segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Será necessário destruir tudo, inclusive as ruínas...




"Mon corps semble ne jamais vouloir se reposer" (Sylvain Tesson)


Outra Segunda-Feira. Sem nos dar-mos conta estamos embarcados num daqueles moinhos de vento que giram sobre si mesmos a espera de Godot. Mas as manhãs de inverno são sempre estupendas, sedutoras, inspiradoras, ensolaradas, convidativas. Prometem mundos-e-fundos, gozos quase demoníacos, nos incitam a caminhar de um lado para outro sem destino e sem razão, pelo único prazer de caminhar, ver o mundo se agitando; a florista da feira mentindo que acaba de receber uma espécie rara de orquídea. E os outros feirantes, cada um com sua mentira comercial. Se os grandes mercados alteram a validade dos produtos, diminuem as quantidades e aumentam os preços impunemente, por que é que os pobres e beócios feirantes não podem arquitetar seus próprios estelionatos & golpes? Nada é mais terapêutico do que vagar, sem destino, sem ter onde chegar. Aliás, todas as grandes obras, religiosas, científicas, amorosas, mafiosas ou literárias, foram produzidas por sujeitos errantes, vagabundos, nômades e por flaneurs... Gente que era capaz de passar uma manhã inteira admirando uma formiga escalando uma begônia com um grão de açúcar entre seus dentes microscópicos; passar horas assistindo a um carcará luciferiano preparando-se para tocar o terror sobre um pombal sonolento; um gato cheio de sensualidade e preguiça na soleira de uma janela ou enterrando com toda elegância e assepsia do mundo seus dejetos... ou o vento rugindo sinistramente nas cornijas de um barracão à beira-mar...  Penso em Champfleury: La marcha del hombre exige tan largas observaciones como las nubes pasajeras; los movimentos del que conversa sobre el muelle reclama espíritus tan atentos como los del matemático que investiga un problema...
Por outro lado, o sedentarismo de uma prisão ou de um lar, ou de um convento, ou de um quartel - é fácil compreender -, só engendrará excelências em mediocridades... gente que só aspirará pela hora da comida e pelo repouso e que passará toda sua vida alimentando essa ética de aprisco, esse lero-lero babaca e secular no qual estamos submergidos... Repouso? Ora! Não sejam babacas! Um dia todos repousaremos, e para sempre! "Graças a Deus!"
Ainda estamos no meio de uma epidemia, quase como a de 1918, aquela que ficou na história como sendo espanhola, apesar de não ter sido, e com muita gente entrando precocemente nos labirintos da demência... Uma epidemia que está deixando o mundo de joelhos, de quatro, e que escancarou a ficção do cientificismo e da suposta modernidade. A ciência, a educação, as multinacionais dos medicamentos, os partidos, as contas bancárias; os governos (de todas as laias), as seitas (de todas as facções), as filosofias dos gregos à dos porra-loucas da Escola de Francfurt... tudo foi por água-a-baixo. E eis-nos aqui, como palermas, seguindo puerilmente os conselhos e as encíclicas de um Papa argentino; de pastores cretinos, monarquistas e libidinosos; de gurus ciclotímicos; de uma Organização Mundial de ASPONES e reeditando terapêuticas que foram usadas inutilmente ainda lá na Peste Negra do século XIII... E com o horror das sirenes; dos gemidos; das covas coletivas; dos cacarejos (quase felizes) dos coveiros e dos cemitérios em alta rotatividade...Que fracasso! Que vergonha!
E, se fica cada dia mais difícil reconhecer as portas e as janelas como limites e fronteiras, fica mais difícil ainda imaginar-se amarrado na maca de um hospitalzinho sucateado, cheio de tubos enfiados pela boca e com as freiras laicas dos ambulatórios ao nosso redor murmurando um réquiem... Quê traição e quê furada! E nós que tínhamos em pauta um projeto mirabolante para nossa última década neste puteiro!
Que fique bem claro: quando o vírus, saciado e cínico, finalmente, por vontade própria, voltar a hibernar, ao invés de sairmos por aí comendo pizzas; esperando o coelhinho da Páscoa; depilando a rosca e a vulva (Ah!, quando é que se fará um manifesto pela volta dos pentelhos?) e saltitando como Alice, idiotizada no País das Maravilhas, é fundamental lembrar que temos o dever de destruir tudo, de não deixar pedra-sobre-pedra...de destruir inclusive as ruínas! E, se for necessário, de ir dinamitar as tumbas dos ditos gestores (esses gatunos nepotistas e farsantes) e dos ditos governantes (esses nepotistas e cretinos) do último século...



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