terça-feira, 19 de outubro de 2021

O Mendigo K. e os 10 mandamentos dos vagabundos que se prezam...






Nesta terça-feira a padaria estava vazia. Segundo o proprietário, é normal, é só uma questão de horário. E quando chove, diz, se costuma fazer uma fornada a menos. Havia uma única mesa ocupada, onde o mendigo K discutia com três pessoas que permaneciam em pé, (uma mulher de uns 30 anos, um homem de mesma idade e um bem mais velho) que levavam cartazes denunciando o número de desempregados no país. Ouvi que dizia: Não sejam ignorantes! Deem graças a deus por estarem desempregados! Sinal de que a escravidão acabou... E que - como dizia W. Feather - "se tivéssemos realmente prazer em trabalhar, ainda lavraríamos a terra com arados de pau, e carregaríamos fardos às costas..."

E quando os três que estavam em pé reagiram com indignação, achando que se tratava de uma provocação, ele, antes de tirar do bolso o livro da Corinne Maier, olhando para o mais velho atacou: Isto não é uma ironia, e mesmo que fosse, um homem de sua idade que não suporta uma ironia não é um homem! (Silêncio). Abriu o livro numa página previamente marcada, assumiu uma postura de professor concursado e lhes disse: Prestem atenção que vou recitar-lhes os Dez Mandamentos que todo vagabundo honrado deve conhecer. E foi lendo:

1. O empregado é a moderna figura da escravatura. Recordem-se que a  empresa não é um lugar de realização pessoal, se fosse já nos teríamos dado conta. Você trabalha para receber o ordenado ao final do mês e ponto final, como vulgarmente se diz nas empresas.

2. Não vale a pena querer mudar o sistema, confrontá-lo é o mesmo que o reforçar; contrastá-lo é fazê-lo vingar com mais consistência ainda. Podem, entretanto, dedicarem-se às táticas anarquistas, tipo: instituir um dia consagrado a telefonar para o escritório para dizer Estou doente ou adotar o manifesto Roubem no emprego porque o emprego também vos rouba. Isto até que é engraçado, mas era bom para os contestatários dos anos 70, e sabe-se muito bem aquilo em que eles acabaram se tornando (em patrões).

3. Aquilo que fazem não serve, em última análise, para nada e podem, de um dia para outro serem substituídos pelo primeiro cretino que apareça. Por isso, trabalhem o menos possível e consagrem algum tempo (mas sem exageros) a venderem-se e a criarem os seus próprios círculos; desta forma, estarão dotados de apoios e serão intocáveis (e intocados) no caso de uma reestruturação.

4. Vocês não serão julgados pela maneira como desempenham o vosso trabalho, antes pela vossa capacidade em se conformar com sensatez ao modelo dominante. Quanto mais utilizarem uma retórica oca, mais pensarão que estão ao corrente do que se passa.

5. Nunca aceitem, seja a que pretexto for, um lugar de responsabilidade. Seriam obrigados a trabalhar consideravelmente mais, sem outra contrapartida senão alguns centavos a mais, e mesmo assim...

6. Escolham, nas maiores empresas, as áreas menos úteis: consultoria, peritagem, pesquisa, estudos. Quanto mais inúteis, menos possível será quantificar a vossa contribuição para a criação de riqueza da empresa. Fujam das funções operativas como da peste. O ideal será portanto procurar vir a ser posto na prateleira: estes postos de trabalho improdutivos, muitas vezes transversais, são irrelevantes, mas sem qualquer espécie de pressão de natureza hierárquica: resumindo, é o descanso.

7. Uma vez na prateleira, evitem acima de tudo as mudanças: entre os quadros, só os que mais se destacam é que são despedidos.

8. Aprendam a reconhecer, através de sinais discretos (pormenores no vestuário, piadas fora de tempo, sorrisos amáveis), aqueles que, tal como vocês, não acreditam no sistema e se aperceberam até que ponto ele é absurdo.

9. Sempre que enquadrarem pessoas que estão em situação temporária na empresa (contratados a prazo, tarefeiros, trabalhadores de firmas prestadoras de serviços...) tratem-nos cordialmente; nunca se esqueçam de que são os únicos que realmente trabalham.

10. Convençam-se de que toda essa ideologia ridícula, veiculada e promovida pela empresa, não é mais verdadeira do que o era o materialismo dialético, que o sistema comunista consagrou como dogma. Tudo isso terá a sua época e há de acabar por se desmoronar. Já Stalin o dizia: no fim de contas, é sempre a morte que ganha. O problema é saber quando...

Repetiu a última frase atribuida a Stálin e silenciou. Os três, que pareciam haver subitamente se libertado de uma culpa e de um peso, despediram-se com a clássica submissão dos desempregados, no mesmo instante em que um radialista, com lógica & entonação de astrólogo, anunciava um pequeno diluvio para as próximas horas... 


Um comentário:

  1. https://www.correiobraziliense.com.br/ciencia-e-saude/2021/10/4957513-burnout-saiu-do-mundo-do-trabalho-e-invadiu-outras-esferas-da-vida-diz-escritora-de-livro-sobre-millennials.html

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