domingo, 2 de maio de 2021

O Mendigo K, e o farmacologista...


O domingo amanheceu amarelado. Convidativo. Todo mundo, até mesmo os casais mais apáticos e mais broxas gostariam de estar escalando alguma montanha, atravessando algum rio, ouvindo os gritos dos vendedores numa feira, no meio dos cheiros do gengibre em po e do açafrão... Mas há a epidemia! O vírus! A paranóia! O mundo está sitiado...

Aqui de minha varanda assisti ao Mendigo K que passeava lá em baixo entre os canteiros dos jardins. Ia de braço dado com sua mulher, ela também mendiga, os dois usando máscaras. Iam a passos lentos e paravam diante dos canteiros floridos. Ela tocava amorosamente as flores e lhe perguntava: Como se chama esta? E ele, como se estivesse num centro espírita sendo possuído pelo espírito do farmacogista Zhang Zhongjing, como se tivesse sido o jardineiro de Epicuro ou tivesse sido gerente nos Jardins da Babilônia, respondia: Essa, meu amor, é uma hortênsia! Foi trazida do Japão por uma velhinha de Nagasaki, que embarcou clandestina no Kasato Maru e veio para a América...

Esta é uma rosa tradicional; esta é o jasmin, que os árabes chamam yasmin. Esta é uma Violeta roxa. Lembra da Violeta Parra? Já ouviu as músicas da Violeta Parra? Aquela ali a chamam de Virginia, só nasce na primavera... 

Ela ia ouvindo suas descrições com a atenção de uma criança apaixonada. E num momento em que teve um impulso de arrancar uma muda de yasmin para plantar na entrada de seu barraco ele a olhou com rigor e a reprimiu, falando em voz baixa: não seja idiota! Qual é a diferença de estar plantada lá ou aqui? Quer vê-las? Venha para cá! Os jardins não têm dono. Aliás, todos os jardins da cidade são mais nossos do que de qualquer um. Somos nós que temos tempo para admirá-los de manhã à noite, e que às vezes até dormimos junto a eles...

Esta é uma Margarida. Esta é uma Dalia. Outra Dalia. Esta é a famosa Melissa. Seu chá, em jejum, tem quase um efeito narcótico... Lembra dos jardins e da Praça Sintagma, de Atenas? Para os gregos ela  representa uma sacerdotisa. Aquela vermelha ali é a tal Petúnia, que em Tupi-guarani que dizer flor vermelha. Dizem que nos arredores da República Comunista cristã dos Guaranis, os jardins eram repletos de petúnias. Já leu a história da República comunista cristã dos guaranis que existiu no Paraguai, (1610-1768)? 

Esta é conhecida por Flora. Aquela por Margarida. Aquela outra por Camélia. Percebes como todas têm nome de mulheres? Isto será um Bem ou um Mal? Aquela orquídea roxa pendurada num tronco, foi trazida da Ásia e também tem nome de mulher. No interior da Tailândia, lá pelos lados do Triângulo do Ouro, de onde sai grande parte do ópio que é consumido aqui nas Américas, quase todos os bangalôs tem uma dessas orquídeas pendurada nas paredes...

No meio do caminho ele encontrou uma petúnia caída. Devia ter caído ontem a noite porque ainda estava com seu vermelho vivo. Pegou-a com cuidado, assoprou nela para derrubar uma formiga e dizendo: em homenagem aos guaranis!, a cravou no meio de sua cabeleira de Medéia... Ela fingiu ficar intimidada. Em um dos apartamentos alguém tocava no violino Libertango, de Piazzola... E foram assim, botânica e amorosamente até o extremo sul dos jardins, impassíveis ao mau caráter da humanidade sitiada. Indiferentes a todas neuroses, intrigas e idiotices pequeno-burguesas do mundo...


 


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