sábado, 21 de março de 2020

Segundo dia de encarceramento voluntário. Depois da quarentena, a burguesia terá outra visão do cárcere...

Primeira descoberta: A escravidão doméstica é de tal grau, que as empregadas domésticas e as donas de casa não deveriam trabalhar por menos de 100/dólares dia, pois a altura do fogão, do tanque e da pia da cozinha destroem rapidamente a musculatura das costas, adoecem os ossos e apodrecem a região lombar. E esse crime ergonômico deve ser colocado na conta dos engenheiros, dos arquitetos, dos marceneiros e de outros larápios.

Segunda descoberta: Os detergentes corroem as unhas as mãos e os antebraços de quem os usa diariamente. As indústrias e as fábricas de fundo de quintal devem ser interditadas e seus proprietários conduzidos à forca.

Terceira descoberta: A loucura das donas de casa é semelhante a dos que vieram enjaulados pelos séculos a fora. O romantismo e as políticas de género têm colaborado para que tudo isso tenha ficado  restrito às 4 paredes das casas, das mansões e dos cortiços.

Quarta descoberta: É quase impossível convencer um cachorro, em dois dias,  - um cachorro que estava acostumado a descer pela manhã e pela tarde para cagar lá no meio dos jardins, entre Hibiscos e Camélias - a fazê-lo, agora, sobre as manchetes da Folha de São Paulo ou do Correio Brasiliense...

Quinta descoberta: O vírus esta vencendo a batalha. Por mais que os governantes e os doutores cacarejem por aí, decretem Situação de Calamidade e etc, eles, os vírus, indiferentes, podem chegar até aqui no quinto andar nas asas de uma borboleta ou no perfume das damas da noite.

Sexta descoberta - Os babacas que nos finais de tarde saem às janelas para aplaudir os profissionais de saúde que tentam aliviar os estragos da epidemia, são os mesmos que durante décadas vieram batendo palmas bovinamente a três ou quatro jogadores de futebol analfabetos que facturavam milhões mensais, enquanto os cientistas e profissionais de saúde viviam com salários quase miseráveis.

Sétima descoberta: A leitura de Roberto Arlt, feita nesses dias de confinamento tem um peso especial. Estou relendo OS SETE LOUCOS com um prazer e uma fé igual a dos Adventistas do SÉTIMO DIA, enquanto chafurdam em seus papiros. Para os que nunca leram esse genial escritor argentino, antes de ir preparar um frango com abóbora, reproduzo aqui umas 30 linhas que estão lá nas páginas 18e 19 de seu Sete loucos. Leiam:

[...Deixou-se arrastar pelos impulsos que revolvem o  homem que se sente pela primeira vez às portas do cárcere, impulsos cegos que conduzem um infeliz a jogar a vida em um baralho ou em uma mulher. Talvez buscando no baralho e na fêmea uma consolação brutal e triste, talvez buscando no mais vil e mais baixo certa certeza de pureza que o salvará definitivamente.
E nas quentes horas da sesta, sob o sol amarelo, caminhou pela calçada de mosaicos quentes em busca dos prostíbulos mais imundos.
Escolhia de preferência aqueles em cujos saguões vias cascas de laranja e restos de cinza e os vidros forrados de baeta vermelha ou verde, protegidos por malhas de arame.
Entrava com a morte na alma. No pátio, sob o quadriculado céu azul, havia geralmente um só banco pintado de ocre, e sobre ele se deixava cair extenuado, suportando o olhar glacial da dona da casa, enquanto esperava a saída da pupila, uma mulher horrorosa de magra ou de gorda.
E a meretriz lhe gritava da porta entreaberta do dormitório , em cujo interior se escutava o ruído de um homem que se vestia:
- Vamos, querido? - E Erdosain entrava no outro dormitório, com os ouvidos zumbindo e com uma névoa girante nas pupilas.
Em seguida se recostava na cama envernizada de cor de fígado, em cima dos cobertores sujos pelos sapatos, que protegiam a colcha.
Subitamente sentia desejos de chorar, de perguntar àquele bofe que coisa era o amor, o angélico amor que os coros celestiais cantavam ao pé do trono de Deus vivo, mas a angústia lhe entupia a laringe enquanto que o estômago, de repugnância, se fechava como um punho.
E enquanto a prostituta passava sua mão movediça por sobre suas roupas, Erdosain se dizia:
- Que fiz de minha vida?
Um raio de sol cortava de viés o cristal da janelinha coberta de teias de aranha, e a meretriz, com a face apoiada na almofada de uma perna sobre a sua, movia lentamente a mão enquanto o entristecido homem se dizia:
- Que fiz de minha vida?
Subitamente o remorso lhe entristecia a alma, recordava sua esposa, que por falta de dinheiro tinha de lavar a roupa apesar de estar doente, então, com nojo de si mesmo, saltava do leito, entregava o dinheiro à prostituta e, sem tê-la usado, fugia até outro inferno para gastar o dinheiro que não lhe pertencia, para afundar-se mais em sua loucura que uivava o tempo todo...]

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