sábado, 13 de novembro de 2021

Goiás: o álcool, as mulheres, o diabo e a Idade da Pedra...


SENHOR! 
Que eu possa agradecer a Vós, 
minha cama estreita, 
minhas coisinhas pobres, 
minha casa de chão, 
pedras e tábuas remontadas. 
E ter sempre um feixe de lenha 
debaixo do meu fogão de taipa, 
e acender, eu mesma, 
o fogo alegre da minha casa 
na manhã de um novo dia que começa.
(Cora Coralina)



Nesta semana, ou melhor, nos últimos meses, o Estado de Goiás tem permanecido no centro de acontecimentos exóticos. Depois do affair das mulheres com o curandeiro João de Deus e o dos padres da confraria Pai Eterno com o dinheiro dos fiéis, veio tragicamente a morte da cantora Marilia Mendonça e do tradicional político Iris Resende... agora apareceram as polêmicas placas de Miranápolis, um vilarejo próximo a Anápolis. São placas com frases retiradas do fundo dos baús da Idade Média e todas cheirando às seitas daquela mesma época. Por essas placas serem anônimas e por terem aparecido numa região infestada de templos, igrejas, mosteiros e até uma Diocese, os padres se apressaram em lavar-se as mãos e informar às autoridades locais que não têm nada a ver com isso.

Para nós, apesar de estar evidente que se trata de uma guerra religiosa entre energumenos com o mesmo DNA, a autoria da manifestação não tem a menor importância, o fascinante mesmo é o conteúdo antropológico dessas frases. Uma delas, por exemplo, e que os jornais destacam, é a que se vê acima, querendo empurrar as mulheres para a negação do corpo e de volta para o uso da burca e do véu. Seria uma variante da tara? 

[A MULHER QUE USA ROUPA CURTA, TRANSPARENTE E DECOTADA É AMIGA DE SATANÁS]



Uma outra dessas frases, que com certeza causará ainda mais indignação na população de lá, já que mais de 98% é adicta à cachaça ou a alguns derivados, é esta:

[A BEBIDA ALCOOLICA É URINA DO CAPETA].

Não lhes parece fantástica a patologia desses gente? A respeito do álcool, esquecem que os livros sagrados estão repletos de bebedeiras e que inclusive, eles próprios, esses livros, foram escritos por sujeitos em estado de alteração alcoólica. Esquecem que no ritual das missas, os padres tomam uns tragos de vinho e que ele, ali, longe de representar a urina de capeta, simboliza o sangue de Cristo. Aliás, e por falar em Cristo, quem é que não se lembra que ele, numa festa de casamento (lá naqueles cafundós do Judas), transformou um barril de água em um barril de vinho? E quem é que não se lembra da inscrição que há lá na tumba da egípcia Chratiankh:"Fui a amante da embriaguês". E quem é que não se lembra que, na anedota do dilúvio, a primeira coisa que Noé fez quando as águas baixaram foi plantar uma vinha?

Já, a frase a respeito das mulheres e de seus corpos, me leva a fazer a velha indagação de sempre: que crime as mulheres teriam praticado lá na origem do mundo, para que os homens (e inclusive algumas mulheres) de todas as culturas sigam tentando pisoteá-las e vingar-se delas? É difícil encontrar um dos supostos livros sagrados que não as submeta a um massacre. Os trapaceiros da academia gostam de fazer pose e de indagar: tratou-se de uma transgressão ontológica ou de uma desgraça filogenética

Lá entre os gregos, por exemplo, é de se perguntar: o que foi o 'florescimento' do homossexualismo masculino senão uma manifestação aberta de asco, de repúdio e de rejeição à mulher? Ao corpo da mulher? O que elas teriam aprontado por lá? E o conflito com o corpo feminino foi tanto.., a perseguição foi tanta, que desde a antiguidade as mulheres foram até proibidas de usar calças... Sim, o próprio Napoleão (sempre presente nos delírios dos internos) instituiu essa lei que não foi suprimida até hoje. Aqui nos órgão públicos, nas igrejas, no Congresso, etc., (por exemplo) até hoje as mulheres só podem entrar se estiverem de vestido e com as tetas bem dissimuladas. Não lhes parece uma bizarrice e uma loucura? Mas, qual é o problema com o corpo das mulheres? Curiosamente, todos esses idiotas estiveram confinados dentro de um, em média, por uns nove meses! Não é verdade? Teria sido por isso? Ou teria sido pelo lugar por onde nasceram? De onde vem essa necessidade de confiná-las num gueto diferenciado? Preste atenção, como até os botões das camisas masculinas e femininas estão em lados diferentes. Os homens abotoam os casacos para a direita e as mulheres para a esquerda... No mundo do trabalho, então... Elas que passaram séculos trancafiadas em casa tratando porcos e galinhas, fazendo comida, cuidando de meia dúzia de filhos e fiando, tiveram que ouvir Platão afirmar: "Se a natureza não tivesse criado as mulheres e os escravos, teria dado ao tear a propriedade de fiar sozinho". Aristófanes ria delas por causa do caráter repetitivo e sem criação de seus trabalhos. E Robespierre (aquele advogadozinho de merda, ícone da Revolução francesa, que era conhecido como 'o incorruptível'), não deixava por menos: proibia toda e qualquer participação das mulheres em manifestações politicas. E, para um tal Menandro, que os filósofos contemporâneos conhecem e cultuam, "Uma mulher honesta devia ficar em casa, já que a rua era para as mulheres que não valiam nada". E Xenofonte, aquele mercenário capanga de Sócrates põe na boca de seu amo esta teoria: "Quando os corpos são efeminados, as almas perdem toda a energia". Enfim, não faz muito que alguém declarou: "a mulher, mesmo instruída só pode ser professora de crianças, e que ela deixe os adolescentes e os adultos para os professores - os homens. E o beijo nas faces que se costuma dar nas mulheres, naqueles tempos era a forma sutil de sondar e de checar se elas haviam bebido... E os corpetes, que eram verdadeiras armaduras? E os cintos de castidade? E os braceletes (em ouro, marfim ou cobre) que elas usam até hoje e que, segundo a própria Bertha Lutz, são memórias nostálgicas e  inconscientes das algemas? E alguns soutiens de atualmente, que ainda trazem uma armação de arame?

Observação: Várias das outras placas espalhadas pelo vilarejo também fazem referência ao diabo, ao capeta, a Satanás. Não é curioso? De onde lhes teria vindo e o que significa essa fixação? Quem é que diria que esse personagem fictício chegaria a ser "O cara", para essa pobre gente espalhada aí por essa terra montanhosa e poetizada por Cora Coralina???

Y asi se van los dias...

(Ver livro de Evelyne Sullerot - A mulher no trabalho (História e sociologia).





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