sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A rameira número quatro do Cazaquistão


As recentes declarações do escritor Paulo Coelho afirmando solenemente que ele é o intelectual mais importante do país deixou muita gente encolerizada. Os professores-doutores que ao longo de suas carreiras não conseguiram vender mais de uma centena de suas obras; os poetas que penhoraram suas casas para editar suas inapreciáveis obras; os eruditos que década após década vieram dormindo sobre pergaminhos e enciclopédias assim como centenas de outros presunçosos estão em pavorosa. Como é possível tanta impudência e tanto descaramento! Perguntam-se entre eles. Houve até quem declarasse recentemente que ser o intelectual mais importante deste país é mais ou menos como ser a rameira número quatro do Cazaquistão. Tudo bem! Mas como esquecer os cem milhões de livros vendidos? Como ignorar os palacetes? As grifes? As condecorações? As ruas, os coctéis e os templos que levam o seu nome? E o pior: os trezentos milhões de dólares em dinheiro vivo em sua conta bancária? Digam o que quiserem os ressentidos e os invejosos, mas para mim, o Paulo Coelho fez para a filosofia e para a sociologia o que nem um outro intelectual foi capaz: demonstrou com sua obra, sem grande esforço (e na prática) que a espécie, a humanidade, as pessoas em geral são alienadas, torpes, fúteis, repugnantes e que só adoram e consomem aquilo que se lhes assemelha.

Ezio Flavio Bazzo

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Veneza e a Grande Marcha

“Nós afirmamos que a magnificiência do mundo
foi enriquecida por duas novas belezas: a dos grandes vôos e a da velocidade.
Marinetti

Só quem chega a Veneza pelo mar é que pode dizer que tem uma visão real e verdadeira desta cidade. Os cinqüenta minutos em que o navio grego vai vagarosamente se introduzindo pelo Canal de la Giudecca e que esta cidade sobre troncos vai se desvendando diante de nossas câmeras são suficientes para fazer-nos um pouco menos misantropos. Como foi possível transformar aquele medievo aglomerado de pescadores vivendo sobre palafitas nesta obra genial, placentária e indescritível! O mar não apenas lambendo as muralhas e as paredes, mas embalando aqueles blocos imensos de concreto, com seus telhados oblíquos e suas janelas minúsculas e simétricas. Os canais como artérias entre uma parede e outra, as sombras cortando ao meio tanto os jardins como os varais e os gerânios multicores despencando sobre as estreitas vias que lembram as medinas mouras e que insinuam a urbe perfeita. A primeira pergunta que tive que responder a mim mesmo, ainda aqui no convés foi de ordem antropológica: quê tipo de demência deve ter feito meu bisavô desertar daqui para embrenhar-se definitivamente na selva brasileira? Os vaporetos, as gôndolas, as lanchas, os barcos aparecem e desaparecem num piscar de olhos por debaixo das pontes, dos edifícios, dos palácios, dos porões, dos esgotos... Do telhado de um velho albergo um gato sonolento parece acompanhar as manobras do navio e o frenesi de seus passageiros diante de todo aquele deslumbramento... Soube mais tarde que são animais de olhos verdes provenientes do Egito e da Síria. Dizem que, há centenas de anos, Veneza além do paraíso dos mercadores foi também o paraíso dos ratos, dos mesmos roedores que a Inquisição chegou a considerar créatures de Satan.

Para proteger arquivos, documentos, livros, queijos, salames, mercadorias etc., os astutos comerciantes venezianos não encontraram uma alternativa mais ecológica do que a de importar das arábias esses simpáticos e sóbrios felinos... Com seus quase trezentos mil habitantes e suas mais de cem pequenas ilhas, Veneza é o lugar que qualquer um gostaria de passar uns dois anos sem fazer nada, apenas zanzando de um lado a outro, olhando abobalhado para aquelas construções seculares, para aqueles detalhes gótico-bizantinos, aqueles labirintos que invariavelmente conduzem o caminhante para uma surpresa mais fascinante que a outra. Enquanto o navio vai fazendo as últimas manobras qualquer um se surpreende tentando adivinhar como devem ter sido exóticos e libidinosos os dias em que Marco Pólo ancorava aqui suas frotas repletas de novidades e a Piazza San Marco fervilhava de negociantes, de madonas e de curiosos. Sacos de pimenta, rolos de seda, pedras preciosas, drogas, mármore, chás, ébano, canela, lendas, animais e outras preciosidades trazidas da Índia, da China e das Arábias. Os motores silenciam, os portões são abertos, os passageiros descem ansiosos e sorridentes. Na parede da alfândega, como insinuando uma recepção singular foi rabiscada – por um marinheiro ou por um mendigo? - uma citação do filósofo Leopardi: Nesse mundo, vive-se apenas de prepotência. Se não quiseres ou não a souberes aplicar, os outros hão de aplicá-la sobre ti. Mesmo sem ser supersticioso, como não ficar com a pulga atrás da orelha depois de um alerta tão explícito destes? 

A CHEGADA

A chegada em outro país é sempre um momento especial. Quê idioma falar? Que moeda usar? Tomar táxi ou metrô? Um hotel ou um albergue? Particularmente em Veneza, nenhuma imprudência é maior do que a de chegar sem uma reserva de hotel. Apesar dos arredores da estação de trem e da Piazzale di Roma estarem repletos de hotéis antigos e simpáticos, de uma, duas, três ou cinco estrelas, estão sempre lotados e são caros. A sóbria atendente de um dos quiosques da Associazione Veneziana Albergatori depois de lembrar que Veneza está lotada, fará mais duas ou três ligações e acabará por arranjar uma “única” vaga por trezentos euros. Trezentos Euros? É o único que temos – responderá ela, para em seguida justificar que “é final de semana”, “que é primeiro de maio”, “aniversário do bispo”, “semana das regatas no Grande Canal”, “dia do gondoleiro”, “festa della Sensa” etc. Momento em que nos lembramos do alerta de Regis Debray de que a cidade dos teatros, das óperas e dos bailes ela mesma é um teatro. A praça fervilha de gente de todos os cantos do planeta. Vinte milhões de turistas circulam por aqui todos os anos cada um com seus sonhos e com suas câmeras amarradas ao pescoço. Quem tem suas reservas feitas entra tranqüilo uma daquelas ruelas estreitas, compra logo os bilhetes para ir dar uma olhada na Igreja gótica da Madonna Dell’Orto onde estão algumas das mais badaladas pinturas do Tintoretto e onde ele próprio está enterrado. Depois dobra à direita, toma um transporte aquático e desaparece. Os que não foram tão precavidos ficam por ali arrastando as malas ou as mochilas sem saber o que fazer. Mas não terão nem tempo para desanimar. Alguém logo lhes lembrará que existem as cidades vizinhas onde sempre há vagas nos hotéis e os preços são razoáveis. Na cidade industrial de Mestre – por exemplo – a vinte minutos de Veneza, no outro lado da Ponte della Liberta, um bom quarto com um banheiro monárquico e impecavelmente limpo custa 50 Euros para o casal. Além disso, tem a vantagem de, na esquina, ter uma padaria onde se pode montar um estupendo sandwich de mortadela ou de salame por 4 Euros e no outro lado da rua um café chinês onde dois cornettos e um capuchino custam quatro Euros. Que as chaminés desta cidade estejam permanentemente fumegando, isto é o de menos. 

A GRANDE MARCHA

Com um tênis confortável, um sandwich e uma garrafa de água na mochila é a hora de rumar para antiga lagoa. Aqui tudo começa na Piazzala di Roma. Aqui iniciam os mil e um caminhos que levam à Praça San Marcos ou a lugar nenhum. Aqui começa o trottoir de quase todo mundo que vem para cá e ziguezaguear durante horas e sem destino por entre o gótico e o bizantino desta antiga república aristocrática pode ser a experiência mais fascinante da vida do sujeito. Lembrar que foi fundada no ano 400 é um poderoso vitalizante. Duas, três, quatro horas por estas ruelas medievais. Em ziguezague pela esquerda, depois pela direita, depois uma reta claustrofóbica. Opa! Um beco sem saída. Iniciar a volta pela beira do canal até uma ponte. De vez em quando – ninguém vai negar – sobe um cheiro de esgotos dos canais. Sobre nossas cabeças sempre os janelões floridos.
Lá está a flecha vermelha indicando Rialto. Rialto, todos sabem, é uma das três pontes mais famosas da cidade. O rico judeu Shilock, do Mercador de Veneza (Shakespeare) tinha negócios ali. Hoje mudaram os gêneros dos produtos que se vendem lá, as negociatas continuam as mesmas. Existe também a ponte Dell’Accademia, Degli Scalzi e a Del Sospiri. Cada uma com uma história mais melodramática do que a outra. Segue-se no ziguezague. Muitos bares e lojas de chineses. Estariam querendo resgatar os antigos furtos perpetrados por Marco Pólo? De repente um movimento em circulo pela direita e eis que se dá de cara com o paredão de uma igreja. Nada mais nada amenos que a famosa Santa Maria dei Frari. São tantas que, parafraseando a Vargas Vila permanecer ateu por aqui é a prova total de ateísmo. Butiques, pizzarias, casas especializadas em macarroni, um luthier, um pintor de rua, os varais repletos e velhos venezianos nas janelas. Os moradores daqui têm um sentimento ambíguo pelos turistas. Ruim com eles pior sem eles! Eis aí a dialética miserável e triste da condição humana! Ainda é possível encontrar venezianos que não abrem mão das origens venetas e de sua história de mil anos a.C. Consideram-se tão italianos como os bascos e os Catalães se consideram espanhóis.
Ricos, milionários, remediados e pobretões se cruzam pelos becos, pelos canais, pelas pontes, pelas gôndolas, mas sem que ninguém torça o nariz para ninguém. Veneza aparentemente democratiza! Socializa! Alguém pergunta onde fica o antigo gueto judeu. Outro quer saber onde vivia o Dodge e onde o Casanova ficou preso. Um casal em lua-de-mel quer saber como contratar uma serenata de gondoleiros. É verdade que algumas cidades infantilizam bem mais do que outras. As flechas vermelhas continuam indicando Rialto e Piazza de San Marco. Já as verdes indicam as toaletes que são sempre longínquas, muito caras e onde sempre há filas. O problema do WC é tão sério aqui, que até está incluído na Venice Card Blue que se compra por 40 ou 60E e que dá direito de usá-las à vontade assim como aos ônibus e aos vaporetos pelas águas do canal. As pernas e os músculos pedem uma trattoria ou pelo menos um pedaço de pizza. Os pés querem apenas um Band-Aid. Lá vão os gondoleiros conduzindo uma família de indianos. 70E por meia hora. Com seus uniformes parecidos aos de presidiários um vai cantando e remando enquanto o outro distrai os passageiros com seu acordeão. Tutto Belo! Tutto Perfecto! Venezia é um paradiso! Não se ouve mais como em outros tempos a conhecida O sole mio. que era uma música de Nápoles e que os napolitanos a interditaram. Cada vez mais o mundo vai se tornando um mundo de Direitos Autorais. Paciência. É a Commedia dell’Arte! Vedere Venezia e dopo morire!

PRAÇA DE SAN MARCOS

Quando o trânsito nas ruelas começa a ficar mais congestionado é porque se está chegando à Praça de San Marco, considerada o umbigo de Veneza assim como Veneza já foi considerado o umbigo do mundo. Foi aqui que em 1989 Pink Floyd deu um de seus melhores shows e que nos períodos de Acqua alta tudo fica inundado. Lá está a Torre do Relógio, peça do séc. XV. O Campanário e o Palácio que foi residência dos duques e também prisão. A multidão se acotovela e os pombos fazem festa. Dizem que há mais de 50 mil desses bichos voando por aí e emporcalhando as belas e sacras estátuas. Aqueles que não estiverem num dia de sorte podem sair daqui com um carimbo fecal no colarinho. Garçons, fotógrafos, guias, uma família de zingari, filas nas escadarias do Palácio dos Doges e gaiteiros. O famoso café Florian. Violinistas, perfumes caros, encontros, suspiros, noivados e casamentos. Muitos casais vêm casar-se em Veneza e ficam desfilando abobalhados por aí fazendo fotos românticas com beijo na boca e tudo, jogando punhados de arroz sobre a grinalda da moça e sobre o paletó Armani do noivo. Tudo bem em frente ao portal principal da Basílica de San Marcos com seus espetaculares mosaicos barrocos. Para não incentivar e engordar os pombos uma lei da prefeitura tenta impedir esse ritual do arroz nos casamentos, mas... E as mulheres que quiserem entrar na Basílica devem estar com os seios bem acomodados e com as pernas bem cobertas se não quiserem ser barradas por uma beata ou por um coroinha. Vivaldi, o autor das Quatro Estações, filho de um barbeiro violinista nasceu aqui e tocava na Orquestra da Capela de San Marcos. Outro músico importante que escreveu o Canticum Sacrum especialmente para esta Basílica foi o russo Stravinsky que, aliás, está enterrado no Cemitério veneziano.
Mas a Praça de San Marcos é apenas uma referência, pois a grande marcha continua ao léu pelos arredores. Não é verdade que Veneza “é uma droga que só é doce na primeira “viagem”“. Pode até ser uma cidade-escargot, como queria Debray, mas não perde em encantamentos e em mistérios para nenhuma outra. Só o fato de não existirem automóveis pelas ruas já a assemelha a um shangrilá. Ziguezagueando se chegará também ao Museu Accademia, à Fundação Guggenheim e a famoso Museo do Settecento. Mas os museus e as catedrais são só uns pretextos. Mesmo que exista ainda muita gente que queira ver a todo custo a Maria Madalena de Bellini, o que interessa mesmo são os trajetos, o vai-e-vem, o sobe-e-desce espremidos entre as paredes, os motores dos barcos, o movimento das gôndolas e a agitação popular com seus compromissos naturalmente inadiáveis. O prazer maior da viagem - principalmente aqui em Veneza – está nas horas em que se hiberna ao sol dos cafés, das tratorias ou das osterias, lendo um fragmento do séc. IX, vendo o mundo passar ou enquadrando no visor a mulher despenteada e semi-nua que abre o janelão do quarto andar para regar amorosamente seus gerânios.

O LEÃO: EMBLEMA DE SAN MARCOS

Alguns visitantes ficam bem mais entusiasmados com o Leão de San Marco que é também o emblema de Veneza e que está por todos os lados do que com os já mil vezes visitados nus femininos de Tiziano. Pode-se ver esse leão numa das duas colunas da Piazzetta, num dos lados da Torre do Relógio e também no Campanário. Já esteve em quase todos os navios venezianos e nas moedas antigas do Império. Observa a turba lá do alto, imponente, com suas asas abertas e exibindo um livro com uma frase ilegível. Dizem que se tornou o símbolo da cidade lá pelo ano 828 com a chegada das relíquias do evangelista trazidas da Alexandria por dois comerciantes de obras de arte. Apesar de poucos visitantes saberem, também estiveram espalhadas por Veneza (em épocas de chumbo e de execuções) umas caixas de ferro em forma de boca de leão que serviam para recolher denuncias anônimas. Instaladas pela inquisição uma em cada bairro e uma em frente ao Palácio do Doge, essas “bocas de leão” facilitavam a vida dos delatores e complicavam a vida dos hereges.


E A GRANDE MARCHA CONTINUA...

Da Praça de San Marco o fluxo descamba naturalmente para a beira mar, pela Riva degli schiavoni passando pelo Museu Naval Histórico até o Parco delle rimembranze. É nesse parque que o visitante mais atento descobrirá escondida no meio da vegetação uma estátua representando a Inveja que é de arrepiar. Ao longo desse trajeto o desfile da turba é mais visível e o trânsito de barcos, navios, vaporetos, lanchas etc. nas águas do Adriático é quase como o de nossas ruas ao meio dia. Os calcanhares pedem mais um esparadrapo. O sol é quase tropical, a beleza e a harmonia da arquitetura e principalmente das janelas deixam os visitantes hipomaníacos. Fotos, compras, sorvetes, cafés, reproduções de Tintoretto, de Tiziano e de Veronese. Gôndolas, muitas gôndolas. Idas rápidas a Murano ver as fábricas de vidro e a Butano ver as rendeiras, ou então até o Lido ver o antigo cemitério judeu e apostar uns Euros no Cassino Municipal. É neste calçadão que uma legião de negros simpáticos e astutos vindos do Senegal tenta vender objetos de couro e outras mercadorias aos turistas e são sistematicamente reprimidos pelos carabineiros. Sorte desses africanos que não existe mais os Conselhos e os inquisidores do século XV. Eram eles que controlavam e nobreza e os Doges. E o faziam com tanto rigor que pelo menos oito Dodges foram sentenciados à morte. E por falar em morte, todo mundo – ou pelo menos os levemente necrófilos - quer tomar um vaporeto e ir até a ilha de San Michele transformada no cemitério dos venezianos. É lá que estão os restos mortais do Stravinsky e também os do poeta Ezra Pound. Um funeral aqui é quase indescritível e só é menos exótico que os de Bénares, na Índia. O morto num vaporeto funerário, a família de preto em pé no convés, as rezas, o mar, as gaivotas, o vento e por fim o silêncio tumular de uma ilha.

INTELECTUAIS, APOSENTADOS E VIVALDINOS

Muita gente que se aposenta pelo planeta a fora planeja vir para Veneza passar uns tempos no Hotel Cipriani, fazer um ensaio fotográfico, freqüentar o cassino, escrever um livro, resgatar uma relação amorosa, montar um albergo, uma galeria de arte ou coisa parecida. Isto, quando não vem especialmente para escrever a história das cinzas do Teatro Fenice ou até mesmo para mendigar. O preço de um ponto de mendicância aqui na esquina da Praça de San Marco – segundo fontes clandestinas - pode valer muito mais do que se pensa.

Sabe-se de vários personagens nesta situação por aqui. Oferecem singelamente aos turistas não apenas tours literários, mas de todos os gêneros. Uns para conhecer ateliês, outros para visitar os bares onde este ou aquele escritor famoso freqüentou e até uns que conduzem os curiosos aos endereços e aos locais descritos em obras de ficção. Em que parte de Veneza Thomas Mann situou seu livro Morte em Veneza ou Shakespeare seu Otelo, por exemplo.

Outros vieram para cá porque não querem perder nenhum carnaval, nenhum Festival de Cinema e nenhuma das Biennale de Arte di Veneza que acontecem por aqui desde 1895. Alguns desses exóticos guias gostam de levar os turistas à Igreja Santa Maria da Saúde enquanto vão relatando detalhes da peste que tanto em 1576 como em 1631 causou estragos por aqui. Enfim, Veneza, que já no século XVII tinha mais de vinte teatros, que foi praticamente o primeiro centro de impressão de textos musicais da Europa, que lá por 1230 teve o primeiro colégio de médicos cirurgiões do mundo, que nos últimos cem anos já cedeu 25 cm é também um show de pirados, maníacos e desvairados de todas as ordens que de quando em quando aparecem por aí sobre uma gôndola recitando desde Leopardi até poemas do século XII, de autoria do veneziano Bartolomè Zorzi. E são incontáveis os escritores que escreveram suas obras aqui ou que tiveram Veneza como cenário. Henry James, Ezra Pound, Lord Byron (que escreveu Um libertino em Veneza), Sartre, Vargas Vila, Jan Morris, Carlo Goldoni, Hemingway, Paul Morand, Gabrielle Wittkopp, Proust, Hugo Pratt (que escreveu Veneza Secreta), Phillip Sollers etc., sem esquecer o filósofo e falastrão Giacomo Casanova que foi o terror das donzelas venezianas e que inspirou uma legião de autênticos picaretas pelo mundo a fora.

O sétimo dia é dia de arrumar as malas. Veneza amanheceu com uns chuviscos como se quisesse presentear aos forasteiros com mais um de seus espetáculos: o dos guarda-chuvas multicores dos venezianos deslizando em câmera lenta pela corcunda das pontes lembrando uma das monstruosas centopéias que Marco Pólo jurava ter avistado ao redor do mundo.

Ezio Flavio Bazzo

sábado, 23 de agosto de 2008

Eis aí a legião dos indiferentes


Brasília parece respirar serena e aliviada depois de assistir o cerco policial à farmácia da Ceilândia e à eliminação do adolescente seqüestrador com um tiro devastador na cabeça. Ninguém está interessado em fazer uma retrospectiva da existência miserável daquele garoto, pois essa empreitada obrigaria todos a fazer um enfrentamento doloroso com o espelho. É provável que o próprio policial encapuzado, antes de apertar o gatilho tenha tido a certeza desesperadora de que estava eliminando uma parte de si mesmo naquele pobre assaltante. E o mais assustador disso tudo é que essa legião de indiferentes segue insistindo que é cristã, evangélica, budista, humanista, maçom e até socialista. Além disso, eu mesmo, nas poucas vezes em que entro numa farmácia e vejo os preços superfaturados daquelas porcarias inúteis, tenho um desejo intenso de mandar todo mundo jogar-se no chão e gritar-lhes: isto é um assalto!


Ezio Flavio Bazzo

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Faltou vara em Beijing


Nós que consideramos a profissionalização dos esportes algo análogo à profissionalização dos exércitos - uma usina de mercenários - podemos ver e analisar os fiascos e as derrotas do Brasil nas Olimpíadas com outros olhos. Todos aqueles vacilos, todas aquelas exclamações domésticas diante das câmeras, todos aqueles prantos, beijos afetações e declarações de amor a Deus, aos pais e às famílias, as birras e as zangas diante das frustrações, as rodas de orações antes, nos intervalos e no final das competições etc., tudo isso, além de suburbano tem muito mais a ver com o caráter e com a personalidade de que com o talento e com a técnica. Seria muito mais saudável e soberano para a população em geral e repercutiria, evidentemente, no mundo esportivo se já lá no primeiro grau nossas crianças ouvissem bem menos a Chico Xavier e bem mais a Descartes.


Ezio Flavio Bazzo

sábado, 16 de agosto de 2008

Algemas ou esposas


"O uso das tais algemas - que, em castelhano, são, curiosamente, conhecidas por esposas - vêm tomando uma importância descabida no blablablá do cenário nacional, como se fossem o signo maior da desonra e da humilhação. Não são. Podem até ser no universo dos novos ricos, dos gatunos dissimulados e da pretensa aristocracia, mas não têm essa importância lá entre os historicamente deserdados. Lançar os holofotes neste momento e pelo motivo que todos sabemos, sobre 'quem', 'quando' e 'como' fazer uso das algemas é estar cinicamente empurrando o interesse maior para as sombras. É estar querendo dar atenção exagerada às moscas para não ter que identificar a carniça, querendo fazer um melodrama sobre uma praxe menor, que se pode mudar com um simples memorando, para poder seguir ocultando uma Justiça ainda monárquica comprometida da cabeça aos pés com os vivaldinos endinheirados. Enfim, é necessário ser muito tolo e muito singelo para acreditar que a regulamentação do uso das algemas (a Lei Dantas?) venha, daqui para diante, benificiar algum pé rapado. E acreditar que essa demagogia signifique algum avanço civilizatório entre nós é não compreender que, neste país das gentilezas - invertendo a lógica do pensamento de Câmara Cascudo -, é comum fazer um escândalo com a enchente do rio Potegy para não encarar a idéia e a necessidade de um dilúvio."


Ezio Flavio Bazzo

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A democracia dos babacas


Curiosa e maligna a insistência da mídia a respeito das "estrições democráticas" e das "censuras" vigentes no Estado chinês. E não faço esta observação movido por algum tipo de nostalgia ou de romantismo maoísta, mas por compreender que essas opiniões e essas críticas, mais libertinas que liberais, a respeito daquele país, estão fundamentadas num mal entendido. Baseadas numa crença equivocada e pueril de que nossa democracia sim é que é plena e verdadeiramente transparente e, que, portanto, pode servir de modelo para alguém. Ora, que demonstração de ignorância! Os arroubos de autopromoção a respeito da nossa suposta liberdade, os panegíricos em torno da pretensa visibilidade social, da presunção de que nossas políticas são plenamente republicanas etc., são bobagens e miopias que não convencem praticamente a ninguém, uma vez que vivemos em plena guerra fratricida e em descarada liberdade condicional. Uma vez que a tal transparência acaba no guichê do primeiro órgão público, na mesa de qualquer gerentezinho de banco ou no balcão de qualquer delegacia de polícia. E depois, todos somos testemunhas de que as últimas décadas foram pródigas em obscurantismos e em transações veladas neste país, e que o Estado, com seus respectivos poderes, tem sido mais um esconderijo, uma caixa preta e um bunker de segredos ideológicos e mercantis do que outra coisa.

Ezio Flavio Bazzo