sexta-feira, 16 de abril de 2021

Entre vacinas e pepitas de ouro...


Entre todas as noticias inacreditáveis que circularam pelo mundo desde o inicio da pandemia até agora, a mais fascinante e mais cinematográfica foi a de ontem: os índios ianomâmis fazendo uma denuncia de que funcionários da saúde que estão lá nas tribos aplicando vacinas, estariam vacinando clandestinamente também a garimpeiros em troca de pepitas de ouro. Sem nenhuma mistificação babaca, isto não lhes parece fantástico? Imaginem um curta-metragem. Os detalhes da negociação. A artimanha dos garimpeiros, todos nômades e pertencentes ao lupemproletariado nacional. Os trabucos e os facões na cintura e uma bolsinha de couro de vaca cheia de pepitas, de pedras preciosas que ainda não foram arrematadas e traficadas pelos estrangeiros, pelas ONGS, os evangelistas, as múltiplas congregações planetárias que disfarçadas de ecologistas, incursionam por lá. E o terror de morrer. Na hora do crepúsculo o canto da araponga com seus 120 decibéis que faz estremecer o sertão. As culpas. As dividas, a promessa de prosperidade e de voltar, feita aos filhos e às amantes que deixaram pelo mundo. A luzinha vermelha de um lampião lá no acampamento das putas que, como gaivotas, viajam sempre atrás dos garimpos porque, como eles, também são loucas pelo vil metal. Mas surgiu a epidemia! O mundo entrou em colapso! Os humores mortais da floresta. Os miasmas na beira dos rios... as sombras... as covas no meio do mato e sem identificação alguma, como ponto máximo da solidão! Um vírus! O que é isso? E os índios, com suas manhas próprias, que assistem passivos e em silêncio aquele focinhar incensante em suas terras.
E eis que aparecem os agentes de saúde com suas agulhas e com seus vidrinhos. Quase uma regressão de 500 anos. Alguma coisa em seu íntimo deve acionar as memórias da chegada daquelas caravelas que eram como medusas que seduziam e devoravam. Os tempos eram outros, as doenças e os perigos também... Espelhos, punhais e saca-rolhas... Filetes de bacalhau. Segundo os feiticeiros, sempre há alguma maldição rondando a floresta. As  agulhas! Como acreditar numa agulha e ainda mais, nas mãos de um homem branco? Ali ninguém é digno de confiança! Imunizar. Contra o quê? Os anticorpos. Mas o que são e onde estão os anticorpos? De onde teria vindo o mal. De qual aldeia? E os garimpeiros fazem bullying entre eles, brincando com as armas e olhando para as índias semi-nuas com concupiscência. Se não fossem as flechas envenenadas dos pajés.... O cheiro do fumo e da hoasca. Apesar das crenças, ninguém quer morrer e por fim a negociação: duas vacinas, uma pepita. Mas quem prova que a vacina é vacina e 
que a pepita é de ouro? 
Um casal de ecologistas passa à margem fazendo sua pregação quase religiosa de amor às árvores, à floresta e as libélulas. Um dos mais jovens e mais escolados dos garimpeiros os olha com ironia e resmunga para um colega o pensamento base de Chico Mendes, aquele que foi assassinado por lá:  luta ecológica que não inclui luta de classes é jardinagem... Todos riem sem saber do que riem. A vida é um show até mesmo lá no meio da floresta mais cheia de perigos e mais vazia de porvir...

 

2 comentários:

  1. Ótimo texto para um conto contemporâneo! A verdade com pitadas de humor inteligente! E viva o Brasil!

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  2. Puta que pariu nessa frase do Chico Mendes hein !

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