Mesmo assim, por pura curiosidade, assisti às sessões de ontem no STF onde se discutiu a confusão causada com a soltura de um preso, ao qual se atribui o tráfico de toneladas de cocaína para a Europa. Aliás, por que os europeus estariam cheirando tanto?
Não posso negar: tenho uma dificuldade imensa para ouvir o blábláblá desses senhores. Aquele discurso rococó que mistura latim com tupiniquim e aquela capacidade de decorar parágrafos da Constituição e do Código Penal que faz qualquer um lembrar de seus melancólicos anos do ginásio, me parece abominável. Sem falar daquelas capas de frades e aquela performance de professores que criam um abismo entre eles e os condenados. Entre a Suprema Corte e o Supremo Cárcere... Entre o tribalismo disfarçado e o escancarado. Entre a moral e o crime. Entre o castigador e o castigado.
Enquanto eles citavam capítulos, parágrafos únicos, itens metafísicos, liminares, e falavam dos condenados como "pacientes", eu pensava nos Condenados da Terra, (Franz Fanon); numa frase que está lá no Talmud: se você é complacente com os lobos você acaba sendo desonesto com as ovelhas... e nos gritos dos anarquistas lá no Canadá: Abaixo todas as prisões!
E os juízes se alfinetavam entre si, cada um, mais delicado do que o outro, querendo demonstrar que era a voz de um oráculo e que dispunha de uma "hermenêutica" mais adequada do que o confrade. Hermenêutica? A arte de interpretar. Por falar nisso, enquanto os ouvia, ia tendo mais certeza ainda de que a própria linguagem é um transtorno. A anedota da Torre de Babel já pretendeu nos dar uma pista...
E, curiosamente, além de identificarem o julgado como "paciente", também usam outras expressões da clinica, como autofagia, teratologia. Sem falar da teologia embutida em cada um dos tais Artigos e dos tais Parágrafos únicos... Memória dos processos da inquisição. O preso como um judeu novo ou como um herege. A Corte Suprema! A Penitenciária, como lugar de pagar penitência, livrar-se do "pecado venial"; de buscar a conversão, a redenção e a salvação. Tudo em nome da urbanidade e da sociedade celeste, do paraíso perdido... e da presunção (de inocência, para uns e de culpa, para outros) Inocentes? Culpados? Pura moral de catacumbas...
Prisão preventiva! Tivemos uma presidente da republica que especulou sobre a possibilidade de aprisionar o vento. Os magistrados pretendem aprisionar o mal. A parte de si mesmos visível e manifesta nos condenados, numa tentativa de não serem descobertos. Duas ficções.
Medidas cautelares. Garantias fundamentais. Frases em latim e até uma ou outra em alemão. Ou seria javanês? E nada sobre o Código Penal dos Astecas... Somos europeizados! Temos ainda os libretos de Savonarola sob nossos travesseiros. Temos nostalgia pelo chicote dos invasores. Ainda trabalhamos para eles, para construir o mundo ideal DELES. Peleguismo! E as penitenciárias lotadas... Mas tudo foi decidido nos colegiados. O colegiado é tudo, é até mais do que a voz do povo, é a voz de deus. Aliás, o Deus dos juízes é o mesmo Deus dos condenados. Paradoxos! Suspensão de liminar. Vossa excelência está pisoteando um colega! Data venia! Somos irmãos. Nossas famílias festejam juntas o dia de Cosme e Damião. Data venia...
Alguém diz amorosamente que o outro é como o algodão entre cristais. Nem os amantes de Lucrécia Borgia chegaram a tanto. Só a fraternidade nos une. A mesma fraternidade que une os 700 mil presos, 200 mil sem condenação. 200 mil sem condenação! E que esperam por Godot... Apodrecerão lá. Duvido que algum dos presos possa ter praticado um crime maior do que este... E a sociedade, cheia de moral de crendices e de honra, não parou de tomar sorvete e nem de ir comungar-se aos domingos, por isso. Observem: a prisão é um sintoma místico, como o claustro das freiras e dos fanáticos. O resultado de uma crença primitiva em Pasárgada e numa vida após a morte. Nenhuma espécie se atreveria a enfiar alguém em uma prisão se tivesse consciência de que este tempo é o único tempo. Que não há outro tempo. Que é aqui e agora, ou nunca mais! Data venia! Autofagia! Encarcerai-vos e comei-vos uns aos outros!
Suspensão de liminar. Regimento interno da Procuradoria da República. As últimas encíclicas enfiadas nos artigos da Constituição. Habeas corpus: uma expressão de crematório! Penso nas fogueiras ao lado do Ganges...
Decisão extravagante... Venia, muitíssimas venias... Atenção com os espíritos do mal!, ouviram de suas patroas antes de saírem de casa. Se lhes damos um único fio de cabelo, logo querem levar-nos a cabeça inteira... E temos que garantir a credibilidade do populacho no Supremo. A propósito, onde estaria neste momento o chefão da cocaína? A tv exibiu sua filha. Uma mulher linda que logo logo estará apresentando a meteorologia de algum jornal... E a Europa, os milionários da Champs Élisee, como estão se virando sem o pó? Pelo menos não seremos mais rotulados de ser uma colônia que só exporta travestis, soja e carne de porco. Data venia...
Os ministros vão discutindo, emparedando uma frase com outra, uma vírgula com uma exclamação enquanto ajeitam as batinas que insistem em cair-lhes pelos ombros... Enquanto os ouço vou relendo o libreto de Carnelutti: As Misérias do Processo Penal, que não é grande coisa, mas que vale pelo título. Sinto a falta de meu cachorro. Se estivesse aqui trocaríamos afetos e opiniões sempre lúcidas e humanas, demasiadamente humanas.
Excelente! A cada dia melhor!
ResponderExcluirQuando você escreve uma crônica como a do dia 16/10 - As misérias do processo Penal... e os Condenados da Terra... - eu leio e me apaixono. Releio e fico admirada com suas ideias, sua cultura, sua forma de expressão, e me apaixono de novo. Leio uma vez mais para beber e saborear suas palavras, seus parágrafos e me apaixono mais ainda.
ResponderExcluirVocê está a cada dia melhor, percebe? Vem realizando um excelente, genuíno e interessante trabalho intelectual.
Lembro de você aos 23 anos, o moço mais interessante do universo, querendo viajar pelo mundo inteiro e escrever. Com toda aquela ânsia de viver e ser o que você é hoje, não?
Lembro seu cabelo contra o sol com fios dourados, sua pele branca, seu sorriso grande como um lago, nítido, sereno.
Lembro seu abraço que era abrigo e ninho e suas mãos firmes, resolutas, tentando me mostrar o caminho.
Carinhoso, romântico, saído dos meus sonhos para o deleite da minha alma....
Que bom que você existe, que existiu para mim de uma forma tão bonita!
Tenho doces lembranças que o tempo impiedoso não apagará!
Abraços