"(...) que as igrejas essas associações resultantes da identidade de crenças, vivam livres na adoração do seu Deus, na propagação da sua fé, na difusão de suas doutrinas que elas, independentemente de qualquer poder estranho, possam elevar-se à adoração do eterno princípio de todos os seres: que, por seu lado, o Estado, único poder nas sociedades livres. gire independentemente na órbita de sua ação, e não queira comprimir os cultos senão quando eles ofendem a paz das sociedades: eis o nosso ‘desideratum’. Queremos, em suma, de uma lado a perfeita liberdade para o Estado: do outro a perfeita liberdade para a consciência, ou, na frase de Lamartine, a liberdade para Deus” . (Declaração do incensado Rui Barbosa)
(GALDINO, Elza. Estado sem Deus. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 5)
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O dia amanheceu como amanhecem os dias em Chernobyl: cheio de nuvens nada simpáticas que ameaçam outro diluvio... No mercadinho da esquina, eis que aparece a velhinha armênia, - com seu lenço amarelo de seda italiana amarrado na cabeça e um incômodo guarda chuva pendurado na cintura - que comprava um maço de bardanas. (Aproveito para dizer que, não sei se pelo longo tempo de confinamento, sinto uma alegria imensa quando a encontro). Parecia furiosa, num diálogo que travava com outra cliente, uma senhora também passada dos 90 que ainda estava com a roupa de dormir e os poucos cabelos que tinha, de tão desalinhados, lembravam um ninho de serpentes ou a Medusa de Caravagio.
Discutiam sobre a tal Lei Amazonense, que nestes dias foi proscrita pela Ministra Cármem Lúcia, do Supremo. A tal Lei, para quem não sabe, obrigava o Estado do Amazonas a prover todas as escolas e todas as bibliotecas daquele Estado (que não são muitas) de, pelo menos, uma Bíblia Sagrada. (A idéia, descaradamente comercial, para desovar uma edição empacada, todo mundo se pergunta, teria partido de um padre, de um do governador ou de um editor arruinado? Ou dos três juntos, numa espécie de ménage à trois?) A velhinha dos cabelos serpenteados, que é alucinada e fanaticamente mística, estava indignada com o ato da Ministra. Já a velhinha armênia, que cospe sobre todas as supostas divindades, parecia eufórica e, até fazia apologia dos patriarcas incorruptíveis do STF.
Imaginem, - dizia - se, ao invés da Bíblia, tivessem obrigado a que cada escola e cada biblioteca tivessem, pelo menos um exemplar do Livro Sagrado dos Tikunas ou dos Ianomâmi ou dos Manaós! Como ficariam os Macuxi; os Xavantes; os Terenas, etc? Sem falar do Corão; do Talmud; do Bhagavad Gita; do Kapital, de Marx; do Páli Tripitakan, dos budistas; dos Escritos de Lacan; do Livros dos Mortos, dos egípcios; das ficções de Madame Blawatski; do I Ching e, claro, do Evangelho segundo Chico Xavier...
Seria uma impostura ridícula! Mais ou menos como obrigar que cada escola e que cada biblioteca (que quase nem existem) tenha em suas prateleiras a obra completa do Marques de Sade...
A velhinha das serpentes na cabeça reagiu: Mas o problema não é só dos amazonenses, havia uma Lei igual a essa também no Estado do Rio de Janeiro!
Pior! - retrucou a armênia - Isto só indica que essa gente ainda não entendeu que desde 1890 o Estado é laico... que esses babacas seguem confundindo o Trono Imperial com o Altar Católico... Enfim: que a imbecilidade não é regional, mas sim nacional. E que entre o Rio de Janeiro e Manaus, apesar do teatro e dos delírios da petite bourgeoisie, a única diferença é que enquanto uns mergulham em Ipanema os outros submergem em Ponta Negra! Mas que na essência, os dois são ZONAS FRANCAS...
Antes de despedir-me, ouvi que ela confidenciava entredentes à moça do caixa - a moça singela que contava as moedas que ela havia depositado sobre o balcão - que seu marido, oito anos mais velho do que ela, havia começado a usar viagra (um genérico vindo do Paraguay) e que estava 'dando uma' às 18:00 horas; outra lá pela meia noite e que de manhã, ainda amanhecia com o negócio duro. Eu, - dizia - que já não estou com a lubrificação muito boa, não sei que pomada usar para amenizar as assaduras... A caixeira a ouvia um pouco intimidada, e não escondia uma misteriosa e perversa perturbação...
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