sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Enfim, a rua... Não a idealizada, a real...

"...Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras revoltosas, medrosas, sppleeneticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue..."

João do Rio

(Em: A alma encantadora das ruas)


Como hoje é sexta-feira, com uma máscara tripla, feita de um material que usam para pousar em Netuno; um vidrinho de água benta vinda do Vaticano; meio litro de álcool a tiracolo; um escapulário nas cuecas e um canivete no bolso, resolvi arriscar uma caminhada. O primeiro conflito surgiu nos pés. Depois de tanto tempo livres, se queixaram do aperto. Pensei: Que efeito maligno o uso de sapatos, depois de tantos séculos, pode ter tido sobre o Sistema Nervoso Central? Sobre o psiquismo da espécie? E isso não significa que se tenha que usar havaianas. Confesso que quando vejo um sujeito usando "chinelos de dedos" sinto por ele um  imediato e incontrolável desprezo... Precisaria uns dez anos de análise para curar-me desse pré-conceito,.. ou conceito...

Na rua, nada de novo. Percebo que o isolamento nos faz idealizar e ter nostalgia por coisas que nem sequer existem... Acredito que depois desse martírio e desse lockdown mental, muita gente até preferirá ficar em casa para sempre...

Gente jovem com cachorros. É curioso ver que a focinheira, que os veterinários tanto recomendavam para os cães, está nos donos. Pretas, cinzas, brancas, de florzinhas... Amarradas nas orelhas, na nuca, no queixo. Entrando nos olhos, babadas, parecendo um soutien ou uma lingerie. Nos olhos, vestígios da insônia e da paranóia. Os velhinhos são a maioria. E vão cambaleantes, como se estivessem sendo movidos por esse mormaço fdp de deserto. Seria o efeito da losartana? Labirintite? Desidratação? Ou tiveram uma recaída no alcoolismo? Quando estão acompanhados por suas velhas, vão "discutindo a relação" e brigando por intrigas infantis que começaram  ainda lá na noite de núpcias... E nem precisa ser muito esperto para deduzir que a última vez que treparam foi ainda na República Velha... E muitos aproveitam para  "culpar" a pandemia por transtornos que já trazem há décadas... E os mendigos desapareceram... O que é uma cidade sem mendigos?

E as mulheres, jovens ou balzaquianas, que sempre foram esquivas por "natureza", agora andam quase de costas e de lado, como os caranguejos. Desconfiadas. Seria medo do vírus ou dos velhos e conhecidos animais vertebrados?

E... seguindo as orientações dos energúmenos da OMS, vão se desviando nas calçadas, literalmente fugindo uns dos outros, como fazem os ocidentais lá em Benares, às margens do Ganges, no meio de toda aquela mendigada mutilada pela lepra...

Meus pés se queixam... Começo a babar minha máscara...  silenciosamente vou amaldiçoando o universo. Uma velhinha chinesa que pratica acupuntura lá na esquina de minha casa, passa silenciosa e  deslizando como uma ave pela calçada oposta a minha. Não olha para nenhum lado. Sabe que corre o risco de deparar-se com um brutamonte ignorante que poderá acusá-la de chinesa filha da puta!  e de ser a responsável por toda essa merda... Que o vírus tenha vindo realmente da China, como dizem, ou que seja pura intriga do ocidente, agora não faz diferença... a merda é a mesma... será difícil para os asiáticos se livrarem dessa pecha...

No passado houve algo parecido com a sífilis. O ocidente acusava a China, a China acusava os ocidentais. Os europeus acusavam os africanos, os africanos acusavam os europeus. Diziam que era uma doença dos franceses, mas os franceses diziam que havia se iniciado lá na putaria dos salões de Florença. Por aqui, os índios tinham certeza que aquele mal havia sido trazido pelos portugueses, já os portugueses colocavam a culpa na zoofiia, no bestialismo, nos cachorros, nos macacos, nas lhamas... etc. etc... enquanto a espiroqueta (o tal treponema pallidum), ia se universalizando e rindo de todo aquele mau caratismo e de toda aquela miséria...

Cioran, antes de mergulhar no Alzheimer, gostava de dizer: "é que vocês não conhecem os inconvenientes  da saúde e as vantagens da doença..."

E la nave va...


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