quarta-feira, 5 de maio de 2021

O Primeiro ato da CPI, o Mandetta e a Virgem Maria...



"Quando estiver na cama e ouvir o latido dos cães no campo, esconde-te sob as cobertas e não zombe daquilo que eles fazem, pois eles, como você, como eu eu como todos os seres de cara pálida e alongada, têm uma sede insaciável de infinito...

Isidore Ducasse

 Ontem, ainda com um pijama listrado de confinado e a vassoura em punho, depois de ter espargido desodorante nos vasos e enfiado meia dúzia de cuecas na Brastemp 11 quilos, sentei-me para massagear as panturrilhas e para assistir ao Primeiro Ato da CPI, com o ex Ministro Mandetta sendo o inquirido. Não preciso nem dizer, mas esse sobrenome remete qualquer um aos fratelos lá da Sardenha.

Os inquisidores e o inquirido passaram umas 8 horas mordendo e assoprando. Com o inquirido sendo hora chamado de Vossa excelência hora de Vossa Senhoria. Sempre com o respeito que um Senador da República e um representante de Hipócrates merecem... A Cloroquina esteve presente desde a primeira até a última palavra. Para uns, uma panacéia, para outros, um veneno, mas sem que ninguém se atrevesse  mencionar as alucinações de Paracelso. De vez em quando alguém recebia um telefonema da mãe ou da esposa e logo em seguida pedia a palavra para indagar: Mas e os 410 mil mortos? Se era da esquerda falava logo em meio milhão e aproveitava para profetizar que chegaremos ao Milhão... Se era da direita, resmungava uma justificativa qualquer... Como tratava-se de senadores, a grande maioria era de velhotes passados dos 60 e até dos 70. Gerontocracia! Muitos de famílias tradicionalistas no universo do latifúndio, cujos bisavós até já haviam feito discursos eloquentes naquela casa...

Não sei se por fascínio ou por maldade, o câmera que cobria aquele embate, parecia fazer foco no relógio, nos anéis e nos ternos dos que pediam a palavra. Quase tudo comprado lá nos arredores da Quinta Avenida. Era a gerontocracia! Os ricos! A classe média que levou a Marilena Chaui a ter um surto. Lembram? E de vez em quando, num canal concorrente, aparecia um reporterzinho pé de chinelo mostrando as imagens dos milhões de fodidos de Manaus desesperados com a cheia do Rio Negro que levava suas tralhas boiando para a imensidão do Rio Amazonas... E lembrava que aqueles fodidos estão esperando pelas promessas de saneamento dos nobres senadores há uns 80 anos...

E eu ia acompanhando neles o mistério da fala. Como é difícil falar. Quando é que começamos a falar? E com qual finalidade? A fala realmente é um sintoma, uma patologia da espécie. Somos os únicos que sofremos tanto para conseguir compor uma frase, escolher uma palavra. Diferenciar uma pergunta de uma afirmativa ou de uma expressão neutra. Um adjetivo. Uma ironia de uma crença. Ah!, cada um que tomava a palavra tinha antes que se debater, com suas próprias palavras. Com seu dicionário interno. Lembro que até em meus pesadelos a ortografia é sempre incerta... Os sinônimos, os antônimos, os verbos, os plurais, as concordâncias. O mundo foi erigido sobre mal-entendidos! Ouvi um chefe de sindicato dizendo que 90% dos que  protagonizaram a revolução russa eram analfabetos... E o vocabulário dos inquisidores denunciava a identidade e até a conta bancária de cada um. Esse é gaúcho! Esse é catarina! Esse é da Bahia! Esse é boliviano infiltrado! Esse fugiu da escola! Esse comprou um diploma! A família desse aí está ordenhando vacas há uns 100 anos... Esse teve uma mãe castradora! Esse já foi dono de bordel... E o ex-ministro, com olheiras de quem não dormia há uma semana, ia misturando coisas acadêmicas com coisas populares uma mistura infalível para atordoar e para colocar as modestas bancadas em seus devidos lugares. Chegou até a citar dois filósofos que agora nem me lembro, mas que com certeza eram daquela Grécia miserável do começo do mundo... Conforme foi percebendo o nível escolar e os questionamentos da turma, foi relaxando. Afinal, a medicina, ao lado da igreja, da OAB e das forças armadas ainda comandava tudo exatamente como nos tempos de sua tirana bisavó, que dizia... Quer dominar o mundo e ser um picareta respeitável? Decore os radicais gregos! Memorize meia dúzia de aforismos em latim! Por falar em forças armadas, no meio da sessão receberam um comunicado do exército informando que o general que seria inquirido do dia seguinte, (também ex-ministro) não poderia comparecer já que havia sido flechado pelo vírus... Alguém lembrou que o vírus chegou ao Brasil através dos ricos, de burgueses vindos de Londres, de Paris ou de Venezia... que os primeiros pacientes foram registrados no Eistein e no Sírio Libanês,... E que depois, da burguesia, o vírus foi passando para o proletariado... Já que a luta de classes continua!

E o Mandetta ia dando um show, mas sempre com a delicadeza clínica para não comprometer os colegas de profissão e nem seu chefe. Mas e os 410 mil mortos? Voltava a lembrar um agitador. Ele se protegia atrás da máscara e fazia um esforço imenso para minimizar o fracasso sanitário, não apenas do país, mas do planeta inteiro. Jogava água benta sobre os enfermeiros, agentes de saúde e médicos que estão "na frente de batalha", mas sem mencionar seus salários miseráveis... E, sem conseguir dissimular sua ansiedade, citava novamente uma pequena frase, não sei se em grego ou em latim e a atribuía a Hipócrates.., a velharada se intimidava e tudo voltava à normalidade. E criticou a China e a OMS pela demora em dar o alarme do desastre que se anunciava. Opa! ver um médico criticar a OMS hoje em dia, já é alguma coisa! Um ato revolucionário! É quase um milagre! Uma heresia! Já que não receitam nem mais um laxante sem consultar o africano Thedros Adhanom ou os médicos cubanos... Aliás, ninguém falou sobre a expulsão dos médicos cubanos, mesmo depois do Mandetta considerar precárias e insuficientes as 7.400 horas nos cursos de nossas faculdades de medicina, na formação de um médico e de afirmar, quase com ironia, que no país, depois de um sujeito receber o registro no CRM costuma passar o resto da vida sem atualizar-se, clinicando, jogando sinuca e fazendo crochê...

Em sua própria defesa, o ex-Ministro, lembrando que só as frases idiotas impressionam o público, confessou também que rezava todos os dias (até para que a cloroquina funcionasse) e que era devoto de Nossa Senhora Aparecida. Diante dessa confissão, muitos da platéia até tiveram uma ereção... Não demorou para que um ilustre senador de Santa Catarina também se declarasse devoto da mesma santa. E, por coincidência, uma senadora médica que fez uma intervenção lá da Paraíba (via tele-conferência) deixou todos os assistentes verem atrás de si duas imagens, uma de Santo Antonio, ou do Padre Cícero e outra da Virgem Maria... Ufa!

E o laicismo? Lembrei que quando meu cachorro estava sendo tratado numa clinica veterinária aqui da cidade, as duas veterinárias que o cuidavam, quando iam dar-nos um retorno e um prognóstico sobre seu estado de saúde, insistiam para que rezássemos e que acendêssemos uma vela a São Francisco...   Claro que nosso cachorro morreu! Caralho! Estão formando veterinárias ou freiras? E a ciência, a velha ciência, a qual até os energúmenos estão queimando incenso nesses dias de epidemia?

Um outro provocador da platéia lembrou com sarcasmo ao ex-ministro de uma orientação sua dada aos doentes, nos primórdios da epidemia: "fiquem em casa, rezem, tomem um caldo de galinha e repousem". Um clima e um cheiro de sacristia baixou sobre aquela nobre casa...

Discursos; frases para ficarem nos anais da república; confusão de línguas; duas executivas desfilando de lá para cá orgulhosas das calcinhas que lhes marcavam as nádegas (a câmera só as mostrava da cintura para baixo); o óbvio por todos os poros e em casa, os bolsonaristas e os lulistas excitados diante da TV, fumavam, bebiam e comiam imaginando que alguma coisa digna de nosso século pudesse emergir dali... do meio daquela gente que quando você aponta para uma lua cheia e esplendorosa, ficam olhando para teu dedo...

Pura ilusão... Ilusão de canalhas!


 

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