terça-feira, 29 de março de 2022

A raladeira de noz-moscada e o suicídio de Alain Delon...





"A morte? Coisa que acontece aos outros... 
A rainha dos barbitúricos"  
(Calandrino)
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Toda terça-feira de manhã a velhinha armênia passa pelo mercadinho da esquina para comprar alguma coisa ou simplesmente para ver o mundo. Saber quem morreu, quem está em estado terminal e a quantas anda  a loucura na cidade. Estava verdadeiramente impressionada com a história dos pastores que imprimiram suas fotos e a do Ministro da Educação numa edição da bíblia. Se isto aconteceu em apenas dois ou três meses que estiveram no poder e em plena luz do dia, imaginem o que não deve ter sido anexado a ela em sua obscura e (zigue-zagueante) trajetória de uns1300 anos... 

Fez questão de mostrar-me uma mini raladeira de noz-moscada que, segundo ela, é a última maravilha da pós-modernidade. Com sua tendência catastrófica e seu sentimento trágico da vida, entrou logo no assunto da eutanásia do Alain Delon. Diz que quando jovenzinha, na Armênia, tinha paixão por aquele galã do cinema francês e lamentava vê-lo, agora, na ante-sala do juízo final. Mas, que o que mais a incomodava era a história de ir para a Suíça para o tal suicídio assistido. Essa burguesia não tem mais o que inventar? Suicídio assistido um caralho! E logo na Suíça! Aquela tribo de banqueiros! Aquele refugio de ladrões de todo o planeta! Quando você se perguntar pela razão e pelo motivo da miséria do mundo, a resposta te conduzirá sempre àquelas contas clandestinas nos bancos suíços. E é até curioso que eles, depois de camuflarem o dinheiro das elites do mundo, também administrem suas eutanásias! 

Uma morte higienizada! Ridículo! Toda morte, Bazzo, você sabe, é ridícula, canalha e cretina, seja nos braços de uma pistoleira lá no antigo Moulin Rouge; num tanque de guerra nos arredores de Kiev; numa boca de fumo na Colombia, ou numa cruz.

Ir morrer na Suíça!

Dizem que até o Borges, o grande escritor argentino, foi morrer lá, com medo que ao ser conduzido para o Recoleta, uma certa corja de invejosos argentinos cuspissem sobre seu cadáver...

Ah! Mas morte é sempre um fracasso! Seja na Suíça ou numa tapera perdida nos garimpos da Amazônia peruana. É sempre a vitória de uma misteriosa força vingativa! Seja a de um grande ator ou a de um rato esmagado no asfalto!

Fez um silêncio, fingiu estar triste, separou um pacotinho de noz-moscadas e colocando uma mão no meu ombro concluiu:

Mas Bazzo... todos sabemos que nascer, envelhecer, adoecer e morrer é uma tragédia. Um destino implacável, cretino e miserável! Agora, essa ida do Alain Delon à Suíça, para ter uma morte romântica e asséptica... isso me decepcionou. Existirá algum ritual mais religioso do que este? O suicídio, que sempre foi abominado pelas religiões, agora, quando assistido, aprovado pela Suprema Corte e pelo Papa, passa a ser quase um show epifânico. Nunca a medicina se revelou tão descaradamente sacerdotal como agora. E é quase certo que entre os membros da equipe, um deles é especialista na administração dos óleos da extrema-unção... 

Ah, é o cachorro alucinado correndo atrás do próprio rabo e a miséria que só vai mudando de fantasia! É evidente que ao invés de ir morrer numa clínica como um cachorrinho de estimação, seria muito mais digno dele e de sua fama, morrer nas ruas de Paris, como frequentemente morrem os clochards! Seria um último e revolucionário Set  (contra a cômica e lamentável condição humana)! Com AVC ou sem AVC, numa cadeira de rodas ou arrastando-se pelas avenidas congeladas da cidade, meia garrafa de vinho tinto e de braços dados e envolto nas plumas de uma ou outra das velhas e caquéticas atrizes do Chat de noir; do Lido ou do Crazi Horse... que ainda sobram... Parole... Parole... Parole... Encore des paroles...

Disse isso visivelmente emocionada, arrumou o lenço amarelo de seda italiana na cabeça, driblou o fiscal e abandonou o mercado (malandramente) sem pagar as noz-moscadas... 

 

 

segunda-feira, 28 de março de 2022

Fragmentos do futuro/breve: VADEMÉCUM DOS VAGABUNDOS (Um capítulo extraviado dos Evangelhos...)





...Enfim, a idéia de ter que trabalhar nos aterrorizava. E cada um daqueles futuros doutores trazia uma história que beirava à miséria, se não econômica, pelo menos cultural. Todas as idiotices ‘tradicionais’ de seus parentes vinham condensadas neles. Lembrar a data de nascimento dos outros, por exemplo, era uma obrigação e esquecê-la, uma heresia, principalmente se fosse do pai, da mãe, dos irmãos, da professora... Uma idiotice engendrada pelos comerciantes e que havia se transformado numa obrigatoriedade civilizatória e quase sagrada. Era outro tipo de escravidão! Como livrar-se daquela merda, sem sucumbir e sem ser banido?

Um deles, era particularmente feliz. Todo final de mês ía passar um final de semana numa espécie de mosteiro, edificado no topo de uma colina, com uma aluna de paraquedismo de sua idade. Um retiro sexual. Era uma menina graciosa que parecia ter descido do paraíso naqueles dias e ele fazia questão de contar-nos em detalhes a prática de um kamasutra inventado por eles. Todos o invejavamos e estavamos dispostos a traí-lo na primeira oportunidade. E gostava de repetir que sua mãe, uma italiana moderna, sempre o previnia: ao ir ao encontro de uma mulher esteja sempre impecavelmente limpo, pois sempre pode acontecer um boquete. 

Num dia de chuva e de vendavais, nos mostrou um bilhete que havia recebido de sua mãe, depois que ela soube de seu conflito com o trabalho, recomendações que ele levava carinhosamente na carteira. Dizia: "Figlio, soube que, com outros estudantes, estas declarando guerra ao trabalho. Te entendo. Teu pai, teu avô e eu mesma tentamos nos livrar dele durante décadas, mas sem sucesso. É uma maldição. Não tem como resolver. Mas tenha cuidado. Não divulgue essa tua repulsa e não caia na lengalenga de culpar apenas o capitalismo. Os comunistas e até os anarquistas têm a mesma ambiguidade e obsessão por ele. Quando conheci teu pai, ele era um vagabundo honrado. O casamento e os filhos o obrigaram a submeter-se ao trabalho. Hoje está um traste. Os músculos, os ossos e até os pensamentos estão atrofiados. Repito: não há como fugir! Todos os prazeres têm um preço! Desde que se nasce se é obrigado a fazer esse pacto monstruoso com toda essa merda. Se tem que comer, ter onde dormir, é preciso comprar um um relógio, um sapato, uma pasta de dente e outras coisas que custam. Tudo custa. E o dinheiro, se não se é um ladrão, de onde consegui-lo? Te entendo, mas acorde. Não é possivel eternizar o Principio do Prazer, tempo em que acordavas cantarolando, cheiravas as calcinhas de tua priminha e ordenava que alguém te preparasse uma gemada. Agora estás no pórtico do Principio da Realidade, que é um sinônimo de inferno. Observe como as revoluções que surgiram até agora, neste particular, não serviram para nada. A base de todas sempre foi e é o trabalho. Até a URSS, que era a utopia máxima dos estalinistas, passou a ser chamada orgulhosamente por eles, de República do Trabalho! Lembra da frase cinica: Arbeit macht frei, escrita pelos alemães na entrada de um Campo de Concentração Nazi? Essa mesma frase sempre foi uma espécie de mantra, tanto para os socialistas como para os fascistas. Veja os símbolos dessa gente: Dos comunistas, a foice e o martelo; dos fascistas um feixe de lenha e um machado. Os maçons elegeram as ferramentas dos carpinteiros e o cristianismo, a cruz. Suplícios! A própria palavra trabalho, tem origem no tripallium, que é um conhecido e antigo instrumento de tortura. E ouça o Hino da Internacional Socialista: numa das últimas estrofes até se propõe o extermínio dos "parasitas"... Sobreviveríamos?  Lembre-se sempre daquilo que determinou Lênin, já nos primeiros tempos da Revolução e que nos recorda Robert Kurz:

 

[Lenine apontava já para um horizonte absolutamente sombrio de ‘disciplina do trabalho’, defendendo um conjunto de medidas em tudo semelhantes ás denunciadas por Marx a propósito da chamada 'acumulação original' do arranque histórico do capitalismo na Europa Ocidental. Entre outras coisas sugere o encarceramento dos vigaristas, dos ricos, dos vadios e dos operários que fogem do trabalho, o fornecimento de 'cadernetas amarelas’ para o controle popular, a ‘rápida correção' dessa gente prejudicial’ e o fuzilamento imediato de um em cada dez culpados de parasitismo]


Essa gente enlouqueceu, meu filho? Leis trabalhistas!? Só se fala em assalariados, horas extras, mercadorias e em produtividade... Trabalho Terceirizado (entenda-se alguém que comercializa o trabalho dos outros!) Onde se quer chegar, afinal? Dos oitenta anos de vida, o sujeito passa uns setenta trabalhando. Tem sentido uma escravidão dessas? E os dementes da fé até incluiram a preguiça entre os 7 pecados capitais! Quê gente! De onde lhes veio essa predisposição para a servidão? 

A única solução real, seria não ter nascido. Mas agora é tarde! Por isso, a revolução do futuro será relacionada à reprodução. Com que autoridade nos damos o direito de trazer alguém para este campo de trabalhos forçados? Enfim, tente descubrir algo que te exigirá menos sofrimento. Que tal a vida religiosa? Tens uma tia que é quase freira. Virou lésbica no convento, mas é um amor de pessoa! Quem sabe esse transtorno não seja genético e exista resquícios de santidade também em você. Veja a vida que levam esses crentes e malandros que edificam, gerenciam e administram igrejas. Não constituem família; comem do bom e do melhor, não pagam impostos, não suam para nada, a comunidade até lhes oferece (de graça) seus filhos e filhas e passam a vida inteira fazendo os mesmos sermões para uma platéia de analfabetos e de místicos. Dia da Quaresma! Dia de Natal! Dia de Todos os Santos… Observe como são pétreas as ‘Tabuas da Lei', as parabolas, a moralidade, as crendices e as balelas são sempre as mesmas. Reflita. Considere até a hipótese de vir a ser um funcionário público, mas sem esquecer o que dizia Hegel, dos governos: O governo não pode pois apresentar-se senão como uma facção. O que se designa por governo é tão só a facção vitoriosa. Facções que gostam de se vangloriar diante das facções adversárias de terem "criado milhões de vagas"e incluído milhões de bobalhões no mundo do trabalho... E a plebe, anestesiada pela servidão e que perdeu o senso de dignidade, aplaude! Procure ler as propostas e utopias de Fourier (Livre jogo das paixões), mas sem iludir-se, sem idealizar nada. Tudo está dominado e não há solução! Tudo está mistificado e fetichizado pelos governos, pelos sindicatos, pelos padres, pelas máfias e pelos intelectuais que dão suporte a essa estupidez e a esse bando de - como diriam uns vagabundos franceses - selfcleptômanos! (ladrões de si mesmos!) Não tenha medo e nem vergonha de pertencer ao que chamam de "exército de desocupados”, um dia, quem sabe, todos, iremos nos incorporar voluntariamente a esse exército, quando então, a fábrica de escravos entrará em bancarrota. Fuja da opinião publica! A justiça é uma ficção! Não há justiça e nem honra! O mundo é uma espécie de manicômio com os pacientes precariamente medicados. Onde até o que se considera Luta de Classes, no fundo, é apenas disputa entre fetiches! E não se venda! Não negocie com ninguém teu tempo e tua energia! Mas o faça com cautela e habilidade para que não te condenem ao ostracismo ou mesmo a uma prisão! Da vida só gozamos alguns momentos o resto é só intrigas e servidão. E agora, com os progressos mecânicos, ainda corremos o risco de ser transformados em robots e em apêndices das máquinas. Acumulo de um lado e miséria do outro! Lembra daquilo que escreveu Marx, sobre o assunto? Acumulação de riqueza num pólo implica acumulação de pobreza, de sofrimento, de ignorância, de embrutecimento, de degradação moral e escravidão no pólo oposto. Parece até cristianismo, mas não é. Enfim, figlio, só a malandragem refinada poderá amenizar essa emboscada e depois, se morre e pronto.... Para terminar: tome consciência de que se foram os dias nos Jardins de Epicuro, e que agora a luta é com o Inferno de Dante; Que os tempos felizes do Playground passaram e que agora se está no Front de uma Guerra cretina e cansativa; que o colo e as tetas afetuosas da mamãe foram trocadas pelo abraço ambíguo e mercantil de uma cortesã...". 

Terminava a leitura, olhava para todos meio orgulhoso daquela mulher, voltava a guardar o bilhete na carteira e gargalhava, mas com um certo pudor: porquê a mãe ainda era a mãe! (pp. 11,12,13...)




domingo, 27 de março de 2022

AS CIDADES: ARQUITETURA & SAÚDE MENTAL - Sobre a Internacional Situacionista.

"Tácito confessava preferir os perigos da liberdade à quietude da escravidão" 

(Citado por Giancarlo Sanguinetti em: Do terrorismo e do Estado)

 



“Doutor em nada” (2), avesso às instituições, sem ser simplesmente um artista, um intelectual ou um ativista político, Guy-Ernest Debord (1931-1994), o fundador da Internacional Situacionista – IS, é quase inclassificável. Muito influenciado pelo movimento Dadá e também pelo Surrealismo (que depois será um dos maiores alvos de suas críticas), o jovem Debord encontrou em 1951, no festival de cinema de Cannes, um grupo com influências e interesses parecidos, os Letristas de Isidore Isou (3). Já em seu primeiro filme em 1952, Hurlements en faveur de Sade, Debord entrou em conflito com Isou (4) e deixou os “velhos letristas” para fundar nesse mesmo ano, com alguns amigos, a Internacional Letrista – IL. De 1952 a 1954 o novo grupo letrista publicou o periódico Internationale Lettriste, e de 1954 a 1957, 29 números de Potlatch (5).

As questões tratadas em Potlatch, inicialmente mais ligadas à arte, à superação do Surrealismo, e principalmente às idéias de ir além da arte, passaram a tratar da vida cotidiana em geral, da relação entre arte e vida, e, em particular, da arquitetura e do urbanismo, sobretudo da crítica ao funcionalismo moderno. Dos textos mais radicais publicados em Potlatch contra a arquitetura e o urbanismo funcionalistas modernos podem ser citados:  Construction de Taudis (6), Le gratte-ciel par la racine(7), Une architecture de la vie (8), L’architecture et le jeu (9) e Projet d’embellissements rationnels de la ville de Paris (10).

Os letristas, reunidos em torno de Debord – entre os mais influentes membros, editores de Potlatch, estavam Michèle Bernstein, Franck Conord, Mohamed Dahou, Gil Wolman e Jacques Fillon –, já anunciavam algumas idéias, práticas e procedimentos que depois formaram a base de todo o pensamento urbano situacionista: a psicogeografia, a deriva e, principalmente, a idéia-chave, inspiradora do próprio nome do futuro grupo, a “construção de situações”. Já no primeiro número de Potlatch(junho de 1954) há uma proposta de psicogeografia, Le jeu psychogéographique de la semaine:

“Em função do que você procura, escolha uma região, uma cidade de razoável densidade demográfica, uma rua com certa animação. Construa uma casa. Arrume a mobília. Capriche na decoração e em tudo que a completa. Escolha a estação e a hora. Reúna as pessoas mais aptas, os discos e a bebida convenientes. A iluminação e a conversa devem ser apropriadas, assim como o o que está em torno ou suas recordações. Se não houver falhas no que você preparou, o resultado será satisfatório”.

Vários textos letristas sobre a psicogeografia também foram publicados na revista belga Les lèvres nues (11) entre 1955 e 1956; a experiência psicogeográfica estava diretamente ligada à prática da deriva, vários textos letristas comentavam e propunham diferentes derivas, entre eles o Résumé 1954, assinado por Debord e Fillon (Potlatch, n. 14, novembro 1954):

“As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reinvidicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos”.

A idéia de “construção de situações” também surge inicialmente em Potlatch, como no texto coletivo, onde eles citam Charles Fourier (12), Une idée neuve en Europe (n. 7, agosto de 1954):

“A construção de situações será a realização contínua de um grande jogo deliberadamente escolhido; a passagem de um ao outro desses cenários e desses conflitos em que os personagens de uma tragédia morreriam em vinte e quatro horas. Mas o tempo de viver não faltará mais. Uma crítica do comportamento, um urbanismo influenciável, uma técnica de ambiências devem se unir a essa síntese, nós conhecemos os seus primeiros principios. É preciso reinventar em permanência a atração soberana que Charles Fourier chamava de livre jogo das paixões”.

Os letristas, ainda sediados em Paris, passaram a colaborar com alguns grupos de artistas europeus de tendências semelhantes, como o London Psychogeographical Association – LPA, dirigido por Ralph Rumney, e principalmente o grupo Cobra (Copenhaguem, Bruxelas, Amsterdã – 1948-1951, revista homônima), animado, entre outros, pelo dinamarquês Asger Jorn (Arger Jorgensen), pelo belga Christian Dotremont e pelo holandês Constant (Constant Nieuwenhuys). Constant e Jorn foram os responsáveis, com Debord e Raoul Vaneigem, pela elaboração do pensamento urbano situacionista. Jorn fundou, após a dissolução do Cobra, o MIBI (Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista – 1954-1957, revista Eristica): uma crítica à abertura da nova Bauhaus em Ulm – Hochschule fur Gestaltung– por Max Bill em 1955 (13).

O MIBI organizou em Alba, Itália, em setembro de 1956, uma reunião desses principais grupos europeus que vinham trabalhando sobre os mesmos temas de forma independente, com a participação de membros de oito países. No ano seguinte em Cosio d’Arrosca (14), Debord fundou, com os integrantes dos outros grupos também presentes em Alba, a Internacional Situacionista – IS. A IS passou rapidamente a ter adeptos em vários países, entre eles: Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca e Argélia. Entre 1958 e 1969, 12 números da revista IS foram publicados e, se nos primeiros seis números (até 1961) as questões tratavam basicamente da arte passando para uma preocupação mais centrada no urbanismo, estas se deslocaram “naturalmente” em seguida para as esferas propriamente políticas, e sobretudo revolucionárias, culminando na determinante e ativa participação situacionista nos eventos de Maio de 1968 em Paris.

Além dos números da IS, dos inúmeros panfletos e das ações públicas realizadas pelos situacionistas, três publicações de seus membros foram determinantes na formação do espírito revolucionário pré-68: a brochura coletiva publicada em 1966 De la misère en milieu étudiant, considérée sous ses aspects économique, politique, psychologique, sexuel et notamment intellectuel, et quelques moyens pour y remédier; o livro do situacionista Raoul Vaneigem, publicado em 1967, Traité de savoir-vivre à l’usage des jeunes générations; e o hoje clássico de Guy Debord, também publicado em 1967, La société du spectacle (15). Apesar da visibilidade conquistada nas diversas ações situacionistas que marcaram os acontecimentos de Maio de 68, a IS, depois de um fortalecimento fulgaz, entrou em crise. O seu súbito reconhecimento atraiu muitos novos membros de vários países, tornando a organização cada vez mais complexa e praticamente incontrolável. Assim, a IS se dissolveu em 1972, um fim que para o seu fundador, Debord, seria o verdadeiro começo:

“O movimento das ocupações [Maio de 1968] foi o início da revolução situacionista, mas foi só o começo, como prática da revolução e como consciência situacionista da história. É só agora que toda uma geração, internacionalmente, começou a ser situacionista” (16).

Os situacionistas e a cidade

“Sabe-se que no princípio os situacionistas pretendiam, no mínimo, construir cidades, o ambiente apropriado para o despertar ilimitado de novas paixões. Porém, como isso evidentemente não era tão fácil, nos vimos forçados a fazer muito mais” (17).

Pode-se notar uma seqüência clara de mudança de escala de preocupação e área de atuação do pensamento situacionista. Se inicialmente eles estavam interessados em ir além dos padrões vigentes da arte moderna – passando a propor uma arte diretamente ligada à vida, uma arte integral – logo em seguida eles perceberam que esta arte total seria basicamente urbana e estaria em relação direta com a cidade e com a vida urbana em geral. “A arte integral, de que tanto se falou, só se poderá realizar no âmbito do urbanismo” (18). Em um primeiro momento, essas investigações propriamente urbanas se referiam à experiência da cidade existente – através de novos procedimentos e práticas: psicogeografia e derivas – mas também à utilização dessas experiências como base para uma proposta de cidade situacionista.

“A pesquisa psicogeográfica […] assume assim seu duplo sentido de observação ativa das aglomerações urbanas de hoje, e de formulação de hipóteses sobre a estrutura de uma cidade situacionista” (19).

À medida que os situacionistas afinavam as suas experiências urbanas, eles abandonaram a idéia de propor cidades reais e passaram à crítica feroz contra o urbanismo e o planejamento em geral. Se eles se posicionavam cada vez mais contra o urbanismo, ficaram sempre a favor das cidades, ou seja, eram contra o monopólio urbano dos urbanistas e planejadores em geral, e a favor de uma construção realmente coletiva das cidades.

“Se o planejador não pode conhecer as motivações comportamentais daqueles a quem ele vai proporcionar moradia nas melhores condições de equilíbrio nervoso, mais vale integrar desde já o urbanismo no centro de pesquisas criminológicas” (20).

Os situacionistas perceberam então que não seria possível propor uma forma de cidade pré-definida (21) pois, segundo suas próprias idéias, esta forma dependia da vontade de cada um e de todos, e esta não poderia ser ditada por um planejador. Qualquer construção dependeria da participação ativa dos cidadãos, o que só seria possível por meio de uma verdadeira revolução da vida cotidiana.

Inventamos a arquitetura e o urbanismo que são irrealizáveis sem a revolução da vida cotidiana; isto é, sem a apropriação do condicionamento por todos os homens, para que melhorem indefinidamente e se realizem (22).

Os situacionistas chegaram a uma convicção exatamente contrária daquela dos arquitetos modernos. Enquanto os modernos acreditaram, em um primeiro momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo. Enquanto os modernos chegaram a achar, como Le Corbusier, que a arquitetura poderia evitar a revolução – “Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução” (23) –, os situacionistas, ao contrário, queriam provocar a revolução, e pretendiam usar a arquitetura e o ambiente urbano em geral para induzir à participação, para contribuir nessa revolução da vida cotidiana contra a alienação e a passividade da sociedade. Eles passaram diretamente da idéia da revolução da vida cotidiana para a questão da revolução política propriamente dita, e a partir desse momento – 1961, após a publicação da IS n. 6 – os textos situacionistas abandonaram as idéias sobre a cidade em particular, para se dedicar a questões exclusivamente políticas: ideológicas, revolucionárias, anti-capitalistas, antialienantes e antiespetaculares (o que não deixou de estar relacionado à questão urbana).

“O urbanismo não existe: não passa de uma “ideologia”, no sentido de Marx. A arquitetura existe realmente tanto quanto a Coca-Cola: é uma produção envolta em ideologia, mas real, satisfazendo falsamente uma necessidade forjada; ao passo que o urbanismo é comparável ao alarido publicitário em torno da Coca-Cola, pura ideologia espetacular. O capitalismo moderno, organizado de modo a reduzir toda a vida social a espetáculo, é incapaz de oferecer um espetáculo que não seja o de nossa própria alienação. Seu sonho de urbanismo é sua obra-prima” (24).

Pensamento urbano situacionista

Talvez seja exagerado falar em uma verdadeira teoria urbana situacionista, a não ser que seja considerada a etimologia grega do termo theôrien: observar. Mas a crítica urbana situacionista teve efetivamente uma base teórica, sobretudo de observação e experiência da cidade existente. Pode-se considerar a reunião das idéias, procedimentos e práticas urbanas situacionistas como um pensamento singular e inovador, que poderia ainda hoje inspirar novas experiências, interessantes e originais, de apreensão do espaço urbano. Mas é importante repetir: não existiu de fato um modelo de espaço urbano situacionista, apesar da tentativa renegada de Constant com a Nova Babilônia; o que existiu, foi um uso, ou apropriação, situacionista do espaço urbano. Assim como não existiu uma forma situacionista material de cidade mas sim uma forma situacionista de viver, ou experimentar, a cidade. Quando os habitantes passassem de simples espectadores a construtores, transformadores e “vivenciadores” de seus próprios espaços, isso sim impediria qualquer tipo de espetacularização urbana.

“A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o princípio característico do espetáculo: a não-participação. Ao contrário, percebe-se como as melhores pesquisas revolucionárias na cultura tentaram romper a identificação psicológica do espectador com o herói, a fim de estimular esse espectador a agir, instigando suas capacidades para mudar a própria vida. A situação é feita de modo a ser vivida por seus construtores. O papel do “público”, se não passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto aumenta o número dos que já não serão chamados atores mas, num sentido novo do termo, vivenciadores” (25).

O pensamento urbano situacionista seria então baseado na idéia de construção de situações. Era situacionista “que se refere à teoria ou à atividade prática de uma construção de situações. Indivíduo que se dedica a construir situações” (26). Uma situação construída seria então um “momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos”.

“Nossa idéia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram” (27).

A tese central situacionista era a de que, por meio da construção de situações se chegaria à transformação revolucionária da vida cotidiana, o que se assemelhava muito à tese defendida por Henri Lefebvre – não por acaso muito próximo dos situacionistas no início do movimento (28) – de uma construção de momentos, em sua trilogia La critique de la vie quotidienne (29). A situação construída se assemelha à idéia de momento, e poderia ser efetivamente vista como um desenvolvimento do pensamento lefebvriano: “O que você chama momentos, nós chamamos situações, mas estamos levando isso mais longe que você. Você aceita como momento tudo que ocorreu na história: amor, poesia, pensamento. Nós queremos criar momentos novos” (30).

As duas idéias também tinham ligação direta com a questão do cotidiano. Este seria a fronteira onde nasceria a alienação mas onde também poderia crescer a participação; assim como o lazer seria o tempo livre para o prazer e não para a alienação, o lazer poderia passar a ser ativo e criativo através da participação popular. O objetivo final de ambos – apesar dos situacionistas terem acusado Lefebvre de fazer uma “ficção científica da revolução” (31) – seria uma revolução cultural que se daria pela idéia de criação global da existência contra a banalidade do cotidiano. Essa teoria crítica que fundamentaria a idéia central de construção de situações seria o próprio Urbanismo Unitário (UU) – que, como já vimos, não era uma doutrina ou uma proposta de urbanismo mas sim uma crítica ao urbanismo, não era um tipo de urbanismo mas sim uma teoria urbana crítica –, foi definido como: “teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento”.

Para tentar chegar a essa construção total de um ambiente, os situacionistas criaram um procedimento ou método, a psicogeografia, e uma prática ou técnica, a deriva, que estavam diretamente relacionados. A psicogeografia foi definida como um “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”. E a deriva era vista como um “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar a duração de um exercício contínuo dessa experiência”. Ficava claro que a deriva era o exercício prático da psicogeografia e, além de ser também uma nova forma de apreensão do espaço urbano, ela seguia uma tradição artística desse tipo de experiência (32). A deriva situacionista não pretendia ser vista como uma atividade propriamente artística (33), mas sim como uma técnica urbana situacionista para tentar desenvolver na prática a idéia de construção de situações através da psicogeografia. A deriva seria uma apropriação do espaço urbano pelo pedestre através da ação do andar sem rumo. A psicogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos, através das derivas, e tentava mapear os diversos comportamentos afetivos diante dessa ação, basicamente do caminhar na cidade. Aquele “que pesquisa e transmite as realidades psicogeográficas” era considerado um psicogeógrafo. E psicogeográfico seria “o que manifesta a ação direta do meio geográfico sobre a afetividade”.

“A brusca mudança de ambiência numa rua, numa distância de poucos metros; a divisão patente de uma cidade em zonas de climas psíquicos definidos; a linha de maior declive – sem relação com o desnível – que devem seguir os passeios a esmo; o aspecto atraente ou repulsivo de certos lugares; tudo isso parece deixado de lado. Pelo menos, nunca é percebido como dependente de causas que podem ser esclarecidas por uma análise mais profunda, e das quais se pode tirar partido. As pessoas sabem que existem bairros tristes e bairros agradáveis. Mas estão em geral convencidos de que as ruas elegantes dão um sentimento de satisfação e que as ruas pobres são deprimentes, sem levar em conta nenhum outro fator” (34)

A psicogeografia seria então uma geografia afetiva, subjetiva, que buscava cartografar as diferentes ambiências psíquicas provocadas basicamente pelas deambulações urbanas que eram as derivas situacionistas. Algumas dessas derivas foram fotografadas – algumas fotocolagens destas eram vistas como mapas, como o Map of Venise de Ralph Rumney sobre suas derivas em Veneza – ou filmadas, chegando a aparecer em alguns filmes de Debord, sobretudo no seu segundo filme, de 1959: Sur le passage de quelques personnes à travers une assez courte unité de temps. Cartografias subjetivas, ou mapas afetivos, chegaram a ser efetivamente realizados, e um deles ficou quase como um símbolo situacionista The Naked City, illustration de l’hypothèse des plaques tournantes, assinado por Debord em 1957 (35).

The Naked City talvez seja a melhor ilustração do pensamento urbano situacionista, a melhor representação gráfica da psicogeografia e da deriva, e também um ícone da própria idéia de Urbanismo Unitário. Ele é composto por vários recortes do mapa de Paris em preto e branco, que são as unidades de ambiência, e setas vermelhas que indicam as ligações possíveis entre essas diferentes unidades. As unidades estão colocadas no mapa de forma aparentemente aleatória, pois não correspondem à sua localização no mapa da cidade real, mas demonstram uma organização afetiva desses espaços ditada pela experiência da deriva. As setas representam essas possibilidades de deriva e como estava indicado no verso do mapa: “the spontaneous turns of direction taken by a subject moving through these surroudings in disregard of the useful connections that ordinary govern his conduct”. O título do mapa, The Naked City, também escrito em letras vermelhas, foi tirado de um film noir americano homônimo (36). O seu subtítulo,  illustration de l’hypothèse des plaques tournantes, fazia alusão às placas giratórias (plaques tournantes) e manivelas ferroviárias responsáveis pela mudança de direção dos trens, que sem dúvida representavam as diferentes opções de caminhos a serem tomados nas derivas.

The Naked City tem nítida influência de alguns mapas do livro do sociólogo urbano Paul-Henry Chombart de Lauwe Paris et l’agglomération parisienne, de 1952, que também foi citado nas páginas da IS, principalmente na Théorie de la dérive. Um diagrama desse livro de Lauwe também figura na IS, ilustrando o comentário sobre a deriva de Rumney em Veneza: um interessante mapa de Paris com o traçado de todos os trajetos realizados em um ano por uma estudante, que se concentram no bairro em que ela morava, nos percursos básicos entre a sua casa, a universidade e o local de suas aulas de piano. Chombart de Lauwe, muito influenciado pela Escola de Chicago e principalmente por Ernest Burgess, foi claramente uma influência forte, como Lefebvre, no pensamento urbano situacionista. Talvez, ao contrário de Lefebvre, a influência de Chombart de Lauwe não tenha sido propriamente teórica, mas sim mais ligada às questões de método – que são completamente desviados, detournés, pelos situacionistas – e sobretudo a uma fascinação comum, mesmo que com usos totalmente distintos, por mapas e fotografias urbanas aéreas (37).

Numa das páginas da IS, ilustrando o texto L’urbanisme unitaire à la fin des années 50, estão colocados, lado a lado, uma foto aérea de Amsterdã, com o título Une zone expérimentale pour la dérive. Le centre d’Amsterdam, qui sera systématiquement exploré par les équipes situationnistes en Avril-Mai 1960 e uma Carte du pays de Tendre de 1656. Esse mapa de Madeleine Scudéry é uma metáfora de uma viagem no espaço geográfico imaginário que traçaria diversas possibilidades de histórias de amor e romances variados. Os nomes dos lugares estavam relacionados a diferentes sentimentos e marcavam momentos significativos e emocionantes. Este foi o mapa inspirador do  Le guide psychogéographique de Paris, discours sur les passions de l’amour. Os mapas situacionistas, psicogeográficos, realizados em função de derivas reais, eram tão imaginários e subjetivos quanto a Carte du pays de Tendre; eles simplesmente ilustravam uma nova maneira de apreender o espaço urbano através da experiência afetiva desses espaços. Esses mapas, experimentais e rudimentares, desprezavam os parâmetros técnicos habituais pois estes não levam em consideração aspectos sentimentais, psicológicos ou intuitivos, e que muitas vezes caracterizam muito mais um determinado espaço do que os simples aspectos meramente físicos, formais, topográficos ou geográficos.

“A confecção de mapas psicogeográficos e até simulações, como a equação – mal fundada ou completamente arbitrária – estabelecida entre duas representações topográficas, podem ajudar a esclarecer certos deslocamentos de aspecto não gratuito mas totalmente insubmisso às solicitações habituais. As solicitações dessa série costumam ser catalogadas sob o termo de turismo, droga popular tão repugnante quanto o esporte ou as vendas a crédito. Há pouco tempo, um amigo meu percorreu a região de Hartz, na Alemanha, usando um mapa da cidade de Londres e seguindo-lhe cegamente todas as indicações. Essa espécie de jogo é um mero começo diante do que será a construção integral da arquitetura e do urbanismo, construção cujo poder será um dia conferido a todos” (38).

O pensamento urbano situacionista, e principalmente sua crítica ao urbanismo enquanto disciplina, poderia ser visto hoje, pelo próprio “campo” do urbanismo, como um convite à reflexão, à auto-crítica e ao debate. Um apelo contra a espetacularização das cidades e um manifesto pela participação efetiva – não somente para parecer “politicamente correto” como vem ocorrendo – por uma participação real da população nas decisões urbanas. Os textos situacionistas sobre a cidade (cf. Apologia da Deriva) ainda podem ser vistos, dentro da inércia teórico-especulativa atual, como uma proposta para se pensar agora, em conjunto com todos os atores sociais urbanos contemporâneos, sobre o futuro das cidades existentes e a construção das novas cidades do futuro.

notas

1
Esse texto é uma parte da apresentação do livro Apologia da deriva, escritos situacionistas sobre a cidade, uma antologia ilustrada de textos da Internacional Situacionista, com prefácio de Carlos Roberto Monteiro de Andrade, que será lançado pela editora Casa da Palavra no XVII Congresso Brasileiro de Arquitetos no Rio de Janeiro em abril 2003. A primeira seleção e tradução de textos situacionistas no Brasil foi realizada por Carlos Roberto Monteiro de Andrade para o nº 4 da revista Oculum (PUC-Campinas, editada por Abilio Guerra) em 1993. Hoje já podemos contar com alguns livros traduzidos: Guy Debord, A sociedade do espetáculo, Contraponto, Rio de Janeiro, 1997; I.S., Situacionista, teoria e prática da revolução, Conrad, São Paulo, 2002; Guy Debord, Panegírico, Conrad, São Paulo, 2002; Raoul Vaneigem, A arte de viver para as novas gerações, Conrad, São Paulo, 2002.

2
DEBORD, Guy. Panégyrique. éditions Gérard Lebovici, Paris, 1989 (autobiografia). Para um histórico mais completo da IS ver: MARTOS. J-F. Histoire de l’ Internationale Situationniste, Paris, Gérard Lebovici, 1989.

3
Isou costumava dizer que da mesma forma que Baudelaire desfez a poesia, Verlaine o poema, Rimbaud o verso, Isou reduziu tudo a letras, e daí a origem dos letristas.

4
O filme de Debord – a base da disputa entre velhos e novos letristas – era basicamente formado por seqüências de telas brancas e negras, e assim ele pretendia declarar a morte do cinema e propor ir além do princípio de passividade do espectador (o que ele consegue pois após vinte minutos de projeção o público indignado deixa a sala).

5
Um último número de Potlatch, o n. 30, já foi publicado depois do fim da IL e do início da IS.

6
Potlatch, n. 3. Crítica à Ville Radieuse de Le Corbusier.

7
Potlatch, n. 5. Crítica ao urbanismo moderno em geral e a Le Corbusier em particular.

8
Potlatch, n. 15. Crítica aos funcionalistas e racionalistas em geral.

9
Potlatch, n. 20. Apologia da cidade como terreno para o jogo, a teoria de Huizinga e mais uma vez, Le Corbusier, são citados.

10
Potlatch, n. 23. Idéias e propostas irônicas dos letristas para transformar Paris em um terreno de jogo, ou como eles diziam, oferecer soluções para diversos problemas de urbanismo desta cidade.

11
Esta revista considerada “surrealista” era editada por M. Marien e um texto de Debord importante para a compreensão do pensamento urbano situacionista foi aí publicado em 1955: “Introduction à une critique de la géographie urbaine”.

12
Charles Fourier (1772-1837), filósofo e economista francês, fundou a revista Le Phalanstère: crítica feroz à sociedade industrial burguesa e proposta de uma nova sociedade e de uma nova cidade-edifício (Phalange ou Phalanstère) utópica, socialista e hedonista. O prazer libidinoso, as orgias e os costumes libertinos estariam na base dessa nova comunidade. Fourier descreve com precisão o novo edifício, um enorme complexo arquitetônico. O fourierismo influenciou muito os surrealistas, principalmente André Breton, mas também Marx e Engels.

13
O debate entre Jorn e Bill será desenvolvido em seguida. É importante ressaltar que o escultor e arquiteto suíço Max Bill foi a grande vedete da Primeira Bienal de São Paulo em 1951 e influenciou toda uma geração de artistas brasileiros de tendência concretista, principalmente o grupo paulista.

14
Ver o texto pronunciado nesta ocasião: “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional”.

15
A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997. Este livro é um claro desvio (détournemment) de vários textos, principalmente de Marx e Hegel, e de alguns manifestos, como o comunista. A crítica ao espetáculo, que já estava presente nos números da IS, passa a ser um dos temas principais de Debord; esta crítica era na verdade uma renovada crítica à alienação da sociedade gerada pelo fetichismo da mercadoria.

16
DEBORD, Guy. “Thèses sur l’Internationale Situationniste et son temps”. In La véritable scission dans l’ Internationale Situationniste, com Gianfranco Sanguinetti, Paris, Champ Libre, 1972.

17
DEBORD, Guy. De l’architecture sauvage. In JORN A. Le jardin d’Albisola (1974), republicado em On the passage of a few people through a rather brief moment in time: the Situationist International, Cambridge Mass., MIT, 1989.

18
DEBORD, Guy. “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional”.

19
Idem.

20
VANEIGEM, R. Comentários contra o urbanismo, IS, n. 6.

21
Exceto Constant, que insistiu na proposta de uma cidade utópica, Nova Babilônia, produzindo inúmeros mapas e maquetes, formalizando um verdadeiro projeto, o que provocou um desentendimento com Debord e seu desligamento da IS em 1960. “Constant s’était trouvé en opposition avec l’IS parce qu’il était préoccupé en priorité, et presque en exclusivité, des questions de structures de certains ensembles d’urbanisme unitaire, alors que d’autres situationnistes rappelaient qu’au stade présent d’un tel projet il était nécessaire de mettre l’accent sur le contenu (de jeu, de création libre de la vie quotidienne). Les thèses de Constant valorisaient dons les techniciens des formes architecturales para rapport à toute recherche d’une culture globale” (IS nº5). Assim Constant abandonou a IS, foi substituído por Attila Kotanyi, mas continuou desenvolvendo o projeto de Nova Babilônia por uma década. Ver LAMBERT J-C. New Babylon – Constant. Art et utopie, Cercle d`Art, Paris, 1997.

22
VANEIGEM, R.; KOTANYI, A. “Programa elementar do bureau de urbanismo unitário”, IS, n. 6.

23
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 1989 (original: Vers une arhitecture, 1923).

24
VANEIGEM, R.; KOTANYI, A. “Programa elementar do bureau de urbanismo unitário.” IS, n. 6.

25
DEBORD, Guy. “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional”.

26
Todas as definições situacionistas foram publicadas na IS, n. 1.

27
DEBORD, Guy. “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional”.

28
O contato entre os situacionistas e o sociólogo e filósofo Henri Lefebvre (1901/1991) foi em um primeiro momento extremamente cordial mas depois trouxe vários desentendimentos, principalmente com Debord, que não aceitava as implicações institucionais de Lefebvre (tanto com o partido comunista quanto com a universidade), e a dissociação entre sua vida e seu pensamento teórico. Lefebvre, importante e conceituado pensador marxista, publicou inúmeros livros sobre a questão urbana, e talvez o mais importante deles, no auge de Maio de 68, Le droit à la ville.

29
O primeiro livro, Introduction à la critique de la vie quotienne, é publicado em 1946; o segundo, Critique de la vie quotidienne, em 1963, e o último e mais conhecido em 1968: La vie quotidienne dans le monde moderne.

30
“Lefebvre on the Situationnists: an interview”, October, n. 79, MIT Press, Winter 1997.

31
IS, n. 3.

32
Outros tipos semelhantes de experiências ou simples reflexões sobre o espaço urbano provocavam ou consideravam a própria experiência estética ou a apreensão afetiva desses espaços. Podemos tentar traçar uma linha de artistas e teóricos que viria desde Baudelaire, da idéia de flâneur (em 1863, no texto Le peintre de la vie moderne), passando pelos dadaístas com as excursões urbanas por lugares banais, as deambulações aleatórias organizadas por Aragon, Breton, Picabia e Tzara entre outros, que continuaram com os surrealistas liderados por Breton, pela experiência física da errância no espaço real urbano que foi a base dos manifestos surrealistas (e dos livros Le paysan de Paris de 1926 de Aragon e Nadja de 1928 e L’amour fou, de 1937, ambos de Breton), que desenvolvem a idéia de hasard objectif, e depois disso, Walter Benjamin que retomou o conceito de flâneur de Baudelaire e Aragon, e começou a trabalhar com a idéia de flânerie, ou seja, de flanâncias urbanas, a investigação do espaço urbano pelo flâneur (principalmente de Paris e de suas passagens cobertas no Le livre des passages). Apesar de o flâneur ser para os situacionistas o protótipo de um burguês entediado e sem propostas, e da tentativa destes de se distanciar das promenades imbeciles surrealistas, os situacionistas contribuíram para desenvolver essa mesma idéia ao propor a noção de deriva urbana, da errância voluntária pelas ruas. Sem dúvida houve uma grande influência dadaísta, por exemplo da famosa excursão dadaísta – sempre propostas em lugares escolhidos precisamente por sua banalidade e falta de interesse – à igreja Saint-Julien-le-Pauvre em Paris, que ficou conhecida como 1ère Visite e ocorreu na quinta-feira 14 de abril de 1921 às 15 horas, quando Breton leu um manifesto para épater le bourgeois.

33
Essas idéias se desenvolveram também no meio artístico após os situacionistas. Logo em seguida o grupo neo-dadaísta Fluxus (Maciunas, Patterson, Filliou, Ono etc) também propôs experiências semelhantes; foi a época dos happenings no espaço público. No Brasil os tropicalistas também tiveram algumas idéias semelhantes, principalmente o Delírio Ambulatorium de Hélio Oiticica (outros artistas brasileiros já tinham proposto experiências no espaço urbano bem antes, como por exemplo, Flávio de Carvalho). Dentro do contexto da arte contemporânea, vários artistas trabalharam no espaço público de uma forma crítica ou com um questionamento teórico, e, entre vários outros, podemos citar: Krzysztof Wodiczko, Daniel Buren, Gordon Matta-Clark, Dan Grahan, Barbara Kruger, Jenny Holzer ou Rachel Whiteread. O denominador comum entre esses artistas e suas ações urbanas seria o fato de que eles viam a cidade como campo de investigações artísticas e novas possibilidades sensitivas, e estes acabavam assim mostrando outras maneiras de se analisar e estudar o espaço urbano através de suas obras/experiências.

34
DEBORD, Guy. Introdução a uma crítica da geografia urbana.

35
Debord e Jorn realizaram juntos dois livros ilustrados, feitos basicamente de colagens e que também continham outros “mapas”: Fin de Copenhague, MIBI, Copenhague, 1957, e Mémoires, IS, Copenhague, 1959, além do mapa Le guide psychogéographique de Paris, discours sur les passions de l’amour (1956).

36
The Naked City, de 1948, de Albert Maltz e Malvin Wadd, é uma história de detetives que investigam casos em Nova York. O filme se passa em Manhattan, nas ruas e nos espaços públicos dessa parte da cidade. O título do filme, por sua vez, foi retirado de um livro de fotos de crimes publicado em 1945.

37
Chombart de Lauwe escreveu, antes do seu clássico sobre Paris, dois livros sobre fotografias aéreas: La découverte aérienne du monde, de 1948 e Photographies aériennes. L’étude de l’homme sur terre, de 1949.

38
DEBORD, Guy. Introdução a uma crítica da geografia urbana.

sobre o autor

Arquiteta e Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora CNPq. Autora de Les favelas de Rio (Paris, l'Harmattan, 2001); Estética da Ginga (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001); Esthetique des favelas (Paris, l'Harmattan, 2003); co-autora de Maré, vida na favela (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002) e organizadora de Apologia da Deriva (Rio de Janeiro, Casa da Palavra)