"O pensamento é uma mentira, como o amor ou a fé. Pois as verdades são fraudes e as paixões odores; no final das contas a eleição acaba ficando entre aquele que mente e aquele que fede"
Cioran
(IN: Breviario de podredumbre)
Costuma-se queimar incenso e lançar verborréias sobre as cinzas de alguns personagens no centenário de suas mortes. Assistindo a uma dezena de velhotes e de velhotas cacarejando sobre a genialidade de João do Rio, registro aqui também meus cacarejos publicados em 2003, como apresentação do livreto acima. E la nave va...
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Nascido em 1881 (rua do Hospício, Rio de Janeiro) e fulminado por um colapso cardíaco 39 anos depois, no Catete, João do Rio conseguiu, mesmo nesse curto período, construir uma obra densa e admirável.
Mergulhando deliberadamente nas sombras cúmplices da madrugada urbana, no mundo opaco e indeciso e no mar alto da depravação, onde sempre fervilha "gente ordinária, marinheiros à paisana, fúfias dos pedaços mais esconsos da rua", engendrou, à revelia dos sedentários e dos invejosos, uma literatura magnífica e diabólica, uma (quase) antropologia laica, uma sociologia selvagem, empírica e anárquica... livre tanto das algemas escolásticas como das pretensões da gramática ortodoxa... que, como uma Górgona do vício, à beira das igrejas, abria a fauce tragando as flores da ralé. Que só tenha descoberto sua existência agora, depois de uns 35 anos de leitura e de frequência obsessiva em sebos, alfarrábios e feiras de livros, é uma evidência, não só da gravidade de minha cegueira, mas de quão tendenciosa, parcial, falsa e fútil tem sido tanto nossa cultura como nosso mercado editorial.
Seu interesse pelo âmago das cidades, pela histeria permanente das ruas, pela vida mundana e consequentemente pelos seus atores: fanáticos religiosos, azeiteiros, cabotinos, pedófilos, cínicos, mendigos, pervertidos, larápios, presos, criminosos, imigrantes, charlatães, poetas, músicos, varicosos, em suma, pelo sistema social podre lhe rendeu não só calunias, mas socos, bombas e acusações literárias como esta, de Elisio de Albuquerque: "É um temperamento doentio, sensibilidade exacerbada, usa de uma psicologia mórbida, atormentado pela preocupação do raro, do horripilante e até do sórdido". Ou esta outra, ainda mais violenta, de Antonio Torres: "João do Rio foi uma das criaturas mais vis, um dos caracteres mais baixos, uma das larvas mais nojentas que eu tenho conhecido".
É evidente que esses pobres moralistas tinham dificuldades para suportar um sujeito que, além do talento inegável, seguia afirmando que toda a vida é luxuria. Que sentir é gozar e que gozar é sentir até o espasmo. Nós todos vivemos na alucinação de gozar, de fundir desejos, na raiva de possuir. É uma doença? Talvez. Mas é também verdade.. Basta que vejamos o povo para ver o cio que ruge, um cio vago, impalpável, exasperante. Um deus morto é a convulsão, é como um sinal de pornéia. As turbas estrebucham. Todas as vesânias anônimas, todas as hiperestesias ignoradas, as obsessões ocultas, as degenerações escondidas, as loucuras mascaradas, inversões e vícios, taras e podridões desafivelam-se, escancaram, rebolam, sobem na maré desse oceano. Há histéricas batendo nos peitos ao lado de carnações ardentes ao beliscão dos machos; há nevropatas místicas junto a invertidos em que os círios, os altares, os panos negros dos templos acendem o braseiro, o incêndio, o vulcão das paixões perversas.
Dizem os jornais da época que seu funeral mobilizou cem mil pessoas. Cem mil pessoas! Que os taxistas, emocionados, se prontificavam a transportar de graça, quem quisesse seguir o féretro daquele homem que, sabia-se, "amava o horror das coisas inacreditáveis". Qual o autor nacional, por mais vaselina e plantador de vaidades que tenha sido, já teve tamanho privilégio? Bobagem? Sim. Mas impressionante. Mesmo que essa multidão quisesse morbidamente apenas certificar-se de que ele realmente havia morrido, (um veado, um esfíncter complacente e um filho-da-puta-a-menos no mundo) mesmo assim é um número que impressiona. E insisto nisto porque a grande maioria dos escritores que morrem hoje em dia, - mesmo os que se faziam passar por ícones da sapiência, os que passaram a vida inteira lançando confetes aqui, serpentinas acolá, fazendo conchavos nas academias, cumplicidade nas universidades e puxando o saco à torta e à direita de quem quer que fosse - mas principalmente dos endinheirados - além dos herdeiros e dos credores só têm recebido 'postumamente' a visita oportunista dos abutres da funerária. João do Rio (Paulo Barreto) que chamou atenção para a vida encantadora das ruas, que não teve medo de acanalhar-se e nem de enlamear-se nos becos onde os corpos movem-se como larvas de um pesadelo, morreu de forma inusitada aos 39 anos: num taxi. Num velho taxi que circulava pelas ruas do Catete. Deixou uma obra fascinante, curiosa, lúdica, saborosa, nômade e, mais do que tudo, vagabunda... construída na clandestinidade, nos esgotos periféricos, à beira dos cortiços, na penumbra das antigas salas de redação dos jornais e, inclusive, nos festins colonialistas das elites da época, onde as caras continuam emplastradas pelo mesmo sorriso de susto e de súplica, multiplicando em quinze beiços amarelos, em quinze dentaduras nojentas, em quinze olhos de tormento.
Paradoxalmente, foi também um Membro da Academia Brasileira de Letras... O primeiro a entrar naquele covil envergando o fardão vampiresco, aquela capa negra que mais desqualifica e que mais mumifica do que engrandece... A luz elétrica, muito fraca, espalhava-se como um sudário de angústias .Teve sérios conflitos com a vaidade estabelecida daqueles 'literatos' que, por não terem nada que dizer e por não possuírem um mundo próprio só falavam de literatura. Viu-se envolvido com a hipocrisia dos escritorzinhos... e com o rancor incurável que se prolifera à sombra das pocilgas literárias... entre a turma das unhas pintadas e dos cuecões de seda... Entre os da laia narcísea dos conhecidos "textos-super-limpos", burilados, impecáveis, otimistas, estóicos... escritos sempre para os jurados de concursos, para as grandes editoras, para o clero e para os chefetes de turno do Congresso Nacional... Instâncias onde ainda predomina intacta a mesmice secular, o tédio reacionário, o discurso prolixo, a metamorfose do caráter, a corrupção endêmica, a frouxidão genital indisfarçável e a necessidade histórica de perpetuar miseravelmente o jogo da burrice histriônica e da submissão do populacho... Que lástima a sobrevivência desse circo! O clamor da súplica enche o quarto na névoa parda estrelejada de hóstias sangrentas.
O que me atrai em sua obra, independente da beleza natural dos troteadores e dos rueiros, é basicamente seu cinismo e seu deboche. A forma ora sutil e ora escrachada como cospe sobre a rabugice e a infâmia humana... Vibro com a tormenta de metáforas que inventa para descrever, não só a cloaca e o lupemproletariado mantido à margem (depravados, escravos sádicos, jogadores, maxixes ordinários, coristas, putas, desempregados, opiômanos), mas também a cloaca de colarinho branco (barões, condes, atrizes, politicos, charlatães as damas da recém instalada república).
Se foi um plagiador - como diziam -, um entreguista político, um 'portuguesófilo', um decadente moral, um fresco e um dandi, isto, aqui, não tem a mais mínima importância. Se fez sub literatura e se foi, como outros, um pavão simbólico do vício triunfal; se fez confusão entre um gênero e outro; se seu texto, além de 'empolado' estava cheio de delitos gramaticais, isto em nada diminui ou compromete seu fascínio e sua beleza. Não altera em nada o ângulo privilegiado através dos qual escutava e fitava a urbe enfurecida em seu delírio. Principalmente porque ele, mais do que ninguém, sabia e afirmava que a literatura é o mirífico agente do vício.
Primeiro cronista social da imprensa brasileira; membro da Academia de Ciências de Lisboa; dezenove livros publicados; amigo de Isadora Duncan e dono de um satanismo literário. O resto, é pura inveja! Ressentimento de bundões subalternos! Cólera contra a própria inércia e contra a mediocridade dos próprios limites. E quando se trata de inveja, sempre é bom lembrar que é uma doença filogenética e que o mundo é uma grande repartição pública. Repartição onde há sempre um ministro para centenas de funcionários; um ser d'exceções para milhares de outros que não passam de amanuenses da vida.
Os portugueses o homenagearam com a Praça João do Rio, em Lisboa... Os cariocas com a rua Paulo Barreto, e os bêbados de sua cidade natal com seu nome no umbral de um boteco...
Campos de Jordão
Carnaval de 2003
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