domingo, 22 de maio de 1988

Os simbolos e as formas de sexo


À beira das grandes rodovias dos países desenvolvidos, nos últimos trinta anos, houve uma proliferação de estalagens próprias para abrigar turistas e carros. Estas estalagens receberam o nome de motéis. Evidentemente, ninguém poderia imaginar que os países do terceiro mundo iriam importar e transformar essa idéia em ambientes marcados por uma curiosa ambigüidade onde a "pureza do amor" divide o espaço com a "canalha da marginalidade"; onde a "privacidade dos amantes" é garantida e controlada "publicamente" por porteiros e garagistas... verdadeiros "donos" do amor, da noite, da semen-teira murada desses refúgios.

Um fato interessante nesses motéis é a luta inconsciente que seus proprietários, numa tentativa, talvez, de administrar suas culpas, empreendem, no sentido de assemelhá-los arquitetonicamente a mosteiros. A discrição da entrada e da saída, a privacidade do quarto, a saleta onde a garçonete deixa a bebida, a intensidade das luzes, a cama em forma de altar, a piscina, a escova de dentes, a água de colônia, os vídeos, os espelhos...todas essas "coisas" são verdadeiros símbolos religiosos. Sabermos, por
exemplo, que é na penumbra que acontecem todos os rituais religiosos, os feitiços, as magias, as desencarnações, etc. Além disso, a penumbra serve para que os "amantes" não se vejam, não se enxerguem, não se relacionem verdadeiramente. O lugar é para louvar a clandestinidade e se eu não "a vejo", então tenho a liberdade de fantasiá-la segundo minhas próprias necessidades e nem sequer tenho a obrigação de "lembra-la".

A circunferência da cama é pitagórica e rosacruciana. Sua presença nos motéis se deve à necessidade de fusionar o maldito com o sagrado, o legal com o delito, o mal com a transcendência. As camas circulares ou redondas podem ser um simples truque, mas podem também estar inconscientemente representando o movimento circular da vida, a volta irremediável dos amantes ao mesmo lugar, o eterno retomo à mediocridade do próprio ato sexual. As mesas onde os seres humanos comem também são quase sempre circulares... sexo e comida são elementos atados... copular e comer... duas coisas para ... ! (Céline)

Existem também as piscinas, as duchas, as águas de colônia, etc., tudo secretamente religioso, através do que os "pecadores" podem exorcizar-se, limpar-se, purificar-se, corporalmente e "orgasmicamente" antes e depois de praticar o "vício".

As casas mais luxuosas, os motéis mais modernos oferecem aos clientes filmes pornográficos e eróticos que, longe de serem assistidos para interferir na excitação ou de servir de instrumento ilustrativo, servem mais bem para amenizar a culpa dos amantes e, quase sempre, para disfarçar o medo que antecede o desejo e o tédio que advém da ejaculação.

Em poucas palavras, os motéis representam, outra vez, as forças mistificadoras e fetichizadoras das sociedades, sejam elas capitalistas ou socialistas. São engendros do impulso religioso que, desde os mais remotos selvagens, têm sabotado a consciência e criado problemas para a vida. A única novidade talvez, é que, agora, o objeto sagrado é o phalo, a vulva, o abraço desesperador desses dois "deuses" que, por ser incompatível com o pensamento e com o raciocínio, deve acontecer no escuro, sob os lençóis, na clandestinidade de casas alheias, pagas para tapar os ouvidos e para simular miopia. As filas de automóveis nos motéis são idênticas às filas nos postos de gasolina... em ambas, quase sempre, se entra para "trocar o óleo" ou, para "rever os freios".

Por mais metafísico que tudo isso pareça, não é por acaso que na semana passada em São Paulo, uma sociedade religiosa transformou um antigo motel em um centro de atenção aos portadores do vírus da AIDS. A mensagem está visível: Curar o mal ali onde o mal foi adquirido. Também não é por acaso que alguém escreveu nos muros de um desses motéis da periferia: acreditas na vitória do amor admirável sobre a vida sórdida ou da vida sórdida sobre o amor admirável?

Ezio Flavio Bazzo

quinta-feira, 7 de abril de 1988

Vagabundo na China



Portando uma câmera Canon e diversas lentes, seu olhar arguto, seu sentir trabalhado e sua forma peculiar de interpretar o mundo, Ezio Flavio Bazzo foi até a China em 1991, como vagabundo – aquele que não tem compromisso nem consigo mesmo – e nos trouxe este livro exótico, no formato e no conteúdo.

- Seria um tablóide com notícias sobre o país de Mao? - Seria um livro que passa em revista toda a concepção histórica deste mundo monumental, assim num piscar de olhos? Seria um guia de viagem para pessoas mais exigentes? Seria um documentário para o mundo ou seria um livro para ninguém?

O livro é tudo isto reunido. Algo meio indefinido que contém impressões, sensações, referências, pinceladas, cliques que o autor parece ter feito para guardar para si, mas os divide conosco. Pequenas doses de uma China que ninguém viu, episódios que ganham significado no relato pela forma como são apresentados.
No formato, se apresenta maior que os livros comuns, suas orelhas são de abano, seu texto está divido em duas colunas, está ricamente ilustrado com fotos do autor e antecedendo a folha de rosto, o título da obra aparece desenhado em ideogramas chineses. Abaixo, uma nota bazzoniana, completamente cínica: Título traduzido para o Chinês por M... Uma chinesa anônima. Na abertura, um pensamento de Chateaubriand – As pessoas que nunca navegaram têm dificuldade para entender os sentimentos que se experimenta quando, do convés do navio, já não se vê mais do que a face austera do abismo.

Assim, ele nos apresenta à China.

No recorte, é o livro que mais revela o autor, seu sentir incomum, suas experiências simples e plenas de significados, a fala e o olhar do homem que transita bem pelos planos heterogêneos da realidade e da alma e desliza sorrateiramente para o entendimento maior da vida, onde tudo se aproxima e se assemelha. É a câmera virada para si mesmo mas cercada das cores da China, do existir deste povo que os ocidentais jamais compreenderão suficientemente.

O livro nos leva embora e só nos traz de volta no que ele denominou de “epílogo inesperado” onde recebemos de presente uma entrevista que Emil Cioran concedeu a um jornal francês. Cioran, considerado pelo autor, o filósofo mais interessante da atualidade, fecha o livro, assim, sem mais nem menos. Como se tudo, de fato, estivesse interligado, e não percebêssemos, este é um livro que nos leva com maestria para as dobras da nossa emoção introspectiva – esta grande e maravilhosa viagem!

Maria Helena Sleutjes