quarta-feira, 23 de abril de 2008

A elegância é frígida


I – A globalização da blenorragia - As aeromoças abrem bruscamente as cortinas deixando entrar a luz e os reflexos da aurora que despenca sobre uma Roma ainda sonolenta e ladra. Dez horas amarrados como bacalhau, mas sem nenhum grande solavanco e sem nenhuma perceptível evidência de hecatombe. Muitos italianos bronzeados e felizes voltando do Brasil. Mesmo que tenham que passar os próximos seis meses tratando da clássica gonorréia, nada diminuirá neles a ilusão Casanovesca experimentada lá junto às nossas astutas e singelas adolescentes praianas. O Corriere de la Serra de bordo, fundado em 1876, coincidentemente noticia o estupro de uma americana em Roma e o de uma artista italiana na Turquia. Todas variantes de um mesmo fajuto e interditado amore. Depois de tantas idiotices travestidas de afeto, como não ir tomando consciência de que realmente "si sono pio lacrime in una cipolla che in cento storie d'amore?" (Aeroporto de Roma)


II - Por incrível que pareça, o que existe de melhor e de mais fascinante aqui em Atenas é uma pequena livraria francesa. Esses amontoados de pedras, essa poeira levitante e esses escombros pré-socráticos que no passado chegaram até a fascinar-me, agora me causam uma espécie rara de impaciência, de desprezo e de horror.

Foi nessa livraria onde comprei uma pequena relíquia que menciona o filósofo Peisithanatos (aquele que convence a morrer). Nessa obra pessimista que chegou até ser proibida pelo rei Ptolomeu no século IV a.C. o autor incentivava os leitores nada mais nada menos que a se matarem. Assunto que veio a ser retomado mais tarde por outro grego ilustre, o senhor Platão, em seu Phédon, cuja leitura também levou muitos jovens ao suicídio. Além dessa pseudo novidade, o que mais se vê nesta insólita Atenas são os rebanhos de turistas indo daqui para lá, saltando de uma pedra a outra como cabras e disparando seus flashes em todas as direções.

Quando o sol se põe, descem exaustos do Acrópolis para os restaurantes e empanturram-se com azeites, vinhos e com as conhecidas carnes de porco que dançam nos espetos verticais. Tudo ao som das gaitas dos ciganos que, de mesa em mesa, com seus dentes de ouro e com suas nostálgicas melodias estão sempre e inutilmente tentando convencer-nos de que a vida não é apenas uma decepção e um inferno. (Atenas, 22 de abril de 2008)

III – A vaca Parsifae - Aqueles que ainda se dão o trabalho de ficar mistificando mulheres como Simone de Beauvoir, Frida Kaho, Lou A. Salomé, George Sand e outras demi-frigidas da modernidade, bem que poderiam recordar-se de vez em quando também de figuras como Parcifae, a mulher do rei Minos, aquela que para transar com um touro, não teve pudor nem vergonha de travestir-se de vaca. Aqui, em Creta, sua memória está sutilmente insinuada por todos os lados. Mesmo que ninguém se atreva a sair aí pelos labirintos do Palácio de Knossos papagueando esse assunto é como se todos, inclusive a turistada alienada, desfrutassem de um certo prazer ao saberem que essa mulher mitológica não desacralizou apenas a balela da fidelidade (dando para um touro) mas também a da maternidade (gerando um minotauro).

IV - Instinct infâme de la rétribution. Se lá no Brasil já existem supletivos que garantem aos pilantras o primeiro e o segundo graus completos em seis meses, aqui na Grécia, pelo contrário, até os analfabetos falam grego... Em Atenas todos os caminhos e todas as veredas conduzem ao Acrópole. A essa antiga fortaleza que em determinado momento foi consagrada à deusa Athena e que mais tarde passou para as mãos dos latifundiários, os tais aristos, que queria dizer simplesmente os melhores. Estava semeada a futura aristocracia. Sentado à sombra de uma destas imensas colunas, ouço um guia matracando ao bando: Acrópole foi destruída por primeira vez pelos persas. Depois, com a invasão de Atenas pelos romanos, algumas de suas peças foram pirateadas. Mais tarde, lá por 1456, houve a invasão dos turcos que a transformaram num forte e instalaram aqui uma mesquita. Para desalojá-los, um demente general veneziano mandou bombardeá-la, fazendo o Parthenon saltar pelos ares... Mais tarde um embaixador inglês, como era de se esperar, também rapinou a sua parte. Ainda hoje, quem visitar o British Museum encontrará lá várias obras que já estiveram aqui... blábláblá...

O sol quase derrete as pedras. O bando olha ao redor, ajusta o boné sobre os olhos, se acotovela, sorri agradecido e instala nas faces aquele velho e conhecido instinct infâme de la rétribution.

V – Veneza e as créatures de Satan - Só quem chega a Veneza pelo mar é que pode dizer que tem uma visão real desta cidade. Os cinqüenta minutos em que o navio grego vai vagarosamente se introduzindo pelo canal e esta cidade flutuante vai se desvendando diante de nossas câmeras são suficientes para fazer-nos um pouco menos misantropos. Uma obra genial e indescritível! O mar não apenas lambendo as muralhas e as paredes, mas embalando aqueles blocos imensos de concreto, com seus telhados oblíquos e suas janelas minúsculas e simétricas. Os canais como artérias entre uma parede e outra, as sombras cortando ao meio tanto os jardins como os varais e os gerânios multicores despencando sobre as estreitas vias que lembram as medinas mouras. A primeira pergunta que tive que responder a mim mesmo, ainda ali no convés foi: quê tipo de demência deve ter feito meu bisavô desertar daqui para embrenhar-se na selva brasileira? Os vaporetos, as gôndolas, as lanchas, os barcos aparecem e desaparecem num piscar de olhos por debaixo das pontes, dos edifícios, dos porões, dos esgotos... Do telhado de um velho albergo um gato sonolento acompanha as manobras do navio e o frenesi de seus passageiros diante de todo aquele deslumbramento... Soube mais tarde que são gatos de olhos verdes e provenientes do Egito e da Syria. Dizem que há centenas de anos Veneza foi também o paraíso dos ratos, dos mesmos roedores que a Inquisição chegou a considerar [créatures de Satan]. Para proteger arquivos, documentos, livros, mercadorias etc, os astutos mercadores venezianos não tiveram outra saída a não ser importar esses simpáticos e sóbrios felinos... O navio se prepara para ancorar e aciona seu apito. Na parede da alfândega vejo rabiscada uma curiosa citação do filósofo Leopardi: Nesse mundo, vive-se apenas de prepotência. Se não quiseres ou não a souberes aplicar, os outros hão-de aplicá-la sobre ti. (Veneza, 01 de maio de 2008)

VI. A elegância é frígida - Quem me vê saltando do trem em Parma, com esse chapeuzinho de japonês e essa cara de forasteiro babaca deduzirá logo que vim para o Congresso de Gastronomia que está acontecendo na cidade ou então para experimentar os famosos presuntos que a região produz. Engano. Vim por um presunto sim, só que este está enterrado no Cemitério Dela Villette: me refiro ao grande e demoníaco Paganini. Como todo mundo sabe, Paganini revolucionou a música e mesmo o manejo com o violino. Diziam até que as cordas de seu instrumento haviam sido feitas com as tripas de sua mulher, que chegou a tocar com apenas a corda Sol etc., etc. Confesso que de seus 24 Capricci per violino, apenas uns três ou quatro me interessam. O que me entusiasma mesmo em sua existência é o fato de que, depois de morto, a igreja proibiu durante cinco anos que seu corpo fosse enterrado num cemitério. Por ter expulsado o padre que queria administrar-lhe a extrema-unção, seu cadáver ficou perambulando pelos porões dos hospitais daqueles anos de 1840, pelas garages dos palácios etc., até que seu filho conseguiu enterrá-lo aqui em La Villette, que, aliás, é um dos cemitérios mais luxuosos que conheço. Nesta cidadela – que tem um Auditorium e um Bar com o nome do violinista - tudo é luxuoso. As mulheres vão e vem por aí, em bicicletas, empetecadas de Armani por cima e por baixo, as pernas semi abertas, pedalando e esbanjando elegância. Sem deixar de desfrutar do espetáculo fico sempre relembrando a declaração daquele poeta japonês que prevenia: a elegância é frígida. (Parma, Itália, 05 de maio de 2008)

Ezio Flavio Bazzo