quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Quando quero ler algo impregnado de invenções, de mentiras e de cinismo, releio meus próprios livros...




 5. Na hora do embarque, os olhares dos passageiros caem despretensiosa e involuntariamente sobre a mulher de vermelho que entra se requebrando por entre as poltronas. De tão acostumada a ser olhada apenas no baixo ventre (entenda-se, na xota e na bunda), quando alguém a olha nos olhos, a mulher logo se sobressalta e se sente 'embaraçada'...

9. As privadas do aeroporto de Amsterdam foram planejadas para que a descarga dispare automaticamente. O passageiro que a ocupou antes de mim e que ainda não sabia dessa novidade, hesitava em deixar o local sem antes dar um sumiço na sua obra. Quando, finalmente, abriu a porta e a descarga foi acionada, gracejou vitorioso, já que agora, ninguém poderia ter acesso ao seu tesouro e à sua obra... Por coincidência, na parede daquele lugar escatológico, bem sobre o trono, alguém havia rabiscado uma conhecida frase de A. Musset: "Todos os homens são mentirosos, inconstantes, falsos, fofoqueiros, hipócritas, orgulhosos e covardes, desprezíveis e sensuais; todas as mulheres são pérfidas, artificiais, vaidosas, curiosas e depravadas; o mundo não passa de um esgoto sem fundo onde os vermes mais horrendos trepam e se torcem sobre montanhas de lodo..."

21. No elevador imperial da Pensione Capri, uma mulher sexagenária confidenciava em lágrimas a uma outra, bem mais jovem: "Meu marido nunca teve sorte! Tudo o que fez na vida deu errado! E era um homem bom! Sempre correto e justo!"A outra resmungou-lhe: "Madonna, mas você já tem idade suficiente para saber que para ser justo com os outros é necessário, antes de tudo, ser justo para consigo mesmo..."

24. Ao contrário do que muita gente pensa, o coração de Roma é a Estação Termini e não o Vaticano. Aqui, ao lado da Via Marsala, às 22:48 horas, os Alfa Romeos dos pederastas descem lentamente, com os faróis baixos, à caça de um michê das arábias. Foi aqui que Pasolini fez sua última caçada. Um italianinho delinquente, sabe-se lá por que, acabou mandando-o para os michês do inferno...

129. Nos dias que antecederam meu embarque para este país, sentia que os avós, bisavós e tataravós que trago internalizados, faziam de tudo para sabotar minha viagem. Mencionavam as idiotices passadas da monarquia, a fome, a pelagra e os horrores nos porões das caravelas... Enfim, não queriam, em hipótese nenhuma, que eu voltasse para a terra de onde foram banidos...

37. Ao lado do obelisco da Praça São Pedro, um grupo de adolescentes latino-americanos canta  hinos religiosos de mãos dadas. Simbolicamente - me alerta o gerente do hotel - são os mesmos sujeitos bundões imorais que no passado gritavam vivas à inquisição e aos reis. Os  mesmos que faziam coro de fundo aos hinos do fascismo ou mesmo à Internacional Socialista...

38. Quando as duas freiras belgas percebem que estão sendo fotografadas tentam se levantar. Ordeno autoritariamente que fiquem imóveis. Elas obedecem. Ficam quietinhas, tímidas e submissas, como se eu fosse o Papa; a Madre Superiora ou mesmo o Pai, com quem tiveram práticas ou fantasias incestuosas... O crucifixo pesa-lhes no pescoço...

50. No imenso Cemitério Verano, uma constatação inexorável: nenhum Bazzo e nenhum Broll estampado nas lápides. Ou foram todos enterrados como indigentes ou descobriram o segredo da imortalidade...

65. Minha afinidade com os gatos é tanta que em apenas dois dias aqui neste Cemitério, onde identifiquei uma centena deles, já sei quais são suas rotinas, quais as tumbas preferidas; a que horas saem de seus esconderijos ávidos pelo sol; em que período do dia desaparecem; onde vão buscar comida e sobre quais túmulos não se atrevem a colocar as patas...

70. São suficientes apenas vinte minutos de ônibus para sair do centro de Roma e cair numa periferia literalmente medieval. Fiz esse trajeto várias vezes, apenas para estar no meio daquele povo rude, ignorante, explosivo, pão duro, blasfemador e animista que ainda não se livrou da polenta, nem dos lambaris fritos e nem da rúcula...

72. Caiu sobre a noite romana uma neblina gelada. No último trem, um cigano fingindo-se de bêbado, recita compulsivamente a frase conhecida de Ezra Pound: "Um inferno obsceno de banqueiros, fazedores de guerra, fabricantes de munições, donos de imprensa..."

81. Tente compor uma poesia: na quinta ou na sexta palavra, já terás caído no terreno reptiliano do esoterismo e da religião. É por isso que o filósofo alemão acusava os poetas de terem sido sempre "os criados de quarto de alguma moral..."

84. Aqui na Itália é fácil constatar que os maccherone, as pizzas, os canelones, os cappeleti, os ravioli e etc, vão todos parar no traseiro e nas ancas da mulheres. Ironicamente, elas que eternizaram o cardápio desta cultura são justamente suas maiores vítimas...

121. Primeiro, ouvi o desabafo amargurado da mãe, cujo filho estava envolvido com uma puta e proxeneta. Depois, ouvi o relato do filho, fascinado e apaixonado pela mulher da noite. Por mais que tenha me esforçado, foi impossível ficar do lado da mãe...

130. Na primeira vez, mendigava bem vestida e com uma criança no colo; na segunda vez, chorava desesperadamente numa estação de metrô. Agora, está a uns cem metros do vaticano, com uma perna enfaixada e deitada ao lado do poster de um santo crivado de flechas. Deve estar seguindo a risca o conselho de Nietzsche: "Se aspiras à glória, renuncia a tempo e espontaneamente, à honra..."

139. A um professor que escreveu-me perguntando qual era meu 'processo de produção', lhe respondi com uma frase de Winnicot: "quando tenho uma idéia, primeiro a escrevo, depois a desenvolvo e, finalmente, me pergunto de quem a roubei..."

142. Em 1972, com mais três amigos adolescentes e uma peruana, fui preso na cidade argentina de San Salvador de Jujui. Enquanto aqueles policiais abomináveis nos submetiam a um interrogatório cruel e criminoso, íamos desejando que aquele país fosse destruído pelo pior dos monstros. Por menos que entenda de economia, tenho a impressão que nossas maldições estão se concretizando...

150. Vista ainda do mar, Cagliari parece uma Havana. Duas mulheres elegantes e profissionais sorriem simpáticas na direção de nossas carteiras, enquanto dois bêbados dialogam sentados sob duas imensas colunas. Um deles, para dar maior ênfase ao que fala, ao final de cada frase faz o sinal da cruz e beija a ponta dos dedos... (...) Acompanhei a procissão que ia de uma igreja a outra ouvindo atentamente o conteúdo das orações. Pelo número de vezes que mencionam as palavras virgindade; santidade; castidade; pureza e etc, não resta dúvidas de que professam uma religião edificada sobre os destroços do desejo e sobre a preservação do hímem...

162. A melhor maneira de intrometer-se na cultura dos outros povos é travestir-se de turista idiota. Aqui na Sardenha, disfarçar-se de católico é crucial. Fico impressionado e assustado com a facilidade com que incorporo esse disfarce é essa fantasia... Será que esta aptidão está mais vinculada ao circo, aos genes dos camaleões ou ao clero?

166. Nos anos 70, o passaporte tinha um valor quase metafísico e quase sagrado. Qualquer policiazinho da Bolivia ao Nepal nos obrigava a mostrá-lo dez vezes por dia. Hoje, que os controles estatais se modernizaram, não servem mais para nada. A policia internacional sabe, por outros meios, desde a marca do vinho que bebemos até os detalhes de nossa última trepada...

174. Pelo fato de minha agenda ter uma capa preta, é facilmente confundida com os breviários dos padres e dos capuchinhos. Quando a manuseio num ônibus ou num café, sinto que alguns me dão as costas com ânsia de vômito e que outros gostariam até de pedir-me uma benção...

178. No alto do Castelo de Castelsardo, a turistada se colocou em fila para ver o ninho de uma gaivota com quatro ovos. Enquanto eles miavam como raposas, filmavam e fotografavam, a dona dos ninho sobrevoava aflita a quietude das ondas, certa de que alguma maldição estava prestes a acontecer contra sua prole...

185. Ao lado, as montanhas cinza de Nuoro. No hotel Grazia Delleda, ouço alguém perguntando ao proprietário se não conhece um hotel mais econômico. Mais econômico!?  - Lhe contesta com agressividade, seguida de uma blasfêmia - só ao ar livre!

188. Nada mais delicado e feminino do que o nome da igreja que fica aos pés do Monte Ortobene: Chiesa della solitudine.

190. Na cidade de Orgosolo (a famosa Terra dei banditi, com seus também famosos murais nas paredes), um ex lapidário e agora relojoeiro fica intrigado pelo fato de eu não usar relógio. Mesmo depois do blá,blá,blá dos camelôs, seguiu insistindo em saber como eu fazia para me mover pelo mundo sem saber as horas...


192. Foi só saber que Orgosolo era tradicionalmente uma cidade de pastores e de bandidos, que corri para cá. Me dou bem com essa gente! Meu mapeamento genético ainda haverá de revelar-me alguma coisa transcendente sobre essa identificação e sobre esse fascínio...

208. Hoje, sábado, o jornal La Nuova Sardenha noticia a morte do famoso maestro veneciano: Giuseppe Sinopoli. Morreu em Berlin durante uma apresentação de Aída, na Deusche Oper. Para que os musico-maníacos vejam, essa arte de bater em cordas e de assoprar em tubos não é - como os melindrosos afirmam - um antídoto e nem uma panacéia para todos os males...

213. Em Olbia, vale sarcasticamente o que disse Andy Warhol da cidade de Firenze: "O mais belo que há é o Mac Donald's".

216. Passando pelas proximidades de Ardara, vi da janela do trem um rebanho de ovelhas amontoado sob uma árvore para proteger-se da chuva e do frio. Uma semana depois, passando pelo mesmo lugar, vi o mesmo rebanho sob a mesma árvore, só que agora, para proteger-se do sol. O sadismo da natureza é visível e inegável!


217. Um tal Enzo Biagi, em sua coluna no Corriere della Sera, falando dos tempos trágicos da Segunda Guerra mundial, se refere a um conto de Maupassant onde um invasor alemão abraça uma mulher francesa e lhe diz: todas as mulheres da França são nossas. Ao que ela lhe responde: Guarda, eu sou uma puta!

220. Presidente, sou ateu, não posso jurar! Disse o preso Salvatore Grassonelli numa prisão de Agrigento, sob a acusação de pertencer à máfia.

223. Ao entrar num ônibus que ia para S. Pantaleo, senti-me momentaneamente inseguro sob o olhar duro dos passageiros. Uma única exceção foi a mulher de uns 40 anos que sorriu-me simpática e que concedeu-me um lugar a seu lado. Ao longo da viagem começou a cantar e a assobiar escandalosamente. Caralho! Era uma ex-interna que se beneficiou do projeto antimanicomial do Basaglia.


232. O que verdadeiramente me incomoda no capitalismo, nem é tanto a miséria da grande maioria (já que ela tem um parentesco com a condição humana original), mas os ganhos irracionais dos idiotas do tênis - por exemplo -; dos imbecis do futebol; dos palhaços da TV; dos cus sujos da Fórmula 1 e dos cretinos do sistema financeiro. E nem vou falar da legião de trambiqueiros que, valendo-se do primitivismo popular, se fazem passar por artistas... Nossa complacência e nosso silêncio a esse respeito é que nos transformam moralmente num bando de indigentes...

235. DIO QUE TE BENEDIGNA! Murmurou-me a cigana com a boca cheia de dentes de ouro na porta de um mercado. Como se vê, nem os ciganos não são mais os mesmos...

236. Prestem atenção como por detrás de cada homem que morre prematuramente está sempre uma cozinheira frígida. Excesso de mesa e falta de cama! Muito toicinho e pouca xota!


245. O Canal de Corinto une o Peloponeso à Grécia Continental. Ali, um homem supostamente cego tocando seu bouzouki implorou-me uma esmola. Não titubiei em dar-lhe um punhado de Dracmas que, apesar de serem falsificadas, devem ter servido para amansar um pouco sua visível ganância...

247. Péricles, Platão, Homero, Agamenon, Afrodite, Atena, Apolo, Eros, Electra, Hermes, Ícaro, Minos, Édipo, Dionisio, Socrates, Zeus, Orfeu, Onassis, Esculápio, Costa Gravas, Minotauro, Diógenes, Maria Callas... e a dona rabugenta do hotelzinho que tem as torneiras enferrujadas... Tudo mito! Tudo mentira! Tudo ficção! Uma espécie que só se suporta mentindo e inventando anedotas transcendentes para dar-se mais importância do que tem. Não foi por acaso que os deuses, quando precisavam fazer contato com essa gente, vinham em forma de animais...


248. Enquanto a guia, quase excitada, vai contando as histórias arqueológicas a respeito destes montes de pedras, destas colunas caídas e destes ícones nem tão legítimos assim e falando quase com devoção do Édipo Rei, escondo meu niilismo e amaldiçoo o sol abrasador daquela hora. Uma outra mulher, também forasteira, também parece inquieta ali naquele lugar como se o que verdadeiramente lhe interessasse estivesse lá na Ilha de Lesbos...

254. Dei a volta ao mundo umas duas ou três vezes, li muito mais livros do que deveria ter lido e só encontrei mulheres resmungando, se queixando, pisoteando a condição humana. E não escrevo isso como crítica, mas para insinuar que, talvez, elas sejam filosófica e anarquicamente bem mais coerentes e lúcidas do que os homens...


259. Patmos. Foi só colocar os pés no barco que nos levava para a Ilha de Patmos, para que uma tormenta apocalíptica caísse sobre o mundo grego. É evidente que João, desde sua psicose, deve ter suspeitado daquilo que nossa visita representava....

263. Os últimos 4 dias de Istambul, foram dedicados a um 'ensaio' fotográfico das vinte e tantas portas do Grand Bazar. Se Dante tivesse escrito seu inferno uns duzentos anos mais tarde, com certeza teria colocado este mercado num dos lugares mais ardentes de sua obra...

265. É necessário admitir que o grosso do turismo na atualidade não passa de um trottoir-geronto-teológico, um tour de velhos pelas sinagogas, catedrais, mesquitas e casas de umbanda do mundo... A angústia da maturidade - me confessava uma dessas senhoras - é ver-se encurralada e sem saída entre um passado falsificado e um futuro cheio de embustes e de cadáveres...

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Um comentário:

  1. ahhahahaah vou reler esse livro
    outro dia reli foi A lábia encantadora das ruas
    obrigado por apresentar João do Rio

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