sábado, 10 de julho de 2021

O Mendigo K e o Vademecum dos vagabundos...


Mesmo enclausurados, um sábado é sempre um sábado! 

O Mendigo K apareceu no mercadinho da esquina e como é mortalmente contra o trabalho, ironizava os quatro entregadores de mercadorias que, abatidos, descarregavam sacos, caixas, pedaços de animais, ovos e barris de vinho de um caminhão. Com ar burlesco cochichou-me uma frase de Marx: "Eles o fazem, mas não o sabem!" E o dizia com um duro escárnio. Pensei naquilo que diria G. Minois: 'se verdadeiramente nada tem sentido, o escárnio não seria a única atitude razoável?'

Ainda com escárnio, foi dizendo: estes dois anos de confinamento farão despertar o vagabundo latente e original que há dentro de cada um e, quando o vírus for embora, ninguém mais quererá saber de voltar ao trabalho... de trabalhar... Dois anos em casa, coçando o saco ou a vulva, são mais do que suficientes para descobrir que o trabalho é uma psicopatologia... um horror... uma escravidão... um castigo...

Na minha juventude - foi confessando - só me tornei fanático por Marx,  (o Marx jovem), quando entendi que no cerne de sua teoria socialista estava o projeto de abolir o trabalho. Veja bem, não era de melhorar as condições de trabalho, mas sim de abolir o trabalho! Passei alguns anos iludido por essa promessa, mas depois, quando tomei conhecimento das primeiras medidas de Lênin na URSS, decepcionei-me. Você deve saber que Lênin, aquele sujeito que gostava de dizer que quem não trabalha não come e que viveu anos com uma bala implantada no corpo (bala que lhe foi enviada pela pistola de uma militante anarquista), numa de suas primeiras encíclicas relacionadas ao capital e à "acumulação original", sugere a prisão dos vadios, dos vigaristas, dos ricos e dos operários que fugiam do trabalho... e até o fuzilamento de quem não tivesse uma carteira de trabalho assinada e fosse acusado de parasitismo... E era esse mesmo vigarista que (igual aos capitalistas e algumas seitas de hoje) prometia às massas que um dia, um belo dia, no porvir, os trabalhadores viveriam numa espécie de paraíso onde teriam até urinóis de ouro em baixo de suas camas... Truques e fetiches para garantir a escravidão 'voluntária' do rebanho... Puro esoterismo! Revolucionário, para mim, é aquele que anseia por passagens e por 'almoço grátis!'

Fez um breve silêncio. Em seu olhar se podia identificar 'essa intuição do nada, sobre a qual todos estamos suspensos'...  e com a lerdeza que lhe é peculiar, retirou da bolsa o livro de Robert Kurz: A honra perdida do trabalho.

Antes de despedir-nos, confidenciou-me que já está com umas 70 páginas escritas de um texto que chamará: Vademecum dos vagabundos...

O sol batia de cheio e quase amorosamente sobre o mundo... e as meninas clandestinas que habitam e fazem a vida nas minúsculas quitinetes ao lado de uma alfaiataria, apareciam preguiçosamente às janelas com ar de quem estava com as mucosas lubrificadas e de quem jamais pensou em glorificar qualquer outro tipo de atividade...







Um comentário:

  1. Quando eu conto com a maior cara de pau a minha vagabundagem, e meu desprezo pelo trabalho me olham como se eu fosse maluco.
    Mas como explicar à um escravo o apreço pela liberdade (se é que isso existe) ? -
    - Porque você não trabalha? não quer comprar nada? não quer casar e ter filhos? E quando você for velho?
    Aí por mais que você não precise trabalhar (no momento), não queira comprar nada, não queira casar e ter filhos, não se importa com a velhice mas sim com viver.
    Essa explicação não surte nenhum efeito...

    Viva a vagabundagem, vagabundo na China, vagabundo no Brasil e vagabundo no mundo!

    Manu Chao vagabundo e também incompreendido:
    https://brasil.elpais.com/cultura/2020-04-03/manu-chao-cronica-do-astro-que-virou-as-costas-ao-sistema.html

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