Hoje, o Mendigo K já estava lá. Nas segundas-feiras costuma chegar bem mais cedo só para ficar observando a turba e tentar entender o mar de sargaços que é o mundo. Fica em pé num canto do balcão apoiado só numa perna, um cigarro no canto da boca, a mão esquerda no bolso da calça apalpando os genitais, envolto na fumaça e bebericando vermouth num copo mal lavado. Não esconde sua misantropia e costuma repetir: "quem aos cinquenta anos não é misantropo, nunca amou ninguém". Enquanto esperava a saída de uma nova fornada, escutei que contava ao português uma história dos tempos em que trabalhava num hospital, sucateado, mas de referência. Dizia:
Tínhamos reuniões clinicas uma vez por semana onde discutíamos o caso dos pacientes e onde liamos Freud, R. Laing e Ferenczi. Onde recitávamos uns para os outros a psicopatologia de Jaspers, mas principalmente a obra do húngaro Thomas Szasz... Enfermeiros, agentes de saúde, assistentes sociais, médicos, psicólogos, neurologistas, psiquiatras, antropólogos, psicanalistas, linguistas, secretárias e até um ou outro astrólogo e paciente que estava com os sintomas sob controle. Uma das enfermeiras do grupo aproveitava para relatar o caso de seu pai, um homem de uns 70 anos que estava em tratamento com a equipe e que jurava para todo mundo que em baixo de sua cama havia um jacaré. Apesar dos contornos quase religiosos da profissão e da ética obsessiva do grupo, todo mundo ria com o caso daquele homem. E sempre que cruzávamos com aquela moça, pelos corredores do ambulatório, ela sempre de branco como um cisne, cheirando a incenso, às vezes de braços dados com algum espírita que tentava convencê-la de que o tal jacaré devia ser a alma de uma das ex-amantes do velho, já falecidas e incorporadas numa lagartixa, não resistíamos à malignidade de perguntar-lhe: e aí? como vai seu pai? Ela, um pouco chateada, com seu "édipo" ainda não muito bem resolvido, voltava a repetir que estava indo tudo muito bem; que a clomipramina e outros triciclos eram realmente milagrosos, mas que a paranóia do velho continuava, que ele seguia jurando que sob sua cama havia um jacaré... E que, como havia vivido alguns anos na América Central, às vezes seu pai nem dizia jacaré, preferia dizer caimã... Acreditem, há um caimã em baixo de minha cama!!!... (Dizia com ênfase o velho, meio em pânico, mas também querendo vingar-se dos filhos, chantagear o mundo e testar a competência e a malícia dos doutores...)
O movimento na padaria ia aumentando e ele bebericava o vermouth, avaliava o interesse de seu interlocutor e ia contando a história em detalhes.
Meses depois - continuou - essa moça arrumou um emprego numa multinacional de medicamentos e saiu do hospital. Ninguém mais a viu por um bom tempo, até que um belo dia ela voltou por lá para resolver uns assuntos burocráticos e um médico, meio coroínha, mais beato do que Cristo e cheio de pudor, perguntou-lhe: colega, e aí? Como vai seu papai?
Ela, usando uma blusa de seda preta, uma pulseira enorme e brincos também enormes, de legitimo coral vermelho, comprados clandestinamente no golfo de Nápoles, baixou a cabeça e respondeu: Dr., sinto muito em dizer-lhe, mas numa noite do mês de setembro, meu pai foi comido pelo jacaré... O médico levou um susto! Convocou uma reunião de emergência e estão lendo e relendo a obra inteira do Thomas Szasz, até hoje...
O português, especialista em cambalachos, pessimista, larápio, louco por dinheiro, com uma saúde de ferro, e mais cético do que uma cabra, explodiu numa escandalosa gargalhada...
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