“Doutor em nada” (2), avesso às instituições, sem ser simplesmente um artista, um intelectual ou um ativista político, Guy-Ernest Debord (1931-1994), o fundador da Internacional Situacionista – IS, é quase inclassificável. Muito influenciado pelo movimento Dadá e também pelo Surrealismo (que depois será um dos maiores alvos de suas críticas), o jovem Debord encontrou em 1951, no festival de cinema de Cannes, um grupo com influências e interesses parecidos, os Letristas de Isidore Isou (3). Já em seu primeiro filme em 1952, Hurlements en faveur de Sade, Debord entrou em conflito com Isou (4) e deixou os “velhos letristas” para fundar nesse mesmo ano, com alguns amigos, a Internacional Letrista – IL. De 1952 a 1954 o novo grupo letrista publicou o periódico Internationale Lettriste, e de 1954 a 1957, 29 números de Potlatch (5).
As questões tratadas em Potlatch, inicialmente mais ligadas à arte, à superação do Surrealismo, e principalmente às idéias de ir além da arte, passaram a tratar da vida cotidiana em geral, da relação entre arte e vida, e, em particular, da arquitetura e do urbanismo, sobretudo da crítica ao funcionalismo moderno. Dos textos mais radicais publicados em Potlatch contra a arquitetura e o urbanismo funcionalistas modernos podem ser citados: Construction de Taudis (6), Le gratte-ciel par la racine(7), Une architecture de la vie (8), L’architecture et le jeu (9) e Projet d’embellissements rationnels de la ville de Paris (10).
Os letristas, reunidos em torno de Debord – entre os mais influentes membros, editores de Potlatch, estavam Michèle Bernstein, Franck Conord, Mohamed Dahou, Gil Wolman e Jacques Fillon –, já anunciavam algumas idéias, práticas e procedimentos que depois formaram a base de todo o pensamento urbano situacionista: a psicogeografia, a deriva e, principalmente, a idéia-chave, inspiradora do próprio nome do futuro grupo, a “construção de situações”. Já no primeiro número de Potlatch(junho de 1954) há uma proposta de psicogeografia, Le jeu psychogéographique de la semaine:
“Em função do que você procura, escolha uma região, uma cidade de razoável densidade demográfica, uma rua com certa animação. Construa uma casa. Arrume a mobília. Capriche na decoração e em tudo que a completa. Escolha a estação e a hora. Reúna as pessoas mais aptas, os discos e a bebida convenientes. A iluminação e a conversa devem ser apropriadas, assim como o o que está em torno ou suas recordações. Se não houver falhas no que você preparou, o resultado será satisfatório”.
Vários textos letristas sobre a psicogeografia também foram publicados na revista belga Les lèvres nues (11) entre 1955 e 1956; a experiência psicogeográfica estava diretamente ligada à prática da deriva, vários textos letristas comentavam e propunham diferentes derivas, entre eles o Résumé 1954, assinado por Debord e Fillon (Potlatch, n. 14, novembro 1954):
“As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reinvidicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos”.
A idéia de “construção de situações” também surge inicialmente em Potlatch, como no texto coletivo, onde eles citam Charles Fourier (12), Une idée neuve en Europe (n. 7, agosto de 1954):
“A construção de situações será a realização contínua de um grande jogo deliberadamente escolhido; a passagem de um ao outro desses cenários e desses conflitos em que os personagens de uma tragédia morreriam em vinte e quatro horas. Mas o tempo de viver não faltará mais. Uma crítica do comportamento, um urbanismo influenciável, uma técnica de ambiências devem se unir a essa síntese, nós conhecemos os seus primeiros principios. É preciso reinventar em permanência a atração soberana que Charles Fourier chamava de livre jogo das paixões”.
Os letristas, ainda sediados em Paris, passaram a colaborar com alguns grupos de artistas europeus de tendências semelhantes, como o London Psychogeographical Association – LPA, dirigido por Ralph Rumney, e principalmente o grupo Cobra (Copenhaguem, Bruxelas, Amsterdã – 1948-1951, revista homônima), animado, entre outros, pelo dinamarquês Asger Jorn (Arger Jorgensen), pelo belga Christian Dotremont e pelo holandês Constant (Constant Nieuwenhuys). Constant e Jorn foram os responsáveis, com Debord e Raoul Vaneigem, pela elaboração do pensamento urbano situacionista. Jorn fundou, após a dissolução do Cobra, o MIBI (Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista – 1954-1957, revista Eristica): uma crítica à abertura da nova Bauhaus em Ulm – Hochschule fur Gestaltung– por Max Bill em 1955 (13).
O MIBI organizou em Alba, Itália, em setembro de 1956, uma reunião desses principais grupos europeus que vinham trabalhando sobre os mesmos temas de forma independente, com a participação de membros de oito países. No ano seguinte em Cosio d’Arrosca (14), Debord fundou, com os integrantes dos outros grupos também presentes em Alba, a Internacional Situacionista – IS. A IS passou rapidamente a ter adeptos em vários países, entre eles: Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca e Argélia. Entre 1958 e 1969, 12 números da revista IS foram publicados e, se nos primeiros seis números (até 1961) as questões tratavam basicamente da arte passando para uma preocupação mais centrada no urbanismo, estas se deslocaram “naturalmente” em seguida para as esferas propriamente políticas, e sobretudo revolucionárias, culminando na determinante e ativa participação situacionista nos eventos de Maio de 1968 em Paris.
Além dos números da IS, dos inúmeros panfletos e das ações públicas realizadas pelos situacionistas, três publicações de seus membros foram determinantes na formação do espírito revolucionário pré-68: a brochura coletiva publicada em 1966 De la misère en milieu étudiant, considérée sous ses aspects économique, politique, psychologique, sexuel et notamment intellectuel, et quelques moyens pour y remédier; o livro do situacionista Raoul Vaneigem, publicado em 1967, Traité de savoir-vivre à l’usage des jeunes générations; e o hoje clássico de Guy Debord, também publicado em 1967, La société du spectacle (15). Apesar da visibilidade conquistada nas diversas ações situacionistas que marcaram os acontecimentos de Maio de 68, a IS, depois de um fortalecimento fulgaz, entrou em crise. O seu súbito reconhecimento atraiu muitos novos membros de vários países, tornando a organização cada vez mais complexa e praticamente incontrolável. Assim, a IS se dissolveu em 1972, um fim que para o seu fundador, Debord, seria o verdadeiro começo:
“O movimento das ocupações [Maio de 1968] foi o início da revolução situacionista, mas foi só o começo, como prática da revolução e como consciência situacionista da história. É só agora que toda uma geração, internacionalmente, começou a ser situacionista” (16).
Os situacionistas e a cidade
“Sabe-se que no princípio os situacionistas pretendiam, no mínimo, construir cidades, o ambiente apropriado para o despertar ilimitado de novas paixões. Porém, como isso evidentemente não era tão fácil, nos vimos forçados a fazer muito mais” (17).
Pode-se notar uma seqüência clara de mudança de escala de preocupação e área de atuação do pensamento situacionista. Se inicialmente eles estavam interessados em ir além dos padrões vigentes da arte moderna – passando a propor uma arte diretamente ligada à vida, uma arte integral – logo em seguida eles perceberam que esta arte total seria basicamente urbana e estaria em relação direta com a cidade e com a vida urbana em geral. “A arte integral, de que tanto se falou, só se poderá realizar no âmbito do urbanismo” (18). Em um primeiro momento, essas investigações propriamente urbanas se referiam à experiência da cidade existente – através de novos procedimentos e práticas: psicogeografia e derivas – mas também à utilização dessas experiências como base para uma proposta de cidade situacionista.
“A pesquisa psicogeográfica […] assume assim seu duplo sentido de observação ativa das aglomerações urbanas de hoje, e de formulação de hipóteses sobre a estrutura de uma cidade situacionista” (19).
À medida que os situacionistas afinavam as suas experiências urbanas, eles abandonaram a idéia de propor cidades reais e passaram à crítica feroz contra o urbanismo e o planejamento em geral. Se eles se posicionavam cada vez mais contra o urbanismo, ficaram sempre a favor das cidades, ou seja, eram contra o monopólio urbano dos urbanistas e planejadores em geral, e a favor de uma construção realmente coletiva das cidades.
“Se o planejador não pode conhecer as motivações comportamentais daqueles a quem ele vai proporcionar moradia nas melhores condições de equilíbrio nervoso, mais vale integrar desde já o urbanismo no centro de pesquisas criminológicas” (20).
Os situacionistas perceberam então que não seria possível propor uma forma de cidade pré-definida (21) pois, segundo suas próprias idéias, esta forma dependia da vontade de cada um e de todos, e esta não poderia ser ditada por um planejador. Qualquer construção dependeria da participação ativa dos cidadãos, o que só seria possível por meio de uma verdadeira revolução da vida cotidiana.
Inventamos a arquitetura e o urbanismo que são irrealizáveis sem a revolução da vida cotidiana; isto é, sem a apropriação do condicionamento por todos os homens, para que melhorem indefinidamente e se realizem (22).
Os situacionistas chegaram a uma convicção exatamente contrária daquela dos arquitetos modernos. Enquanto os modernos acreditaram, em um primeiro momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo. Enquanto os modernos chegaram a achar, como Le Corbusier, que a arquitetura poderia evitar a revolução – “Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução” (23) –, os situacionistas, ao contrário, queriam provocar a revolução, e pretendiam usar a arquitetura e o ambiente urbano em geral para induzir à participação, para contribuir nessa revolução da vida cotidiana contra a alienação e a passividade da sociedade. Eles passaram diretamente da idéia da revolução da vida cotidiana para a questão da revolução política propriamente dita, e a partir desse momento – 1961, após a publicação da IS n. 6 – os textos situacionistas abandonaram as idéias sobre a cidade em particular, para se dedicar a questões exclusivamente políticas: ideológicas, revolucionárias, anti-capitalistas, antialienantes e antiespetaculares (o que não deixou de estar relacionado à questão urbana).
“O urbanismo não existe: não passa de uma “ideologia”, no sentido de Marx. A arquitetura existe realmente tanto quanto a Coca-Cola: é uma produção envolta em ideologia, mas real, satisfazendo falsamente uma necessidade forjada; ao passo que o urbanismo é comparável ao alarido publicitário em torno da Coca-Cola, pura ideologia espetacular. O capitalismo moderno, organizado de modo a reduzir toda a vida social a espetáculo, é incapaz de oferecer um espetáculo que não seja o de nossa própria alienação. Seu sonho de urbanismo é sua obra-prima” (24).
Pensamento urbano situacionista
Talvez seja exagerado falar em uma verdadeira teoria urbana situacionista, a não ser que seja considerada a etimologia grega do termo theôrien: observar. Mas a crítica urbana situacionista teve efetivamente uma base teórica, sobretudo de observação e experiência da cidade existente. Pode-se considerar a reunião das idéias, procedimentos e práticas urbanas situacionistas como um pensamento singular e inovador, que poderia ainda hoje inspirar novas experiências, interessantes e originais, de apreensão do espaço urbano. Mas é importante repetir: não existiu de fato um modelo de espaço urbano situacionista, apesar da tentativa renegada de Constant com a Nova Babilônia; o que existiu, foi um uso, ou apropriação, situacionista do espaço urbano. Assim como não existiu uma forma situacionista material de cidade mas sim uma forma situacionista de viver, ou experimentar, a cidade. Quando os habitantes passassem de simples espectadores a construtores, transformadores e “vivenciadores” de seus próprios espaços, isso sim impediria qualquer tipo de espetacularização urbana.
“A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o princípio característico do espetáculo: a não-participação. Ao contrário, percebe-se como as melhores pesquisas revolucionárias na cultura tentaram romper a identificação psicológica do espectador com o herói, a fim de estimular esse espectador a agir, instigando suas capacidades para mudar a própria vida. A situação é feita de modo a ser vivida por seus construtores. O papel do “público”, se não passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto aumenta o número dos que já não serão chamados atores mas, num sentido novo do termo, vivenciadores” (25).
O pensamento urbano situacionista seria então baseado na idéia de construção de situações. Era situacionista “que se refere à teoria ou à atividade prática de uma construção de situações. Indivíduo que se dedica a construir situações” (26). Uma situação construída seria então um “momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos”.
“Nossa idéia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram” (27).
A tese central situacionista era a de que, por meio da construção de situações se chegaria à transformação revolucionária da vida cotidiana, o que se assemelhava muito à tese defendida por Henri Lefebvre – não por acaso muito próximo dos situacionistas no início do movimento (28) – de uma construção de momentos, em sua trilogia La critique de la vie quotidienne (29). A situação construída se assemelha à idéia de momento, e poderia ser efetivamente vista como um desenvolvimento do pensamento lefebvriano: “O que você chama momentos, nós chamamos situações, mas estamos levando isso mais longe que você. Você aceita como momento tudo que ocorreu na história: amor, poesia, pensamento. Nós queremos criar momentos novos” (30).
As duas idéias também tinham ligação direta com a questão do cotidiano. Este seria a fronteira onde nasceria a alienação mas onde também poderia crescer a participação; assim como o lazer seria o tempo livre para o prazer e não para a alienação, o lazer poderia passar a ser ativo e criativo através da participação popular. O objetivo final de ambos – apesar dos situacionistas terem acusado Lefebvre de fazer uma “ficção científica da revolução” (31) – seria uma revolução cultural que se daria pela idéia de criação global da existência contra a banalidade do cotidiano. Essa teoria crítica que fundamentaria a idéia central de construção de situações seria o próprio Urbanismo Unitário (UU) – que, como já vimos, não era uma doutrina ou uma proposta de urbanismo mas sim uma crítica ao urbanismo, não era um tipo de urbanismo mas sim uma teoria urbana crítica –, foi definido como: “teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento”.
Para tentar chegar a essa construção total de um ambiente, os situacionistas criaram um procedimento ou método, a psicogeografia, e uma prática ou técnica, a deriva, que estavam diretamente relacionados. A psicogeografia foi definida como um “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”. E a deriva era vista como um “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar a duração de um exercício contínuo dessa experiência”. Ficava claro que a deriva era o exercício prático da psicogeografia e, além de ser também uma nova forma de apreensão do espaço urbano, ela seguia uma tradição artística desse tipo de experiência (32). A deriva situacionista não pretendia ser vista como uma atividade propriamente artística (33), mas sim como uma técnica urbana situacionista para tentar desenvolver na prática a idéia de construção de situações através da psicogeografia. A deriva seria uma apropriação do espaço urbano pelo pedestre através da ação do andar sem rumo. A psicogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos, através das derivas, e tentava mapear os diversos comportamentos afetivos diante dessa ação, basicamente do caminhar na cidade. Aquele “que pesquisa e transmite as realidades psicogeográficas” era considerado um psicogeógrafo. E psicogeográfico seria “o que manifesta a ação direta do meio geográfico sobre a afetividade”.
“A brusca mudança de ambiência numa rua, numa distância de poucos metros; a divisão patente de uma cidade em zonas de climas psíquicos definidos; a linha de maior declive – sem relação com o desnível – que devem seguir os passeios a esmo; o aspecto atraente ou repulsivo de certos lugares; tudo isso parece deixado de lado. Pelo menos, nunca é percebido como dependente de causas que podem ser esclarecidas por uma análise mais profunda, e das quais se pode tirar partido. As pessoas sabem que existem bairros tristes e bairros agradáveis. Mas estão em geral convencidos de que as ruas elegantes dão um sentimento de satisfação e que as ruas pobres são deprimentes, sem levar em conta nenhum outro fator” (34)
A psicogeografia seria então uma geografia afetiva, subjetiva, que buscava cartografar as diferentes ambiências psíquicas provocadas basicamente pelas deambulações urbanas que eram as derivas situacionistas. Algumas dessas derivas foram fotografadas – algumas fotocolagens destas eram vistas como mapas, como o Map of Venise de Ralph Rumney sobre suas derivas em Veneza – ou filmadas, chegando a aparecer em alguns filmes de Debord, sobretudo no seu segundo filme, de 1959: Sur le passage de quelques personnes à travers une assez courte unité de temps. Cartografias subjetivas, ou mapas afetivos, chegaram a ser efetivamente realizados, e um deles ficou quase como um símbolo situacionista The Naked City, illustration de l’hypothèse des plaques tournantes, assinado por Debord em 1957 (35).
The Naked City talvez seja a melhor ilustração do pensamento urbano situacionista, a melhor representação gráfica da psicogeografia e da deriva, e também um ícone da própria idéia de Urbanismo Unitário. Ele é composto por vários recortes do mapa de Paris em preto e branco, que são as unidades de ambiência, e setas vermelhas que indicam as ligações possíveis entre essas diferentes unidades. As unidades estão colocadas no mapa de forma aparentemente aleatória, pois não correspondem à sua localização no mapa da cidade real, mas demonstram uma organização afetiva desses espaços ditada pela experiência da deriva. As setas representam essas possibilidades de deriva e como estava indicado no verso do mapa: “the spontaneous turns of direction taken by a subject moving through these surroudings in disregard of the useful connections that ordinary govern his conduct”. O título do mapa, The Naked City, também escrito em letras vermelhas, foi tirado de um film noir americano homônimo (36). O seu subtítulo, illustration de l’hypothèse des plaques tournantes, fazia alusão às placas giratórias (plaques tournantes) e manivelas ferroviárias responsáveis pela mudança de direção dos trens, que sem dúvida representavam as diferentes opções de caminhos a serem tomados nas derivas.
The Naked City tem nítida influência de alguns mapas do livro do sociólogo urbano Paul-Henry Chombart de Lauwe Paris et l’agglomération parisienne, de 1952, que também foi citado nas páginas da IS, principalmente na Théorie de la dérive. Um diagrama desse livro de Lauwe também figura na IS, ilustrando o comentário sobre a deriva de Rumney em Veneza: um interessante mapa de Paris com o traçado de todos os trajetos realizados em um ano por uma estudante, que se concentram no bairro em que ela morava, nos percursos básicos entre a sua casa, a universidade e o local de suas aulas de piano. Chombart de Lauwe, muito influenciado pela Escola de Chicago e principalmente por Ernest Burgess, foi claramente uma influência forte, como Lefebvre, no pensamento urbano situacionista. Talvez, ao contrário de Lefebvre, a influência de Chombart de Lauwe não tenha sido propriamente teórica, mas sim mais ligada às questões de método – que são completamente desviados, detournés, pelos situacionistas – e sobretudo a uma fascinação comum, mesmo que com usos totalmente distintos, por mapas e fotografias urbanas aéreas (37).
Numa das páginas da IS, ilustrando o texto L’urbanisme unitaire à la fin des années 50, estão colocados, lado a lado, uma foto aérea de Amsterdã, com o título Une zone expérimentale pour la dérive. Le centre d’Amsterdam, qui sera systématiquement exploré par les équipes situationnistes en Avril-Mai 1960 e uma Carte du pays de Tendre de 1656. Esse mapa de Madeleine Scudéry é uma metáfora de uma viagem no espaço geográfico imaginário que traçaria diversas possibilidades de histórias de amor e romances variados. Os nomes dos lugares estavam relacionados a diferentes sentimentos e marcavam momentos significativos e emocionantes. Este foi o mapa inspirador do Le guide psychogéographique de Paris, discours sur les passions de l’amour. Os mapas situacionistas, psicogeográficos, realizados em função de derivas reais, eram tão imaginários e subjetivos quanto a Carte du pays de Tendre; eles simplesmente ilustravam uma nova maneira de apreender o espaço urbano através da experiência afetiva desses espaços. Esses mapas, experimentais e rudimentares, desprezavam os parâmetros técnicos habituais pois estes não levam em consideração aspectos sentimentais, psicológicos ou intuitivos, e que muitas vezes caracterizam muito mais um determinado espaço do que os simples aspectos meramente físicos, formais, topográficos ou geográficos.
“A confecção de mapas psicogeográficos e até simulações, como a equação – mal fundada ou completamente arbitrária – estabelecida entre duas representações topográficas, podem ajudar a esclarecer certos deslocamentos de aspecto não gratuito mas totalmente insubmisso às solicitações habituais. As solicitações dessa série costumam ser catalogadas sob o termo de turismo, droga popular tão repugnante quanto o esporte ou as vendas a crédito. Há pouco tempo, um amigo meu percorreu a região de Hartz, na Alemanha, usando um mapa da cidade de Londres e seguindo-lhe cegamente todas as indicações. Essa espécie de jogo é um mero começo diante do que será a construção integral da arquitetura e do urbanismo, construção cujo poder será um dia conferido a todos” (38).
O pensamento urbano situacionista, e principalmente sua crítica ao urbanismo enquanto disciplina, poderia ser visto hoje, pelo próprio “campo” do urbanismo, como um convite à reflexão, à auto-crítica e ao debate. Um apelo contra a espetacularização das cidades e um manifesto pela participação efetiva – não somente para parecer “politicamente correto” como vem ocorrendo – por uma participação real da população nas decisões urbanas. Os textos situacionistas sobre a cidade (cf. Apologia da Deriva) ainda podem ser vistos, dentro da inércia teórico-especulativa atual, como uma proposta para se pensar agora, em conjunto com todos os atores sociais urbanos contemporâneos, sobre o futuro das cidades existentes e a construção das novas cidades do futuro.
notas
sobre o autor
Arquiteta e Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora CNPq. Autora de Les favelas de Rio (Paris, l'Harmattan, 2001); Estética da Ginga (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001); Esthetique des favelas (Paris, l'Harmattan, 2003); co-autora de Maré, vida na favela (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002) e organizadora de Apologia da Deriva (Rio de Janeiro, Casa da Palavra)