[A alguém que lhe perguntou o que queria
dizer Deum de Deo ele respondeu: "que dê onde der"]
Miguel de Cervantes
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Este primeiro dia de inverno amanheceu ensolarado e cheio de noticias contraditórias sobre a pandemia, as vacinas, os vivos e os mortos. 500 mil mortos pela pandemia. Um número igual de cadáveres ao da seca de 1877-1879 no nordeste brasileiro... Uma suruba de informações e de desvarios que ninguém sabe onde irá parar. Continuo recebendo centenas de noticias a favor e contra as duas seitas políticas predominantes. Pura disputa religiosa em tom monocórdio! Os de ontem atacam os de hoje e os de hoje atacam os de ontem numa lengalenga tipo psicologia de subúrbio e digna dos mais caricatos pés de chinelo. Mas é a fé. E a fé move moinhos, não é verdade? Quem é que não se lembra que os lacedemônios embriagavam os escravos, para edificar as crianças com o espetáculo da embriaguez?
Nas lixeiras da padaria da esquina uma moça vestida de farrados e cercada por quatro cinco cachorros, recolhe alguma porcaria que lhe garante o sustento. De repente, um cachorro marrom, puro osso, resolve cavalgar uma cadelinha branca, igualmente desnutrida. Até já havia conseguido penetra-la, quando foram interrompidos pelos chutes da moça. Chutou o macho por trás acertando-lhe os bagos. Foi um horror! A cópula se desfez imediatamente e entre gemidos. O que teria levado aquela idiota a tamanha agressividade? Em plena pandemia, com o horror dos cemitérios, com a sexualidade do mundo congelada, como é que alguém se atreve a interromper um ato de resistência destes e logo no primeiro dia de inverno?
O casal, ainda excitado, a olhou com fúria, atravessou a rua e foi reiniciar o ato junto às cercas de um santuário que há ali. O sol se projetou amorosamente sobre eles, a cadelinha tinha os olhos brilhantes e ele babava sobre seu pescoço... Foi uma das segunda-feiras mais interessantes e transcendentes dos últimos meses...
A mulher do mendigo K que também assistia emocionada aquele show de bestialismo, colocou-me a mão no ombro e resmungou esta frase de Isidore Ducasse: "Quando estiver na cama e ouvir o latido dos cães no campo, esconde-te sob as cobertas e não zombe daquilo que eles fazem, pois eles, como você, como eu e como todos os seres de cara pálida e alongada, têm uma sede insaciável de infinito..."
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