domingo, 18 de outubro de 2020

O Mendigo K e os ciganos...


"Como queres ser aceito deitado, se aceitas a bofetada de pé?

(Alusão às relações tensas entre marido e mulher) 

ver: Pierre Derlon 

IN: Tradições ocultas dos ciganos

Neste segundo domingo de outubro todo mundo ainda está esperando pelas chuvas que há uns vinte dias o Instituto de Metereologia (ou seria de astrologia?) está anunciando. Já por duas vezes chegaram a lançar um alerta à população para a possibilidade de vendavais, redemoinhos, raios, chuva de pedras, quase como aquela dos tempos de Noé.

As velhinhas correram lacrar as janelas, encostaram a geladeira nas portas, puxaram as cortinas, acenderam velas, tomaram 8 gotas de rivotril e esperaram. Até agora, nada. As folhas de uma trepadeira que cultivo aqui no trigésimo quarto andar, estão imóveis. Nenhum milímetro fora do lugar e me olham com ironia quando vou oferecer-lhes um ou dois copos de água...

O Mendigo K apareceu lá no mesmo boteco de sempre. Estava acompanhado por um colega de profissão, levava um livro de Pierre Derlon e falava num tom acima do normal como aquelas pessoas que já estão ficando surdas.

Nos tempos em que vivi em Paris - dizia -, todos os anos, no mês de maio, ia a pé e descalço, em peregrinação, da Praça da República até Chartres, até Saintes Maries-de-la Mer, a Meca dos ciganos... Já ouviu falar? Íamos até lá, até a Catedral de Chartres, para beijar nossa Santa: Sara. Sara a egípcia. Sara a Kali. Sara a Negra, cuja imagem está na cripta daquela catedral...

Ao perceber um sinal de ironia no colega, abriu o livro e leu: "a oração é uma coisa por vezes necessária, reconforta os homens fracos..."

E prosseguiu:

A padroeira dos nômades, em comparação com as outras santas só  existe naquela igreja, em nenhuma outra do mundo.

Mentiras! resmungou inquieto o outro mendigo.

Ao que ele abriu novamente o livro e leu: "Muitas vezes a mentira  protege o segredo. Nunca se leva a sério o homem que mente. E aí está sua força..."

Um dos momentos mais tensos foi quando ele passou a relatar o costume, em algumas tribos ciganas, de uma mulher mais velha,  enrolando um pano nos dedos, deflorar uma jovem e, em seguida, examinar e interpretar as manchas que ficavam nesse pano, mais ou menos como alguns psicólogos fazem ainda hoje com o Teste de Rorschach...

Como acontece com frequência nos botecos daqui, uma pomba pousou sobre a mesa ao lado, onde alguém havia deixado uns pedaços de pão. Ele a olhou com o certo desprezo e aproveitou para dizer: "Veja aí, a pomba para os católicos é o emblema do Espírito Santo e da Paz, mas para os ciganos ela é a imagem do crime, do sangue e da loucura. Entre os pássaros, ela é o mais violento e o mais cruel, mesmo tendo o bico mais frágil de todos os outros...

Tentou seguir falando do mesmo tema, mas o outro levantou-se bruscamente e desapareceu...


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