sábado, 25 de abril de 2020

As reais discordâncias entre Bolsonaro e o Moro...

""como cuando un amante penetra con todo su ser tan repentina y profundamente en su amada, que se oscurecen los ojos y se inflama una luz en la otra parte del telón cerrado de la piel..."
Robert Musil
(IN: El hombre sin atributos, página 53)


O mendigo K que passou o dia de ontem entretido com os discursos do Presidente da Republica e de seu Ministro da Justiça estava comprando meia dúzia de ovos caipiras na feira livre aqui da cidade. Ia acompanhado de sua esposa e também mendiga. Estavam radiantes porque, haviam recebido os 600 reais do Estado. 600 reais cada um! O mundo já era outro.
Quando me viu, fez questão de mencionar a polêmica entre o Presidente e o Ministro. Percebendo que eu não havia entendido muito bem os motivos reais daquela ruptura, piscou para sua mulher e me disse: Em rápidas palavras, vou dizer-te as razões verdadeiras da briga entre os dois:
Em primeiro lugar estava em questão a construção da ferrovia no Brasil. O Moro queria iniciar as obras já  no princípio de maio e, no estilo da Transsiberiana, construir uma rede de trilhos que iria da Paraíba à Foz do Iguaçu. Trens de luxo, rápidos, confortáveis, com vagões dormitórios, restaurantes, bibliotecas, salas de cinema, aulas de idiomas, shows pela madrugada afora e barris de vinho nos vagões.
Já, o Bolsonaro, achava melhor iniciar as obras em junho e, iniciar a ferrovia no Ceará e ir até a fronteira com a Argentina, e não nos moldes da Transiberiana, mas no estilo da que vai de Paris a Viena. Quanto ao luxo interno e à velocidade dos trens, não havia grandes discordâncias entre eles.

Em segundo lugar, estava a questão do saneamento básico. Bolsonaro insistia que esse projeto já deveria ter sido iniciado ainda em 1910, que na República do velho Platão, apesar de Atenas ser ainda uma tribo, já se percebe alguma insinuação sobre o assunto. A frase clássica e abominável de Sócrates: Só sei que nada sei, causava arrepios nos dois. E até concordavam que o próprio Sócrates havia morrido por falta de saneamento básico, por uma infecção intestinal e não pelos efeitos da cicuta. Já o Moro, achava que com o dinheiro que já foi repassado para os Governadores, para esse fim, (e que foi todo roubado e dividido entre suas famílias) daria para inventar algo bem mais moderno e transcendente do que essas tubulações de merda que correm sob nossos pés.

Em terceiro lugar, discutiam a questão das prisões, dos presídios, das cadeias e da iatrogênia social. Moro, que já mandou muita gente para trás das grades, propunha o fim radical dessas cloacas infames. Dizia que elas são um sintoma e um sinal de uma civilização burra, sádica e fracassada. Já, o Bolsonaro, com formação militar, concordava que uma prisão é sempre uma cloaca, mas insistia que se deveria substituir os presídios por Campos, fazendas, indústrias agrícolas onde os bandidos, os criminosos e até os condenados inocentemente, pudessem respirar ar puro, trabalhar, tomar o sol das 7 e o das 14:00 e receber suas massagistas de vez em quando.

Em quarto lugar, discordavam sobre a República e sobre a democracia. Os dois achavam que Platão havia cometido uma infâmia ao idealizar algo que, para funcionar, exigia uma certa sabedoria e onde a "voz do povo seria igual a voz de deus". Nem um nem outro jamais pronunciaram o nome de Bakunin, nem o de Engels e nem sequer o de Mussolini... Aliás, nunca mencionaram literatura nenhuma! Como é possível ser governados por quem não lê?

E durante a polêmica - concluiu, piscando novamente para sua senhora mendiga - as tropas da esquerda e da direita, cada uma em seu lado das arquibancadas, fazia tremer as lonas do circo com palmas, gritos, sapateios, danças tipo as de San Vito nos hospícios da Idade Média...
Sua mulher ria, o riso descompromissado dos mendigos, deles que não votam e que não estão nem aí para essa chanchada que é a república, para o Estado e para essa sociedade popularesca. O vendedor de goiabas gritou em nossa direção: Olha a goiaba! Olha a goiaba! A senhora mendiga retirou da bolsa em farrapos um livro de Robert Musil (El hombre sin atributos, vol II), leu esta frase em voz alta: as pessoas empregam palavras para esconder seus pensamentos e utilizam pensamentos para fundamentar seus erros"acenou-me sedutoramente e arrastando seu marido pelo braço, desapareceram no meio dos feirantes. Olha a goiaba! Olha a goiaba!
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Em tempo: O vendedor de goiabas ficou me olhando com curiosidade e, quando sentiu-se seguro, bradou: "Quem, ao contemplar uma esplendida vasilha de vidro, não sentiu, alguma vez, a tentação de despedaça-la com uma bengalada?" (Musil, VOL.II, p. 14)

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