sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Desculpem o pó!


"O que mais frequentemente rogamos a deus não é que nos permita fazer a sua vontade, mas que aprove a nossa..."(Guidepost)

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De vez em quando recebo noticias de uma dona de pensão lá de uma minúscula aldeia de Portugal, onde me hospedei por uma semana, a 12 dólares/dia, com café da manhã e roupa lavada, incluído. Era uma senhora extremamente viperina; mitômana; de uns 114 quilos, que revistava clandestinamente minha bagagem, que procurava ouvir o que eu falava ao telefone, que controlava o tempo de meu banho, que vasculhava o titulo dos livros que eu estava lendo e inclusive o caderno onde eu costumava fazer algum registro. E mais: que fazia questão, quando telefonava para alguém, de insistir em dizer que tinha memórias inapagáveis seu ex-marido que havia pertencido ao Partido União Nacional e que estava hospedando um gajo da América. América? Em qual das Américas ela me havia situado? Lembro que depois de imiscuir-se clandestinamente em meus pertences, costumava deixar, maternalmente, sobre a pilha de livros que havia na cabeceira de minha cama, um bolinho de bacalhau num pratinho do século XVII... e que a um metro acima de meu travesseiro, ao lado de uma caravela navegando periclitante no meio das ondas assustadoras, havia uma imagem da Virgem de Fatima que, de madrugada, quando eu acordava com uma ereção quase absurda (absurda para acontecer ali, naquela hora e naquele lugar pacato e bucólico. Aliás, existirá algo mais absurdo do que uma ereção? Algo que denote com mais clareza nossa cumplicidade com o projeto cretino de manutenção do rebanho, do que a ereção?) e louco para ir ao banheiro, me olhava carinhosamente nos olhos... No quarto ao lado estava hospedado um casal de jovens vietnamitas que gostava de trepar de madrugada. E quando a menina exagerava no fingimento de estar gozando, logo se ouvia batidas na parede e resmungos que vinham da recâmara da proprietária... Vão foder assim em Saigon ou na puta que os pariu... No dia seguinte, no café da manhã, sentados em mesas vizinhas, de vez em quando percebia que ela me olhava com uma certa curiosidade... mas.., suspeitando que seu cara pudesse ser um new samurai, preferi assumir a postura de um bobalhão e ridículo colecionador de coleópteros... Na parede, um pano bordado com uma frase da poetisa e quase santa, Florbela Espanca, ela que nasceu na Vila Viçosa, num dia 08 de dezembro, que passou por três maridos e que suicidou-se também num dia 08 de dezembro.  

As mensagens que me manda são singelas, sempre, claro, naquele pessimismo e malícia estrutural dos portugueses, mas típicas de uma dona de casa portuguesa, sempre com o avental cheirando a sardinhas na chapa e que não vão além das variações meteorológicas, das festas medievais lusitanas e das luxurias da mesa. Mas têm duas coisas que ela sempre insiste em perguntar-me: "Se já tive saco de ler os Lusíadas e se já descobri alguma coisa sobre o gajo do cemitério?"

O tal gajo do cemitério que ela se refere diz respeito à minha tentativa, nos dias que estive por lá;  - e mesmo depois de ter voltado para Lisboa e até bem mais tarde -, de descobrir a biografia de um morto, enterrado no singelo e ensolarado cemitério daquela aldeia, (sem a grandiosidade e em nada parecido ao Pére-Lachaise), em cuja lápide havia este epitáfio: FODAM-SE!

E não se tratava de uma pixação de punks, nem da tribo dos emos, nem de satanistas ou de cheiradores de cocaína. A frase estava gravada em baixo relevo, num azul escuro, num losango de mármore e com o zelo que só um profissional de marmoraria tem. FODAM-SE! No centro da lápide havia um pequeno pote com traços orientais, dentro do qual havia os restos antigos de um cravo já sem cor...

Achei o máximo! 

Mas quem seria o sujeito? Seu nome era um nome comum entre os lusitanos. A data de seu nascimento e morte indicava que havia morrido com 49 anos. Mas, de quê? De alguma doença prolongada e cruel? Sob tortura? Salazar - o ditador que também era professor catedrático da Universidade de Coimbra -, já havia 'partido' há uns 40 anos.., mas seus cães de estimação ainda ocupavam postos importantes dentro e fora do país.

Uma velhinha que circulava por lá passando pano nos túmulos e distribuindo biscoitos a um casal de gatos, olhando-me desconfiada, e pronta para 'negacear', jurou que não tinha a mínima idéia sobre a identidade do morto e muito menos do significado daquela frase. FODAM-SE! Segundo ela, nem sabia muito bem o que aquela palavra queria dizer. 

Fui à prefeitura; ao pároco que vivia num sobrado perto dali e que me pareceu um sujeito 'euforicamente fanático'; consultei uma espécie de sindicato de estrangeiros; discuti com um sujeito pavão que era dono da única livraria/papelaria da aldeia e falei até com um policial perdulário, já quase jubilado e que havia trabalhado nas colônias africanas... Nada! Ninguém sabia quem era o morto que havia lançado aquela blasfêmia contra os vivos... Entrei num galpão de fundo de quintal onde, no meio do barulho de uma makita e da poeira do mármore e do granito, um moço albino, chamado Manuel, com as sobrancelhas eriçadas e cobertas por aquelas pequenas partículas que são o demônio das alérgicas e que ameaçavam escorregar por sobre suas córneas, fez um esforço enorme para aturar-me e jurou não lembrar-se de tal funeral e nem de ter produzido a tal tabuleta... Enquanto ele falava e suas sobrancelhas iam dando 'imperceptíveis' tremeliques, eu murmurava, entredentes, uma frase de um outro Manuel, bem mais notável do que ele: Manuel Bandeira: Como a vida nos faz cínicos!

Na terceira ou quarta vez que voltei ao cemitério, indaguei novamente à velhinha que continuava lá, passando pano nos túmulos e alimentando o casal de gatos... Quem teria sido esse sujeito em vida? Onde teria vivido? Morreu em que condições? Quais as razões de sua última mensagem? Ela, já bastante irritada, voltou a dizer que não tinha o menor interesse pelo assunto e, olhando-me meio de soslaio, ficou recitando a tal frase lapidada ali na tumba do morto anônimo: FODAM-SE! FODAM-SE! Senti que em sua voz havia um não-sei-quê de sortilégio... Em seguida, mais calma, lembrou-me de uma escritora da América que teria mandado escrever em sua lápide: DESCULPEM O PÓ! Também achei  o máximo!

O dia estava estupendo! Ela deu-me as costas, passou a falar rigidamente com seus gatos enquanto ouvia de um antigo gravador que levava na bolsa, aquela poesia musicada do Fernando Pessoa: Cavaleiro Monge... Dizer que a cena era surreal, seria ter um imaginário muito pobre e não reconhecer o prazer de uma visão hiperbólica das coisas...

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