terça-feira, 27 de outubro de 2020

Viagem ao fundo dos galinheiros, uma hermenêutica dos claustros..


 O moço que está editando meu livro: Viagem ao fundo dos galinheiros, uma hermenêutica dos claustros,  mandou-me uma mensagem, ontem de madrugada, dizendo que seu pai, um sujeito de uns 60 anos, que trabalha num Ministério, que está se preparando para a aposentadoria, e que já navegou pelo Rio Negro, teve acesso ao livro e ficou indignado e confuso com esta parte que está lá pela página 360, sobre aposentadoria e com outra, sobre uma viagem pelo rio Amazonas. As reproduzo abaixo, por puro deleite e por pura curiosidade.

1. Cinco ou seis aposentados se reúnem todas as manhãs numa espécie de parada de taxi para bater papo e jogar dominó ou damas. Um deles parece dono de um riso irrefreável. Já não têm paciência para aventurarem-se no xadrez. E ficam competindo miseravelmente entre eles: quem tem menos cabelos brancos, quem ainda consegue mijar com jatos mais fortes, quem está com as taxas de colesterol em dia. 

Se no passado competiam em termos de ereções, agora só querem demonstrar que uns estão menos próximos do cemitérios que os outros. A miséria da espécie é indescritível e a aposentadoria é um exílio! Um degredo!  

Ouvi um homem bem mais jovem que eles que lhes dizia até com certa agressividade: mesmo que dobrem teu soldo, aposentar-se é uma fria! Um arranjo maléfico!  Uma invenção e um truque descarado dos jovens para livrar-se dos velhos... Claro que a gerontocracia é uma infâmia, mas fazer o quê? A aposentadoria é vitória da inexperiência e da ignorância sobre a experiência e o saber! Os taxistas e os moradores que passavam por lá, uns até com menos de 50 anos e todos loucos para se aposentarem o olhavam com suspeita e como se fosse inimigo. E ele continuava, como se quisesse provoca-los: Que os sujeitos resistam e morram trabalhando! É ridículo exigir que o sujeito passe 35 ou 40 anos acorrentado numa escravidão qualquer e, de repente, quando o cara já está fodido, mandá-lo 'passear'. Vá para casa! Vá viajar! Descanse! Você já deu sua cota! Desfrute da vida! 

Desfrutar da vida, um caralho! 


É um horror deparar-se cotidianamente com um exército de velhotes troteando por aí com suas sacolas de remédios e o contracheque de aposentado, jogando damas com os taxistas ou enchendo o saco das balconistas dos mercados ou dos porteiros dos prédios. Os vejo aqui do alto e não escondem a marcha depressiva de quem esta sufocado pela solidão e pelo ócio e de quem não está indo para lugar nenhum. Fodidos e soterrados por um saber acumulado que agora os intoxica! Vão falando sozinhos, com os postes, com os cachorros e com os pedregulhos onde tropeçam. Com suas camisas brancas e mal passadas param diante dos prédios, colocam as duas mãos sobre os rins e com dificuldade olham longamente para o último andar como se tivessem visto lá no alto um disco voador ou uma aparição da virgem. Outros vão com seus passinhos curtos e perigosos até a lotérica da esquina pagar a conta da luz ou comprar um remédio para suas velhas que os olham temerosas das janelas. Aposentar-se um caralho! Não seja otário!  Obrigue o Estado a suportá-lo. E não adianta enganar-se e ir perfumada (o) e sorridente fazer bordados por aí com outras velhinhas ou com outros velhinhos gagás! Vender empadinhas nos semáforos, filiar-se a uma congregação de voluntários, ir lavar as cuecas dos padres e pentear os longos cabelos das freiras nos conventos, ir cuidar crianças dos outros quando não soubeste cuidar nem das tuas, ou sair por aí implorando outra maneira de penitenciar-se. Ridículo! Não! Não capitule!

Continue indo a teu trabalho, lá onde esta sepultada toda tua saúde, toda tua rebeldia e toda tua indignação... (mesmo que seja só para enxugar gelo) mesmo que seja só com uma perna, de muletas, de cadeira de rodas, em uma maca..., da maneira que for, mas permaneça lá em tua antiga e conhecida servidão, em tua mesa de trabalho, com tuas algemas lubrificadas, com as chaves de tuas gavetas, teus fetiches, tuas neuroses e tuas senhas nos bolsos do uniforme... E que os novos escravos tenham a paciência de suportar-te até o juízo final... Mesmo que seja só por um último e senil capricho, para não dizer: ato de vingança...


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2. Belém-Manaus, naquelas barcaças quase suicidas carregadas de bujões de gás, de sacos de sal, de pneus, de bicicletas, de sacos de castanhas, de gente adoentada e amontoada nos porões, de galos e de galinhas amarrados uns aos outros pelas patas, uns querendo cantar antes dos outros… Breves, Gurupá, Óbidos, Parintins, Itacoatiara... E em cada porto se vê um enxame de crianças remando em direção às balsas ou aos navios pedindo comida ou oferecendo porcarias mal feitas, artesanatos vagabundos com cheiro de fumaça e de miséria.  (...) Mas o espetáculo mais transcendente vinha com a noite. A banzeira e a solidão ribeirinha. Um ou outro incêndio na selva iluminava as margens e os barrancos mergulhados nas sombras. O fogo ainda haveria de destruir aquele Inferno Verde com seus tigres e suas jiboias! Os mosquitos da malária haveriam de perecer e as tribos fugir em disparada com suas porcarias e bagatelas nas costas… Aqui ou ali os dois olhos acesos de um tigre ou de um jacaré, e nos céus, os "astros distraídos!”. Foi na beirada de um desses rios (imaginários?) que Mario de Andrade fez nascer o seu Macunaíma. O herói sem nenhum valor. Um homem sem atributos, diria Musil. Uraricuera. Existe? Uma fogueira ao lado de um casebre. O canto amargurado e religioso de um índio ou de uma índia pedindo aos deuses uma cesta básica, um meio quilo de açúcar ou um barril de cachaça. Uma lata de leite em pó e até umas latas de sardinhas portuguesas. Mas sardinhas? Vivendo ao lado do maior rio do mundo! E os deuses ficam indiferentes, riem dessa merda toda, criada por eles por engano ou como vingança. Envergonham-se desse bando  ajoelhado, submisso, justificando a própria miséria. Querem mesmo é que eles se fodam! Que desocupem o território, que limpem e desintoxiquem de uma vez a terra. O barulho das hélices e do motor. A luz tênue de 40 watts no convés do barco. E outras luzes, também de 40 watts em movimento pelo rio. Vagalumes. Um exército de insetos voando em círculos ao redor da luz das barcaças, esses animaizinhos estúpidos que nascem e morrem no mesmo dia, para onde iriam?  (...) O barco dá uma guinada. Deve ter batido num tronco, numa árvore que a correnteza arrasta para o mar ou perdido algum parafuso. Tenho quase menos de 20 anos! Nos agarramos num amontoado de cordas. Se alguém cair para fora do barco será rapidamente devorado pela escuridão, por um cardume de peixes ainda nem catalogado e pelo próprio abismo que deve haver abaixo das águas. Quantas ossadas, não só de pessoas, mas de culturas, de fantasmas e até mesmo de estrelas… Uma noite o taifeiro do barco descobriu que um galo havia morrido. Quando o barco passou na desembocadura de um igarapé ouviu-se o grito de uma senhora curandeira vindo lá das margens e pedindo algum tipo de comida. Ele jogou o galo morto em sua direção. Os motores abafaram seus agradecimentos. Havia uma população desnorteada de netos e bisnetos de antigos garimpeiros e seringueiros por lá… gente enganada que se embrenhou na floresta nos tempos áureos da borracha (uma Malásia tropical).Viviam miseravelmente do látex. Do leite extraído dos seringais que seria transformado em pneus, em sapatos, em camisas de vênus… O látex acabou e eles foram morrendo abandonados pelo meio da selva. Quem sobrou fica às margens a espreita de um barco qualquer que lhes jogue um galo morto, nem que seja de peste... (...) A selva imensa! A escuridão, os besouros que se colam nos cabelos, as histórias que vai se ouvindo daqueles seres que nascem e morrem em suas palafitas certos e seguros de que a vida por aqui é apenas uma passagem, que ricos e pobres irão para um lugar mais digno. Pobres miseráveis! Eles não têm consciência que quando os missionários chegaram por aqui traziam apenas a bíblia e as batinas, enquanto que eles possuíam as redes de pescar e os segredos do imenso laboratório que é a selva. Mas que com o tempo, as coisas se inverteram e que agora, lhes resta apenas a bíblia. As redes de pescar e o imenso laboratório que é a selva, mais as minas e os animais estão agora patenteados em nome de missionários de outras tribos. E nós, que nem sequer sabemos ler? Agora que as ONGS nos trazem mensalmente papel higiênico, o que vamos fazer com a bíblia? Que negócio furado! Que Cavalo-de-Tróia! Que presente de grego! Teria sido tudo em nome de Deus? Mesmo que tivesse sido, seria uma canalhice divina! Mas agora é tarde! E por mencionar novamente a Bíblia, uma freira, transpirando milenarismo e regurgitando fé, que estava a caminho de Iquitos, no Peru, me recomendou ver Marcos 13:35,37 onde se pode ler: Portanto, vigiem, porque vocês não sabem quando o dono da casa voltará: se à tarde, à meia-noite, ao cantar do galo ou ao amanhecer.Se ele vier de repente, que não os encontre dormindo! Um livro repleto de chantagens e de ameaças. Catequizar! Lei divina. Lei da selva. (...) Havia um casal jovem de judeus numa das redes. Soube no outro dia que realizavam um estudo sobre botânica. Sobre as raízes, as folhas, os brotos, a seiva, as formigas que se alimentam só do néctar das plantas… De um tipo de aranha que quando nascem seus filhotinhos, se transforma numa espécie de gelatina para que eles a banqueteiem. A primeira ceia das pequenas aranhas é o corpo da mãe! Poético? Freudiano. Isso que é amor materno! O resto é demagogia de burguesas e queixumes infames. A alquimia da floresta. Dormem. Os ouço ressoar. Os mistérios no fundo da noite. As tribos, as serpentes ainda não catalogadas, as aranhas caranguejeiras, as Amazonas, as Flores do Mal, o canto melancólico das tribos traídas… E os diamantes enterrados nos húmus e na terra fértil e frágil! As minas! O subsolo! Os filões do metal maldito! O Pau Brasil! O látex da borracha… Um livro do Euclides da Cunha sobre este rio traidor e apátrida... A água que corre por debaixo das aldeias que se extinguem… O saber e a memória dos velhos pajés… A matéria prima para os medicamentos que nunca curaram e que nunca curarão coisa alguma… Curar-se? Curar-se de quê, hermana mia? A parte do Antigo Testamento que não foi escrita. 


2 comentários:

  1. Como seu leitor imaginário já estou no aguardo!

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  2. Para ler Ezio Bazzo precisamos deixar de lado o senso comum ou não ter nenhum! Gostei muito. Reserve um exemplar para mim!

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