"O botão que se desprende nos consterna, acima de tudo, por ser uma folha morta que cai..."
Ramón Gómes de la Serna
Neste domingo, depois de uma ameaça de tempestade, com o clima mais ameno, a mendigada acampou ao redor de um mercado francês que fica aqui pelos arredores. Como cães em jejum, dispersos por lá, analisam o perfil das donas de casa e dos capachos que sempre as acompanham. Quando entendem que a coisa é favorável, se aproximam com aqueles argumentos proto cristãos tentando arrancar alguma migalha para sobreviver. E são milhares. Uns já estão se preparando para amanhã, no dia de Cosme & Damião, sair por aí recolhendo doçuras e todo tipo de porcarias para alimentar as cáries e a diabete.
O Mendigo K, que é mais mala de todos, sempre se diz indignado com esse costume estúpido, herdado dos árabes e trazido pelos portugueses, de entupir as crianças com doces, o que, pode-se dizer, é uma maneira de fabricar adultos diabéticos... E os doutores sanitaristas?"- Se Pergunta -. Não dizem nada! Ficam em silêncio! Aliás, os tais santos Cosme e Damião, também eram médicos... - Esperou uns instantes e passou a falar dos ovos: o mesmo silêncio se vê com relação aos ovos. Pela crise da carne, está todo mundo comendo meia dúzia de ovos por dia. Como vão ficar as artérias dessa gente? E os médicos não dizem nada... Que cumplicidade e que silêncio é esse? E os sanitaristas de plantão?
Enquanto ele falava, veio ter conosco um outro mendigo, já caindo aos pedaços, que diz ter vindo a pé de Manaus há uns 15 anos. Segundo seus colegas, já esteve várias vezes internado por aí e não para de falar de sua cidade natal, dos seringais e principalmente do Teatro Amazonas. Diz que seu avô e seu pai trabalharam na construção daquela maravilha, inaugurada em 1896, com a apresentação de La Gioconda, de Ponchielli. E jura que, bêbado, já dormiu lá dentro várias vezes. Que ficava ao mesmo tempo assustado e fascinado ao acordar na ribalta e ver-se no meio daquelas decorações do pintor italiano Caparanesi... Mas que o que mais o emocionava e orgulhava, era ver a cortina que separava a platéia do palco... Um cortinão imenso e grosso, trazido dos arredores de Paris, onde estava representado o encontro das águas do Rio Negro com as do rio Solimões... Que resolveu tornar-se andarilho depois de ouvir, naquela palco, uma mulher estrangeira cantando Luzes da Ribalta...
Os outros mendigos faziam bullying e riam dele acusando-o de estar blefando. Que nunca havia nem sequer visto o teatro por fora e muito menos entrado nele. Que o que dizia, havia lido em duas ou três páginas de um livro do Thiago de Mello...
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