!
Hey, ¡tirad!
¡Una vez más, y otra vez!

Quando percebia o interesse de seu bisneto, passava de Ilia Repin para outra pintura monumental que também denunciava o horror do trabalho, Os britadores de pedra, do realista francês, Courbet (1819-1877). Essa obra, observava, foi destruída pelos bombardeios sobre Dresden, na Segunda Guerra Mundial. O mais fascinante de suas histórias eram os relatos que fazia dos Cossacos, aqueles grupos nômades que viviam em tendas à beira do Volga. Gente que gostava de dançar, que se negava a fazer o serviço militar, a pagar impostos e a trabalhar como escravos... (Queríamos ser como os cossacos!)

[2]Bem mais tarde, já adulto, entendi que os conceitos que havia recebido na comunidade onde cresci, sobre o inferno, o paraíso e o purgatório, haviam sido retirados simploriamente da obra desse poeta italiano e de sua obra maior: A Divina Comédia. A farsa não poderia ser mais lírica do que isso. Para chegar ao paraíso era necessário passar antes pelo inferno e pelo purgatório. Espiar uma culpa imaginária. Gênese do masoquismo universal.

[3] Quem é que não se lembra do texto de Baudelaire fazendo apologia da embriaguez? "É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do tempo que voz abate e vos faz perder para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis".


 

sábado, 9 de abril de 2022

Lula e o aborto... (Porque te amo, não nascerás).


"A un ser de voluntad tan pecaminosa, de inteligencia tan limitada y de cuerpo tan endeble y vulnerable como el hombre no me parece que el concepto de dignidad se le pueda aplicar más que irónicamente..."

Arthur Schopenhauer

(IN: El arte de insultar, p. 91)

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OPS

E eis que depois de atrapalhar-se todo no meio da linguagem, dos conceitos e das bravatas, o companheiro Lula, para apaziguar a turba, acalmar o rebanho e tentar preservar a 'dignidade' voltou atrás para confessar que foi mal entendido e que é, sempre foi e sempre será contra o aborto. Uns dias antes ele havia insinuado que se for reeleito, tentará legalizar essa prática.

Independente de sabermos que as palavras já não valem nada, que é sempre o mesmo lero-lero e que os guapecas costumam latir o tempo todo quando percebem alguém se aproximando das cercas, aproveito esse recuo do companheiro, para lembrar o poder que o voto e que a ignorância do populacho exercem sobre os ditos homens públicos. (No passado só se tinha noticias de mulheres públicas!).

Lembram do outro ex-presidente, aquele que num arroubo e num elã de vaidade e de narcisismo declarou ser ateu e queimar uma erva de vez em quando? E que depois, quando o populacho, os eleitores, as donas de casa e a canalha em geral ficou melindrada, voltou atrás para dizer que a erva era apenas cidreira e que, no crepúsculo das quintas-feiras, até acendia uma vela para uma santa de estimação ainda de sua falecida mamãe? E que então o populacho respirou aliviado e nem precisou tomar laxante naquela semana... Lembram?

Se a maconha e o ateísmo (naqueles dias) já causaram um  escândalo daquele tamanho, imaginem o Lula, agora, (que é quase uma reencarnação do Padre Cícero) mencionar a legalização do aborto. Os vigários de batina e os laicos (me refiro aos vigários laicos que ocupam praticamente todas as chefias nos órgãos públicos); às matronas; toda a legião de adubadores da hipocrisia nacional e até às gerentes de bordéis que ficaram com o ciático inflamado e perderam o sono. Cretinos! Bem que poderiam ler alguma coisa de Schopenhauer ou o livro do Julio Cabrera: Por que te amo não nascerás...