Depois de dois anos de confinamento e só assistindo aos horrores protagonizados nos cemitérios do mundo, ainda com máscara, com um litro de álcool 79% na bolsa, três patuás costurados às cuecas e meio paranóide, voltei hoje ao mercado...
Quê maravilha! Senti a mesma sensação de quando entrei pela primeira vez no Louvre. Ou teria sido na Biblioteca do Vaticano? Aquelas pilhas de laranja Bahia; os pedaços de queijo vindos das vacas holandesas, os iogurtes, as batatas, os pimentões cheios de pesticidas e as prateleiras das geléias, dos mocotós e dos chocolates. O atum em latinhas minúsculas, pequenas obras de arte. Trabalho dos pelotões de proletários que continuam cumprindo dez horas diárias de escravidão, apenas para comer. As tripas! O estômago. Ah, se não fosse a fome, quem é que se submeteria a um dia sequer de trabalho? E lá nos muros de Paris, no Maio de 68: Mais vale viver sem trabalhar com um pouco de esperança, do que trabalhar sem esperança alguma!
No balcão das carnes, três ou quatro vacas e porcos esquartejados. A velhinha que está à minha frente compra um meio metro de lombo suíno, por sete de largura e dois de espessura. Aproveita para encher o saco do açougueiro: moço, para que essa embalagem? Apenas para poluir mais ainda os rios! E esse porco, veio de onde? O mataram com faca, tiro ou eletrochoque? E ficou profundamente irritada quando percebeu que quem a atendia, mesmo de luvas, deu uma discreta coçada nas nádegas e no saco.
Na prateleira dos afrodisíacos, dediquei uns minutos na leitura da bula da Maca peruana... Os octogenários que circulavam disfarçadamente por lá, juravam que faz milagres!
Muitos ainda com máscaras, outros, seguindo as orientações dos sábios da saúde, as abandonaram. Todos com vestígios de hipocondria. Havia até dois enfermeiros voluntários por lá, medindo a pressão dos mais antigos, tudo para previnir uma síncope que pudesse vir a prejudicar os negócios... Ouço que recomendam a um velhote meio caquético: é bom comer alguma coisa de vinte em vinte minutos!
Bugigangas de todos os tipos, mas nada que se comparasse às prateleiras de bebidas alcoólicas. Vinhos, cachaças, licores, cervejas, conhaque cubano e vodka russa. Um homem, que estava lá com seu filhinho de uns 9 anos ia respondendo às perguntas do pirralho: E esta? Essa é uma bebida russa! E esta? esse é um vinho chileno! E estas? Cervejas! O pai não escondia sua irritação, mas para que não pensassem que era um 'pai mau e desalmado', ia fazendo os caprichos daquele tirano & chato. Daqui a uns dez anos, pensei, se esse babaca fizer as mesmas perguntas numa boca de fumo ou numa refinaria de cocaína, no mínimo, levará uma boa surra.
Num corredor paralelo estavam os potes de vidro e de plástico vindos da China e um pouco mais à frente vários tipos de frigideiras. As mulheres se aglomeravam ali, pegavam uma, depois outra, as olhavam quase excitadas por dentro e por baixo e conferiam os preços com tanta seriedade que lembravam as estagiárias da Paris VII diante da Monalisa. Será uma réplica? falsa?
Mais adiante um pouco, uma imensa prateleira oferecia aos clientes todo tipo de porcarias infantis para aniversários, batismos, crismas, primeira comunhão, festinhas em geral. Duas moças, que ian soltando gritinho pueris e separando alguns produtos numa bolsa 'ecologicamente correta', de vez em quando exclamavam: Que massa! veja como este lembra a Miró! Miró! Lembrei: Quando vivi em Barcelona (aquela cidade mais fascinante do mundo, ou seria Paris?), numa determinada semana, para fugir às ameaças de terrorismo, tomei o teleférico para Montjuic, e me enfiei no Museu dedicado a ele. Não nego: não conseguia conter os bocejos diante daquelas 'coisinhas para crianças'. Um casal de anarquistas que circulava por lá ia se perguntando como é que alguém, com aquelas bandeirinhas medíocres, chegou a ser considerado quase uma divindade no mundo tresloucado da arte. (mas o faziam quase cochichando, para não serem escalpelados pela turba).
Mas voltando ao mercado, a prateleira das pastas de dentes e fio dental, de shampôs, de cremes e de promessas de juventude eterna, era a mais concorrida. De vez em quando passava uma ou outra funcionária espargindo álcool 120% por todos os lados e esfregando o chão com os produtos pós modernos que as indústrias, nesse período de pandemia, inventaram para iludir e engabelar ainda mais as pobres donas de casa. Tira manchas! Tira cheiros! Mata bactérias! Elimina baratas! Assusta mosquitos! Deixa as vidraças transparentes! Provoca inveja nas vizinhas! Faz a prole orgulhar-se de você! Elimina rugas! Lubrifica as mãos! Desentope pia! Deixa as unhas mais fortes! Levanta os cílios! Torna teu marido mais macho e tua mulher mais afetuosa! Evita ressacas! Chocolate especial para diabéticos e para compulsivos! Geléias para alisar e para encrespar o couro cabeludo. barbeador para as axilas e outras regiões subterrâneas. Pimenta do reino! Alcachofra!
Todos os tipos de sabão em pó. Duas clientes quase se pegaram na disputa por um último pote de um feito a base de coco, para roupas íntimas e delicadas! E no caixa, a maior simpatia. As operárias são treinadas e os velhinhos, que sempre esquecem as senhas, ficam olhando para todos os lados, paranóicos, desconfiados que algum trapaceiro anote seus dados e, lá na rua, com um canivete desses de mola, ou com uma arma de brinquedo, os obriguem a fazer um PIX.
E todos (inclusive eu) saem de lá com seus saquinhos reciclaveis repletos de porcarias: três pães, dois bifes de alcatra, uma caixinha de Kiwi, amêndoas chilenas, meia dúzia de prendedores de roupa e uma garrafinha de vinho dessas de 250 ml, com uma sensação de miséria, mas ao mesmo tempo de empoderamento e de liberdade. Por todos os lados o zum zum do proletariado de Marx e da classe sub-média que foi poupada pelo vírus (de procedência ainda ignorada)...
A velhinha armênia, que me viu descendo os degraus daquele 'templo', ficou um pouco decepcionada com minha suposta e indisfarçável felicidade e fez questão de provocar-me: Tudo bem, Bazzo! É uma vergonha vê-lo assim, mas tudo bem! É a vida! Mas, como é que ficam os textos de Schopenhauer? Uffa! Tudo bem! É a liberdade de cada um, não é?
E a liberdade, você sabe, é o crime que contém todos os crimes, é nossa arma absoluta!
Era o Mendigo K. ??
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