segunda-feira, 28 de março de 2022

Fragmentos do futuro/breve: VADEMÉCUM DOS VAGABUNDOS (Um capítulo extraviado dos Evangelhos...)





...Enfim, a idéia de ter que trabalhar nos aterrorizava. E cada um daqueles futuros doutores trazia uma história que beirava à miséria, se não econômica, pelo menos cultural. Todas as idiotices ‘tradicionais’ de seus parentes vinham condensadas neles. Lembrar a data de nascimento dos outros, por exemplo, era uma obrigação e esquecê-la, uma heresia, principalmente se fosse do pai, da mãe, dos irmãos, da professora... Uma idiotice engendrada pelos comerciantes e que havia se transformado numa obrigatoriedade civilizatória e quase sagrada. Era outro tipo de escravidão! Como livrar-se daquela merda, sem sucumbir e sem ser banido?

Um deles, era particularmente feliz. Todo final de mês ía passar um final de semana numa espécie de mosteiro, edificado no topo de uma colina, com uma aluna de paraquedismo de sua idade. Um retiro sexual. Era uma menina graciosa que parecia ter descido do paraíso naqueles dias e ele fazia questão de contar-nos em detalhes a prática de um kamasutra inventado por eles. Todos o invejavamos e estavamos dispostos a traí-lo na primeira oportunidade. E gostava de repetir que sua mãe, uma italiana moderna, sempre o previnia: ao ir ao encontro de uma mulher esteja sempre impecavelmente limpo, pois sempre pode acontecer um boquete. 

Num dia de chuva e de vendavais, nos mostrou um bilhete que havia recebido de sua mãe, depois que ela soube de seu conflito com o trabalho, recomendações que ele levava carinhosamente na carteira. Dizia: "Figlio, soube que, com outros estudantes, estas declarando guerra ao trabalho. Te entendo. Teu pai, teu avô e eu mesma tentamos nos livrar dele durante décadas, mas sem sucesso. É uma maldição. Não tem como resolver. Mas tenha cuidado. Não divulgue essa tua repulsa e não caia na lengalenga de culpar apenas o capitalismo. Os comunistas e até os anarquistas têm a mesma ambiguidade e obsessão por ele. Quando conheci teu pai, ele era um vagabundo honrado. O casamento e os filhos o obrigaram a submeter-se ao trabalho. Hoje está um traste. Os músculos, os ossos e até os pensamentos estão atrofiados. Repito: não há como fugir! Todos os prazeres têm um preço! Desde que se nasce se é obrigado a fazer esse pacto monstruoso com toda essa merda. Se tem que comer, ter onde dormir, é preciso comprar um um relógio, um sapato, uma pasta de dente e outras coisas que custam. Tudo custa. E o dinheiro, se não se é um ladrão, de onde consegui-lo? Te entendo, mas acorde. Não é possivel eternizar o Principio do Prazer, tempo em que acordavas cantarolando, cheiravas as calcinhas de tua priminha e ordenava que alguém te preparasse uma gemada. Agora estás no pórtico do Principio da Realidade, que é um sinônimo de inferno. Observe como as revoluções que surgiram até agora, neste particular, não serviram para nada. A base de todas sempre foi e é o trabalho. Até a URSS, que era a utopia máxima dos estalinistas, passou a ser chamada orgulhosamente por eles, de República do Trabalho! Lembra da frase cinica: Arbeit macht frei, escrita pelos alemães na entrada de um Campo de Concentração Nazi? Essa mesma frase sempre foi uma espécie de mantra, tanto para os socialistas como para os fascistas. Veja os símbolos dessa gente: Dos comunistas, a foice e o martelo; dos fascistas um feixe de lenha e um machado. Os maçons elegeram as ferramentas dos carpinteiros e o cristianismo, a cruz. Suplícios! A própria palavra trabalho, tem origem no tripallium, que é um conhecido e antigo instrumento de tortura. E ouça o Hino da Internacional Socialista: numa das últimas estrofes até se propõe o extermínio dos "parasitas"... Sobreviveríamos?  Lembre-se sempre daquilo que determinou Lênin, já nos primeiros tempos da Revolução e que nos recorda Robert Kurz:

 

[Lenine apontava já para um horizonte absolutamente sombrio de ‘disciplina do trabalho’, defendendo um conjunto de medidas em tudo semelhantes ás denunciadas por Marx a propósito da chamada 'acumulação original' do arranque histórico do capitalismo na Europa Ocidental. Entre outras coisas sugere o encarceramento dos vigaristas, dos ricos, dos vadios e dos operários que fogem do trabalho, o fornecimento de 'cadernetas amarelas’ para o controle popular, a ‘rápida correção' dessa gente prejudicial’ e o fuzilamento imediato de um em cada dez culpados de parasitismo]


Essa gente enlouqueceu, meu filho? Leis trabalhistas!? Só se fala em assalariados, horas extras, mercadorias e em produtividade... Trabalho Terceirizado (entenda-se alguém que comercializa o trabalho dos outros!) Onde se quer chegar, afinal? Dos oitenta anos de vida, o sujeito passa uns setenta trabalhando. Tem sentido uma escravidão dessas? E os dementes da fé até incluiram a preguiça entre os 7 pecados capitais! Quê gente! De onde lhes veio essa predisposição para a servidão? 

A única solução real, seria não ter nascido. Mas agora é tarde! Por isso, a revolução do futuro será relacionada à reprodução. Com que autoridade nos damos o direito de trazer alguém para este campo de trabalhos forçados? Enfim, tente descubrir algo que te exigirá menos sofrimento. Que tal a vida religiosa? Tens uma tia que é quase freira. Virou lésbica no convento, mas é um amor de pessoa! Quem sabe esse transtorno não seja genético e exista resquícios de santidade também em você. Veja a vida que levam esses crentes e malandros que edificam, gerenciam e administram igrejas. Não constituem família; comem do bom e do melhor, não pagam impostos, não suam para nada, a comunidade até lhes oferece (de graça) seus filhos e filhas e passam a vida inteira fazendo os mesmos sermões para uma platéia de analfabetos e de místicos. Dia da Quaresma! Dia de Natal! Dia de Todos os Santos… Observe como são pétreas as ‘Tabuas da Lei', as parabolas, a moralidade, as crendices e as balelas são sempre as mesmas. Reflita. Considere até a hipótese de vir a ser um funcionário público, mas sem esquecer o que dizia Hegel, dos governos: O governo não pode pois apresentar-se senão como uma facção. O que se designa por governo é tão só a facção vitoriosa. Facções que gostam de se vangloriar diante das facções adversárias de terem "criado milhões de vagas"e incluído milhões de bobalhões no mundo do trabalho... E a plebe, anestesiada pela servidão e que perdeu o senso de dignidade, aplaude! Procure ler as propostas e utopias de Fourier (Livre jogo das paixões), mas sem iludir-se, sem idealizar nada. Tudo está dominado e não há solução! Tudo está mistificado e fetichizado pelos governos, pelos sindicatos, pelos padres, pelas máfias e pelos intelectuais que dão suporte a essa estupidez e a esse bando de - como diriam uns vagabundos franceses - selfcleptômanos! (ladrões de si mesmos!) Não tenha medo e nem vergonha de pertencer ao que chamam de "exército de desocupados”, um dia, quem sabe, todos, iremos nos incorporar voluntariamente a esse exército, quando então, a fábrica de escravos entrará em bancarrota. Fuja da opinião publica! A justiça é uma ficção! Não há justiça e nem honra! O mundo é uma espécie de manicômio com os pacientes precariamente medicados. Onde até o que se considera Luta de Classes, no fundo, é apenas disputa entre fetiches! E não se venda! Não negocie com ninguém teu tempo e tua energia! Mas o faça com cautela e habilidade para que não te condenem ao ostracismo ou mesmo a uma prisão! Da vida só gozamos alguns momentos o resto é só intrigas e servidão. E agora, com os progressos mecânicos, ainda corremos o risco de ser transformados em robots e em apêndices das máquinas. Acumulo de um lado e miséria do outro! Lembra daquilo que escreveu Marx, sobre o assunto? Acumulação de riqueza num pólo implica acumulação de pobreza, de sofrimento, de ignorância, de embrutecimento, de degradação moral e escravidão no pólo oposto. Parece até cristianismo, mas não é. Enfim, figlio, só a malandragem refinada poderá amenizar essa emboscada e depois, se morre e pronto.... Para terminar: tome consciência de que se foram os dias nos Jardins de Epicuro, e que agora a luta é com o Inferno de Dante; Que os tempos felizes do Playground passaram e que agora se está no Front de uma Guerra cretina e cansativa; que o colo e as tetas afetuosas da mamãe foram trocadas pelo abraço ambíguo e mercantil de uma cortesã...". 

Terminava a leitura, olhava para todos meio orgulhoso daquela mulher, voltava a guardar o bilhete na carteira e gargalhava, mas com um certo pudor: porquê a mãe ainda era a mãe! (pp. 11,12,13...)




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