domingo, 19 de abril de 2020

E a rua? Uma releitura da obra de João do Rio... (Quase 100 anos depois de sua morte)

1. Oh! sim, as ruas têm alma! 
Há ruas honestas, ruas ambiguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...

2. Em Benares ou em Amsterdam, em Londres ou em Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais diversos climas, a rua é agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de  todo sem auxilio dos deuses enquanto diante de seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. Não paga ao tamanho para ouvir berros atenrados de leão avaro, nem a velha Patti para admirar um fio de voz velho, fraco e legendario. Bate, em compensação, palmas aos saltimbancos que, sem voz, rouquejam com fome para alegral-a e para comer. A rua é generosa. O crime, o delirio, a miséria, não os denuncia ella. A rua é a transformadora das línguas...

3.Tudo se transforma, tudo  varia - o amor, o odio, o egoismo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste a fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua...

4. As pedras são a couraça da rua, a resistencia que ellas apresentam ao novo transeunte. Reflecti que nunca pisaste pela primeira vez uma rua de arrabalde sem que o vosso passo fosse hesitante como que inconscientemente, se habituando ao terreno ; reflecti nessas coisas subtis que a vida crea, e haveis de compreender então a razão por que os humildes limitam todo o seu mundo á rua onde moram, e por que certos typos, os typos populares   populares, só o são realmente em determinados quarteirões.

5 E na rua, o que se  vê? O senhor do mundo , o reclamo. Em cada praça onde demoramos os nossos passos, nas janellas do alto dos telhados, em mudos jogos de luz, os cinematographos e as lanternas magicas gritam através do  écran de un panno  qualquer o reclamo do melhor alfaiate, do melhor livreiro, do melhor revólver. Basta levantar a cabeça. As taboletas contam a nossa vida...

6. Todos esses pobres seres tristes vivem do cisco, do que cáe nas sargetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróes da utilidade, os que apanham o inutil para viver, os inconscientes applicadores á vida das cidades daquelle axioma de Lavoisier - nada se perde na natureza. A policia não os prende, e, na bohemia das ruas, os desgraçados são ainda explorados pelos adélos, pelos ferro-velhos, pelos proprietários das fábricas... (de certo não conheces os trapeiros sabidos, os apanha rótulos, os sellistas, os caçadores, as ledoras de buena-dicha. Sí não fossem o nosso horror, a Directoria de Higiene e as claques das revistas de anno, nem os ratoeiros seriam conhecidos...
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Textos extraídos basicamente de seu livro: A alma encantadora das ruas. Se não consegui manter sua escrita original, foi pela correção neurótica e obsessiva de meu computador. As fotos abaixo ilustram o livro A lábia encantadora de João do Rio. Delas não há nenhum direito autoral. Estejam a vontade! (o Copyrraite é um delírio de miseráveis!)








































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