"Sendo a vida o que é, logo sonhamos com vinganças"
C. Baudelaire
(Citado por Edward Hyams)
Aos sábados, costumo dar uma volta aqui pelos arredores para lubrificar os joelhos e as canelas e ver o mundo. De vez em quando vejo um velhinho caquético encontrando outro tão caquético quanto ele que se abraçam quase em lágrimas e exclamam, um para o outro, quase ao mesmo tempo: você ainda está vivo!? E riem, melancolicamente.
Num dos quiosques de uma feira que é montada aos sábados no meio da quadra, onde são vendidos frangos, ovos & derivados e também meu livro: Viagem ao fundo dos galinheiros ou Por quem os galos cantam, deparei-me com o Mendigo K. Estava encostado numa das colunas da barraca e dando uma aula sobre dialética, ao dono do quiosque. Fingiu que não me viu. Eu lhe retribuí a gentileza. Ouvi que dizia, num arremedo de arrogância, aquela arrogância comum nos mestres de Ciências Políticas e nos militantes aposentados:
Dizia: a palavra "dialética", Hegel a surrupiou de Platão alterando-lhe o sentido. A tese era a idéia, a antítese era a antiidéia e a síntese viria a ser dada pelos acontecimentos. Marx, com seu faro e seus furúnculos em efervescência, sentindo cheiro de idealismo, e percebendo que historicamente é a necessidade e a prática que geram a idéia, deu uma reviravolta na quase teologia de Hegel e engendrou a dialética histórica. O materialismo histórico, do qual, uma das manifestações era a guerra entre as classes...
O dono do quiosque o ouvia, já visivelmente irritado, mas não se atrevia a ser grosseiro. E o Mendigo, meio fanático e inebriado, prosseguia, agora retirando do bolso duas páginas, onde foi lendo: A classe social que está no poder gera, de suas necessidades, uma classe mais baixa que é forçada, na medida que vai crescendo, a derrubar a classe dirigente para assumir o poder. Foi assim que, nas revoluções da Europa Ocidental, nos séculos XVII e XVIII, a burguesia arrebatou o poder das mãos da aristocracia feudal em guerras de classe. Uma vez estabelecida no poder, a burguesia gerou o proletariado para servir aos seus propósitos econômicos. E agora é o proletariado que deve levantar-se para tomar o poder das mãos da burguesia... (fez um breve silêncio e completou) Marx considerava isso inevitável em vista de ser ditado por uma indiscutível lei da história...
O dono da feira provocou: "Mas então, pensando dialeticamente, também o proletariado, se um dia chegar lá, será deposto e expulso? Mas por quem?
O mendigo vacilou por uns instantes e tentou emplacar a demagogia clássica: "Não, não, esse processo não é infinito, e pelas seguintes razões..."
O feirante deu uma gargalhada desafiadora, não deixando que ele continuasse e resmungou: não me venha com mais teologias, meu amigo. Nós aqui, somos todos discípulos de Bakunin ou de Hobbes!
E pegando uma faca imensa que havia sobre a mesa, passou a descascar uma abóbora japonesa para atender a uma cliente de uns 90 anos que, com epidemia ou sem epidemia, só sai de casa uma vez por mês, enquanto resmungava em voz alta: estamos de saco cheio de ficar respaldando códigos divinos imaginários! Nossa fúria não é social, é existencial! Cada dia acreditamos mais em Hobbes: O Homem é o lobo do homem! Seu babaca...
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