Toda terça-feira de manhã a velhinha armênia passa pelo mercadinho da esquina para comprar alguma coisa ou simplesmente para ver o mundo. Saber quem morreu, quem está em estado terminal e a quantas anda a loucura na cidade. Estava verdadeiramente impressionada com a história dos pastores que imprimiram suas fotos e a do Ministro da Educação numa edição da bíblia. Se isto aconteceu em apenas dois ou três meses que estiveram no poder e em plena luz do dia, imaginem o que não deve ter sido anexado a ela em sua obscura e (zigue-zagueante) trajetória de uns1300 anos...
Fez questão de mostrar-me uma mini raladeira de noz-moscada que, segundo ela, é a última maravilha da pós-modernidade. Com sua tendência catastrófica e seu sentimento trágico da vida, entrou logo no assunto da eutanásia do Alain Delon. Diz que quando jovenzinha, na Armênia, tinha paixão por aquele galã do cinema francês e lamentava vê-lo, agora, na ante-sala do juízo final. Mas, que o que mais a incomodava era a história de ir para a Suíça para o tal suicídio assistido. Essa burguesia não tem mais o que inventar? Suicídio assistido um caralho! E logo na Suíça! Aquela tribo de banqueiros! Aquele refugio de ladrões de todo o planeta! Quando você se perguntar pela razão e pelo motivo da miséria do mundo, a resposta te conduzirá sempre àquelas contas clandestinas nos bancos suíços. E é até curioso que eles, depois de camuflarem o dinheiro das elites do mundo, também administrem suas eutanásias!
Uma morte higienizada! Ridículo! Toda morte, Bazzo, você sabe, é ridícula, canalha e cretina, seja nos braços de uma pistoleira lá no antigo Moulin Rouge; num tanque de guerra nos arredores de Kiev; numa boca de fumo na Colombia, ou numa cruz.
Ir morrer na Suíça!
Dizem que até o Borges, o grande escritor argentino, foi morrer lá, com medo que ao ser conduzido para o Recoleta, uma certa corja de invejosos argentinos cuspissem sobre seu cadáver...
Ah! Mas morte é sempre um fracasso! Seja na Suíça ou numa tapera perdida nos garimpos da Amazônia peruana. É sempre a vitória de uma misteriosa força vingativa! Seja a de um grande ator ou a de um rato esmagado no asfalto!
Fez um silêncio, fingiu estar triste, separou um pacotinho de noz-moscadas e colocando uma mão no meu ombro concluiu:
Mas Bazzo... todos sabemos que nascer, envelhecer, adoecer e morrer é uma tragédia. Um destino implacável, cretino e miserável! Agora, essa ida do Alain Delon à Suíça, para ter uma morte romântica e asséptica... isso me decepcionou. Existirá algum ritual mais religioso do que este? O suicídio, que sempre foi abominado pelas religiões, agora, quando assistido, aprovado pela Suprema Corte e pelo Papa, passa a ser quase um show epifânico. Nunca a medicina se revelou tão descaradamente sacerdotal como agora. E é quase certo que entre os membros da equipe, um deles é especialista na administração dos óleos da extrema-unção...
Ah, é o cachorro alucinado correndo atrás do próprio rabo e a miséria que só vai mudando de fantasia! É evidente que ao invés de ir morrer numa clínica como um cachorrinho de estimação, seria muito mais digno dele e de sua fama, morrer nas ruas de Paris, como frequentemente morrem os clochards! Seria um último e revolucionário Set (contra a cômica e lamentável condição humana)! Com AVC ou sem AVC, numa cadeira de rodas ou arrastando-se pelas avenidas congeladas da cidade, meia garrafa de vinho tinto e de braços dados e envolto nas plumas de uma ou outra das velhas e caquéticas atrizes do Chat de noir; do Lido ou do Crazi Horse... que ainda sobram... Parole... Parole... Parole... Encore des paroles...
Disse isso visivelmente emocionada, arrumou o lenço amarelo de seda italiana na cabeça, driblou o fiscal e abandonou o mercado (malandramente) sem pagar as noz-moscadas...
https://www.youtube.com/watch?v=LZ94HBQqp9o
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