terça-feira, 17 de agosto de 2021

Afeganistão... Eram os Deuses Americanos...



"Só não valendo nada é que não temos inimigos; por isso, eu aconselho a todos a não se glorificarem de não os ter..."

(Bourgeard)

Sem nenhum sentimentalismo pequeno burguês, por mais simplório, bobalhão, míope, ou fanático que sejas, duvido que não tenhas olhado para o Afeganistão e para o terror que se abate sobre aquela gente como um imenso espelho do mundo e sentido uma vergonha atroz de ti mesmo, de teu país, do mundo e da espécie. Duvido que em algum momento não tenhas te arrependido de ter nascido. Te identificado com aquele exército de mendigos vingativos, com aquela multidão desesperada no aeroporto Khwaja Rawash e com aquela mulher de preto que, depois de insultada, foi colocada de joelhos antes de receber uma bala na cabeça. Qual teria sido seu crime? Quê item do livro sagrado teria ela profanado? E o cara que puxou o gatilho? Quê dizer daquele pobre coitado?

Mas as cenas do aeroporto foram épicas e colossais!! Além dos arquivos de Hollywood, ficarão para sempre também em nosso inconsciente e em nossos genes como arquétipo da miserável condição humana... Imagens que infectarão gerações após gerações e que, com certeza, serão incluídas, por novos exegetas e malandros, num capitulo extra do Antigo Testamento e dos Livros Sagrados como parábola e metáfora do desígnio e da sina humana! É até provável que lá nas cavernas ao redor de Cabul, algum milenarista já esteja preparando um novo parágrafo para descrever mais esta epopéia e esta frustração dos seres humanos na corrida milenar e inútil em busca do Santo Graal e das perdidas 'chaves do Paraíso': 

{ E eis que há mais de duas décadas, vendo o sofrimento e as desgraças que se abatiam sobre nosso povo, com uma epidemia em curso para redimir os pecados do mundo, os deuses vieram dividir conosco nossas dores e dispostos a trazer-nos a salvação. (Eram louros, altos, de olhos azuis, mascavam pequenos pedaços de borracha e traziam armas que nunca ninguém havia visto neste reino, mais ou menos como aqueles argonautas que, no passado, chegaram no Caribe, com seus cavalos e suas espadas, para cristianizar, massacrar e roubar os ameríndios). Só a verdade vos salvará! Gostavam de dizer...  Entretando, apesar da benevolência e dos esforços deles nestas duas décadas para 'mostrar-nos a verdade', nosso povo insistia em continuar no pecado. E eis que, de um mês para outro, receberam ordens do Grande Senhor para se retirarem. E eis que vimos pousar uma imensa nave nos arredores de nossa cidade para levar daqui os enviados. Nos céus havia muita luz! E eis que nossa população, em fúria e em desespero, sentindo  a culpa em seu coração, corria para a aeronave, uma espécie cinza de Águia Sagrada, implorando por perdão e por salvação. Corriam aos milhares até a imensa nave e, uns de joelhos outros de braços levantados imploravam: Senhores! Senhores! Vós que sois o sal da terra, os inventores do Mac Donald's e do Big Mac Perdoai-nos! Deixem-nos ir com vós! Para a Casa do Senhor! Levai-nos daqui para o paraíso de Manhattam! Para a Nova Jerusalém. Tenham piedade de nossa ignorância e de nossos pecados!!! Mas já era tarde. A paciência dos deuses e os verdadeiros interesses de estarem ali se haviam esgotado. Os motores da imensa nave já acionados, faziam tremer aquele mundo de pecadores; de misóginos; de homofóbicos; de machistas; de aficcionados por brigas de galos e de bodes; pelas florzinhas da papoula; aquela tribo de radicais e de teimosos miseráveis. Gritos. Desesperos. Lança-chamas... Súplicas. Senhores! Senhores! Tende piedade de nós! De nossas plantações de ópio e até mesmo de nossas mulheres! De nossa solidão e de todas as coisas terrestres! E se agarravam às patas da imensa Águia que com dois anjos nas asas, e com olhos imensos e vermelhos que piscavam, já subia para os céus cuspindo fogo pelo rabo, soltando um cheiro forte parecido ao de enxofre e com muitos pecadores agarrados a ela e que iam sendo jogados, um a um, ao Hades e ao Lago de Fogo que existe sob as montanhas insalubres deste mundo...}

Um camponês beócio que descia pela montanha de uma das 34 Wilayats  pastoreando suas cabras, vendo seus irmãos despencando da aeronave divina que ia em em alta velocidade na direção de Manhattan e cuspindo labaredas, colocou-se de joelhos, abraçou uma de suas cabras preferidas que estava sem burca e, parafraseando a Von Däniken, murmurou: C'est fini! Eram os deuses americanos! Agora, que se foram, alguma nova maldição haverá de abater-se sobre nós. Resta saber se virá da Russia, da OTAN, da China ou da Arabia Saudita... Venha de onde vier, serão outros dois mil fervorosos anos de humilhações, de preconceitos e de misérias... E sempre a espera de Godot...


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