terça-feira, 23 de janeiro de 1996

O trabalho como ilusão e como perversão


"A cada porcaria que sai de minha boca
eu me sinto mais limpo"
Pierre Louys


O desemprego, longe de caracterizar um problema social, bem que poderia ser o sinal ou o signo de que, finalmente, a humanidade caminha para sua emancipação. Mas não.

Os próprios desempregados, manipulados e mobilizados pela TV, pelos sindicatos, associações e igrejas de todos os matizes, vão às ruas exigir nada mais nada menos do que trabalho. Queremos trabalhar! Queremos trabalhar! Queremos trabalhar!!! Já os que trabalham, quando fazem greve, a intenção não é a conquista do lazer, mas pelo contrário, o fortalecimento dos vínculos com o trabalho e a solidificação das garantias de que estarão empregado por toda a vida. A grande maioria, para o cúmulo da perversidade, faz de tudo para permanecer trabalhando depois de aposentada, dando a impressão de que a própria escravidão se torna vício, de que o ócio sufoca e, por fim, de que o homem faz de tudo para e com os outros, no intuíto de jamais deparar-se consigo mesmo. De tudo o que os gregos e romanos escreveram, o que mais fascina ee exatamente o desprezo que (de Heródoto e Xenofonte a Cícero) sempre expressaram pelo trabalho. Para eles, que haviam herdado esse saber dos egípcios, o trabalho pertencia por direito aos escravos, e eram tão rigorosos nisto, que não permitiam nem mesmo que suas mulheres costurassem, ou tecessem, para não rebaixar sua nobreza. Em sua famosa «Econômica», Xenofonte afirma que as pessoas que se entregam ao trabalho manual não alcançam jamais uma boa posição. Cícero, por sua vez, falando dos ofícios, estava seguro que aqueles que ofereciam seu trabalho em troca de dinheiro, além de vender a si mesmos como prostitutos, se colocavam na categoria de párias. Na obra de Marx (desse homem que recopilou sutilmente os gregos), o que existe de mais interessante é o projeto que prevê não apenas uma melhora nas relações de trabalho (como entendem os sectários), mas a possibilidade de suprimi-lo e de riscá-lo definitivamente do mapa. Nesse particular, por mais ridículo que pareça, é necessário reconhecer que grande parte da elite e da aristocracia mundial, sem necessariamente ser marxista, parece ter conquistado o que ele tanto teorizava, já que não trabalha há mil anos. Já que não fazem nada. Conquistaram o direito de permanecer afastados do trabalho para sempre, mergulahos no ócio, na preguiça, nas banheiras e nas pilhas de dólares. Quando fazem alguma coisa, é mais para exercer o poder ou para desatrofiar a memória. Investem em relojoarias, em lojinhas, em clínicas, em criações de vacas, em garimpos, em frotas de caminhões, em bazares, jóias, fábricas, fazendas, imóveis e outras porcarias que o populacho necessita. Investem sem sair de suas mansões e ficam de longe computando os dividendos, privatizando os mais variados bens do planeta, jogando baralho e vivenciando na prática, o marxismo utópico. Para esses barões do ócio, as duas instituições que na contemporaneidade são o símbolo máximo de toda filosofia greco-romana se chamam: Bolsa de valores e Club Mediterrané. Oito, sete, seis, cinco horas da manhã!

O mundo proletário acorda o mais cedo possível para ligar as turbinas de sua servidão, preso e iludido pelos antigos dogmas e pelo antigo moralismo de que só o trabalho enobrece e dignifica. Mas enobrece como, se a própria nobreza nunca trabalhou? Dignifica como, se na imensidão da turba trabalhadora só se pode perceber humilhação e escravismo? É imensamente doloroso passar pelos fundos das construções, lá pelas três horas da tarde, na hora em que o sol derrete o cérebro, e ver a dedicação e o martírio desses homens que dão suas vidas em troca de uns grãos de arroz e da promessa falsa de que o trabalho eleva.
No Conjunto Nacional, apesar do tipo dos trabalhadores ser outro, o drama é o mesmo: chefetes, subalternos, autônomos e outros gêneros de escravos, com roupas de mórmons, que correm em alta velocidade, que desfilam de lá para cá como se fossem donos de alguma coisa ou como se o planeta estivesse em chamas. As calças suadas no traseiro, olheiras de abatimento e uma falsa serenidade na fala enquanto lá na calçada, um carro forte espera, para transportar ao banco os lucros do dia... Nos ministérios o tédio e a solidão tornam a jornada de oito horas ainda mais vil. O relógio, o calendário, a folha de ponto, a cumplicidade com os governos de turno que, de tão tenebrosos, nem sequer permanecem na história... E a tudo isto se costuma chamar trabalho. Os ônibus chegam de longe trazendo homens e mulheres sonolentos que exibem um crachá no peito e que entram monotonamente nos prédios, em filas, marchando, como se estivessem a caminho do matadouro, e que vão consagrar seu tempo e sua vida na edificação de um mundo absurdo que não lhes diz respeito em nada... E é impressionante observar que praticamente todas as sociedades ditas modernas, padecem desse mal. Do mal de trabalhar e de fazer trabalhar.

Hoje são oito horas, mas ontem chegaram a ser vinte. As correntes foram substituídas pelos relógios e a náusea trabalhista pela ilusão ingênua de que o trabalho, além de tudo é também um truque terapêutico. Para isto, lógico, existem os sociólogos, os psicólogos, os administradores e os vigias que garantem o condicionamento e a ordem, para que o teatro produtivo não se degenere em «vagabundagem».

No lugar da paixão a produção.

E depois, por mais sutil que seja seu funcionamento, a ordem repressiva tem no trabalho e nas regras que o regulamentam o melhor de seus instrumentos. Para quem aceita servil o peso das 44 horas semanais, alguém sem rosto e sem identidade lhe concederá um título de cidadania. Aos outros, aos que, pela razão que for, descambarem para a preguiça e para o ócio, a mesma entidade se apressará em sufocá-los. Ah, o trabalho, o suor e a fadiga!

No campo de Concentração Nazi de Theresienstadt, na Bohème, os prisioneiros podiam ler: Le travail c¹est la liberté.

Mentira. Quem trabalha o faz sempre para um patrão, seja ele pessoa física ou jurídica. Num extremo o antigo opressor feudal, no outro o santo Estado moderno. Apesar dos disfarces, o discurso é o mesmo.

Entre os antigos regimes com campos de trabalho forçado e os governos neo-liberais da atualidade não há nada que seja verdadeiramente diferente. Confúcio, Nero, Mao-Tsé-Tung, Kennedy, a Encíclica Papal, o Fugimore e o Fernando Henrique, todos são sal de um mesmo saco, continuadores da mesma política e da mesma idiossincracia escravocrata. Para todos eles, de Poncio Pilatos a Strossner, o trabalho entra no cotidiano da existência invariavelmente como uma necessidade primordial. Mas todo mundo percebe que por debaixo de suas idéias e de seus discursos diplomáticos subjace sempre e sempre tanto a neurose da produção como a apologia da fadiga. Na essência, o trabalhador, por mais bronco que seja, intui que nada é mais abjeto e mais vil do que o trabalho... mas, estranhamente, permanece nele e em sua jaula, como se estivesse perdido num transe hipnótico. Precisa comer! E esta compulsão pela comida faz do estômago o precursor de todas as escravidões. É por isso que a passagem dos alimentos, da natureza para os armazéns, foi o golpe definitico contra todas as possibilidades de autogestão.

E assim, século após século o inferno do trabalho não cessa, fazendo com que o circo da honradez laboral permaneça intacto, mesmo quando os sujeitos já não possuem mais nem sequer um nome, onde o tempo é tudo e onde cada um só vale pelos músculos que tem. Como não existem mais parâmetros éticos, ficam reduzidos a tolos alienados e cansados que sentem-se extremamente felizes com os sábados e com os domingos, quando podem, finalmente, repousar e esconder-se de um mundo que, sempre que pode, os degusta e os cospe...

Daí a importância de lembrar ­entre uma jornada e outra-, que o trabalho é a raíz de um mundo desenraizado; o crack do povo e o espírito capitalista de uma época decapitada, cujo paradoxo mais cínico é a tentativa de enriquecer toda a humanidade pauperizando todos os seus elementos.

Ezio Flávio Bazzo