"...Quem compreender o macaco, fará mais
pela metafísica do que Locke"
Darwin
Se em cada grão de poeira estivesse albergado um vírus, não só minha casa, mas o prédio inteiro estaria condenado. Leio as orientações na parede: Pegue o rodo, pano vermelho pendurado atrás da porta, um tubo de detergente multi-uso, um chinelo anti-derrapante, esquecer essa montanha de livros, rezar um Pai Nosso, lembrar que tudo poderia ser muito pior, jogar fora o abacaxi que apodreceu, e mãos a obra...
Depois de meia hora, estava louco para desistir... isso é um inferno! Como é que as mulheres do mundo inteiro, em troca de um matrimônio meia-boca, se submeteram a isso durante séculos? Volto a pensar no salário de minha faxineira. Quando ela puder voltar, lhe farei uma surpresa: triplicarei o valor de sua diária.
Mas não é só isso: também lhe apresentarei a conta pelos copos quebrados.
Encontrei cacos até em baixo da cama. E não eram copinhos comprados no 1,99. Não! Minha tataravó os trouxe, sabe-se lá de onde! Nem ela sabia direito de onde era... Em uns destes pedaços que recolhi por aí, ainda dava para ler: made in Tchecoslovaquia.
Mas na base de um outro, vi que foi fabricado em Murano. Sabem o que é isso? Coloco os cacos na cristaleira, em respeito à meus antepassados...
Descanso uns minutos e volto a ler as orientações na parede. Espargir aquele detergente que tem um bico de pato, nas paredes do vaso sanitário. Deixar agindo por uns dez minutos e esfregar muito bem, mas não usar a mesma esponja que usa para lavar a louça na pia.
No box, muita dedicação! Ali podem se armazenar fungos que, de um dia para outro, podem aniquilar o mundo. Quase como uma bomba atômica. Pense no Dr. Bactéria... Esfregar! Misturar tipos diferentes de detergentes! Cuidado para não aproximar muito o nariz dos detergentes, cuidado com as alergias e para não cair e quebrar a coluna ou deslocar a cervical. Cuidado com os cotovelos e com os joelhos. Reze outro Pai Nosso. Pense que tudo poderia ser muito pior. Se faltasse água, por exemplo. Lembre de Katamandú, onde pela manhã, as donas de casa jogavam o conteúdo dos penicos pelas janelas... Imagine amanhã, que é segunda, se você precisasse levantar às cinco da manhã para ir "ganhar a vida!" Esfregue. Para diminuir o desconforto da coluna, fique de joelhos, mas sobre um pano dobrado. Essa posição te ajudará, inclusive, a ganhar o paraíso! Vai rezando... vai esfregando e rezando ou até mesmo blasfemando, é a mesma coisa, o efeito é o mesmo.
Uffa! Vou verificar novamente a lista. Agora passar álcool 70% sobre as mesas, sobre qualquer superfície. Se possível, até sobre a superfície da terra. E não beber desse álcool, espere até a hora de lavar a louça para então tomar um trago de Vermouth...
Caralho!
Um idiota do governo aparece na televisão falando sobre a importância de não ir além do Teto de Gastos.
Lembro das estradas de ferro. Quem irá construí-las? Quando vi o governo contratando milhares de militares, pensei que, finalmente, iriam, a exemplo da Transsiberiana, dar início à Trasbrasiliana. Mas não. O que estão fazendo todos esses soldados nos corredores da burocracia? Quem conhece os labirintos do Estado, sabe que três (03) funcionários em cada Ministério (a moça do café, o moço das relações públicas e o do financeiro) são mais do que suficientes... dariam conta de tudo.
Mas, e a ferrovia? Pergunto a meia dúzia de generais. E eles se desculpam dizendo que não há dinheiro.
Como não? E a Casa da Moeda? Que se fabrique! Ou que se falsifique, dá no mesmo...
Dizem que não há dinheiro, mas no fundo é porque eles têm pânico, um pânico moralista, de serem vistos como inadimplentes...
Pensam como nossos tataravós: Pobres e fodidos, mas não devendo nada para ninguém!
Haverá pensamento mais reacionário, indigente, cristão e mais pobre do que este? Tudo bem, vamos seguir com nossas velhas e românticas carroças, mas como querer que alguém acredite num país do tamanho deste, que não tem ferrovias?
Ora! Que se fodam os credores! Melhor viver endividado num paraíso do que sem dívida nenhuma nos infernos...
Quando estou pensando em jogar-me no piso para descansar, eis que o porteiro me chama pelo interfone para dizer que o moço do mercado esta subindo com as compras. Caralho! Vou às recomendações na parede: não dirigir, em hipótese nenhuma, a palavra ao entregador e lavar tudo imediatamente, de preferência com Limpol: banana por banana; maracujá por maracujá, ovo por ovo; grão por grão no caso do grão-de-bico; a garrafa de vinho; as castanhas de caju...
Caralho!!!
Os sinos de uma igreja vizinha badalam. Lembro que hoje é domingo. Dia do Senhor. E do descanso. O entregador bate à porta. Caralho...
Abro a porta para que ele amontoe as compras no piso. Ele olha espantado para as montanhas de livros espalhados até na cozinha. Pergunta: o que está lendo?
Pensei: será que esse merda, além de entregador, é também repórter? E lhe retruco com a mesma agressividade e com a mesma resposta que J. Prévert deu, certo dia, a alguém, mas sem tirar a máscara:
"Li As Bucólicas, As Provinciais, Os Miseráveis, Os iluminados, As Diabólicas, Os Desencantados, Os Desenraizados, Os Conquistadores, Os Indiferentes...
Ele fingiu entender tudo, arrastou seu carrinho barulhento para dentro do elevador e desapareceu.
Eu JAMAIS acreditarei( mesmo se tratando duma crônica) que você jamais passou um pano no chão sequer! Mentiroso....
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