sábado, 25 de julho de 2020

A visita matinal de todos os dias...

Eu, que já fui um perverso caçador de passarinhos, que os abatia em pleno voo apenas para testar ou exibir minha pontaria, estou me rendendo aos encantos de um pássaro estupendo que, todos os dias, lá pelas 10:00 da manhã, vem pousar num dos bulbos floridos (de uma flor que não sei o nome) em minha varanda, para dali, entoar uma longa e fascinante melodia. Vai dos graves aos agudos numa perfeição incrível, assobia, resmunga, muda o tom, salta de um bulbo a outro numa exibição descarada, enfia o bico no âmago de uma flor do deserto, aspira uma gota de brisa que ainda não evaporou da parte inferior de um gerânio e, tudo isso, sem interromper sua sinfonia. Uma maravilha. As cores de suas asas e da parte posterior de sua cabeça são de um azul quase lilás e o peito tem as subtilezas de uma taça de vinho tinto esquecida ao sol. Que porra de pássaro é esse? Teria escapado de alguma gaiola ou é selvagem e veio do cerrado? E ele sabe que estou do outro lado da janela passando obsessivamente o Bom Bril nos fundos de uma panela, mas isto não o perturba em nada.  Será que pensa que sou um ornitólogo! Reflito: como é possível que alguém possa ser tão cretino a ponto de assassinar um bichinho desses para enfiá-lo num espeto e devorá-lo? (licantropia?). "A fome!  - escrevia Flávio de Carvalho - A sensação de religião é gerada na sensação de fome. A satisfação religiosa é a satisfação da fome. Adorar deuses animais e vegetais era um problema de alimentação do homem primitivo. É pela fome que o homem entra em contacto com o mundo animal e vegetal que ele devora e o ato de devorar é a primeira religião do homem..."
  E ele está ainda lá. Já se passaram uns dois minutos. Parece querer que eu apareça para registrar sua presença. 
 Agora vejo que faz uma espécie de reverência às espécies que florescem e que sobrevivem ao sol de julho, quase de deserto, aprisionadas em vasos de xaxim ou de madeira. Um raio de sol lhe entra pela íris negra e do tamanho de uma mostarda. Inicia um segundo de silêncio para, em seguida, entoar a mesma Canção apoteótica de todos os dias e desaparece num instante.  Que maravilha!
Volto para minha mesa de estudos e, numa tentativa vã de apagar minhas memórias de "caçador", rabisco em minha agenda esta frase de D. Morris: "Se o homem não for capaz de honrar o contrato com os animais, ele poderá seguir o mesmo caminho do dinossauro, tornando-se um fóssil numa era futura...".

3 comentários:

  1. Manifesto Poético contra à Estupidez Humana

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  2. Sim, um belissimo manifesto poético sobre a beleza e a leveza de ser pássaro apesar dos humanos! Página adorável.

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    1. Que lindo, que mudança! Há alguns anos amaldiçoou o canto de um sabiá que o acordava no raiar do dia.
      Antonino Pio Timpanaro

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