terça-feira, 21 de julho de 2020

Das "fake News", da liberdade de expressar-se e de Raoul Vaneigem...

"A maioria das polêmicas hoje em voga já apresenta os vestígios de uma discussão entre palhaços". 
(página 26). 
"Já escrevia Georges Bataille, 'o mundo só é habitável sob a condição de nada ser respeitado'"
(página 22)
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Não é apenas ridículo, é também cretino e tirânico o projeto que pretende criminalizar o que se está chamando de linguagem inapropriada ou de FAKE NEWS. Trata-se de um projeto simplório, que vai na contramão do iluminismo, e que está contaminado por um ideal reacionário e de atraso. Uma  triste investida contra o que de mais fascinante foi engendrado nos últimos milênios: a linguagem e a internet. 
Por debaixo das justificativas demagógicas de 'preservação da honra', do 'humanismo', da 'verdade', da 'religiosidade', da 'reputação' e das 'boas maneiras', o que se está pretendendo, na verdade, é manter caladas as multidões já silenciosas; é domesticar e subjugar o pensamento e o discurso antagônico. Uma tentativa de preservar os subterrâneos de uma história muda e obscura, dissimulada e canalha que acabou nos empurrando para o lugar excindido e incomodo onde estamos. "Se tantas más reputações se devem ao desprezo e ao ódio, é que existe entre censor e censurado um fascínio secreto e mútuo". Não sejamos canalhas, nos lembra ainda Raul Vaneigem: NADA É SAGRADO, TUDO PODE SER DITO! E, principalmente, porque "a maioria das polêmicas hoje em voga já apresenta os vestígios de uma discussão entre palhaços. (...) É indigno que os cidadãos se deixem tratar como escolares destinados a engolir passivamente conhecimentos mortos em vez de serem alimentados por um saber orientado pela preocupação de  viver melhor."(...) Nada é sagrado. O que sacraliza mata. A execração nasce da adoração. Sacralizados, a criança é uma tirana, a mulher, um objeto, a vida uma abstração desencarnada. Toda pessoa tem o direito de exprimir e de professar, a titulo pessoal, qualquer opinião, qualquer ideologia, qualquer religião. Nenhuma ideia é inadmissível, até mesmo a mais aberrante, até mesmo a mais odiosa. Nenhuma ideia, nenhum propósito, nenhuma crença devem escapar à crítica, à derisão, ao ridículo, ao humor, à paródia, à caricatura, à simulação. O mundo só é habitável, já escrevia Georges Bataille, sob a condição de nada nele ser respeitado.(...)
Todo aquele que se erige em messias, profeta, papa, imã, pope, rabino, pastor ou outro guru tem o direito de definir a blasfêmia, o anátema, a apostasia, a partir do instante em que se zomba de seu dogma, de sua crença, de sua fé, mas que ele NÃO SE ATREVA a levantar nenhuma interdição judiciária acerca das opiniões que ele execra nem de querer barrar sua difusão ameaçando seu autor segundo métodos de inquisição, de charia ou de máfia, que o senso de humanidade anula para sempre." (...) A blasfêmia não tem mais sentido em uma sociedade laica, assim como hoje não o  teria o toque de escrófulas por algum descendente dos reis de França. (...) A religião é o  resultado de uma transação pessoal  entre aquele que a pratica e a criatura extraterrestre que ele elegeu para governar seu destino. É inadmissível que ela se imponha nos âmbitos externos a uma instituição eclesial ou estatal, diante da qual seja preciso inclinar-se. A liberdade de crer e de praticar ritos não pode ser confundida com o poder arbitrário de prescrevê-los àqueles que não a compartilham.(...) Submeter uma criança a um dogma sem antes esclarece-la pelo estudo comparativo das mitologias judaica, cristã, islâmica, budista, hinduísmo, céptica, grega ou asteca é o mesmo que suborná-la. (...) Contudo, por mais justificadas que sejam, a critica mordaz ou o propósito de não-receber, representado pelo silêncio, quase sempre se limitam a tratar com desprezo um estado de espírito surgido exatamente do desprezo pela vida. O único  modo de abordar os adeptos da barbárie, quaisquer que sejam eles, sectários, militantes do partido da morte ou difusores de preconceitos, ancorados no desgosto milenar que o homem alimenta a respeito de si mesmo, é descobrir o que ainda subsiste neles de vivo sob a couraça caracterial e a esclerose de seu comportamento neurótico. (...) O senso comum demonstra que de nada adianta proibir Minha luta, de Hitler, Bagatelas pour un massacre, de Celine, os Protocolos dos sábios de Sião, ou as obras revisionistas, e tolerar, por outro lado, as posições misóginas de Paulo de Tarso e do Corão, as diatribes anti-semíticas de São Jeronimo e de Lutero, um livro entulhado de infâmias como a Bíblia, a complacente exibição de violências que formam a matéria comum da informação, a visualização onipresente da mentira publicitária e tantas contra-verdades históricas, validadas pela história oficial. É bom não esquecer: uma vez instaurada, a censura não conhece limites, pois a purificação ética se nutre da corrupção que denuncia".
Por fim,  continua Vaneigem, "a estupidez, a infâmia, o pensamento ignóbil são o pus de uma sensibilidade ferida. Impedi-lo de escorrer é envenenar a ferida em vez de diagnosticar suas causas para lhe dar o remédio. Se não quisermos que uma aberração venha a infectar o tecido social como um tumor maligno, devemos reconhece-la tal como ela é: o sintoma de uma doença no indivíduo e na sociedade."

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