domingo, 18 de setembro de 2022

Penúltimo fragmento do Vade mecum da vagabundagem... ( um livro escrito sob o som de Cesária Évora, em breve nos semáforos...)




"Todo trabalho nesta sociedade é uma prostituição. Vender sua força de trabalho ou sua inteligência, não é a mesma coisa que vender seu corpo a um cliente?[1]


De ex caçadores de pintassilgos que iam em bandos nas excursões ao redor das Cataratas do Iguaçu, íamos agora ingerindo e semeando niilismo por todos os lados, inventando nosso laissez faire e nossa vida à deriva. No final da tarde, às vezes com a noite já feita, esperávamos na porta dos mercados ou das fábricas uma ou outra menina de nossa idade, que já trabalhava, e a acompanhávamos de mãos dadas, até sua casa, (quase sempre uma senzala) na periferia. Eram meninas quase analfabetas, singelas, filhas de proletários fodidos, adestradas para o casamento, com nomes de santas, que trabalhavam em manufaturas,[2] como balconistas em grandes armazéns ou em pequenos armarinhos, para melhorar os rendimentos familiares. Antes de tirarem o uniforme e deixarem o local de trabalho, trocavam as roupas íntimas, ajeitavam os cabelos e os lábios diante de um pequeno espelho, limpavam o nariz e vinham ao nosso encontro iludidas, - esperançosas de um casamento ou, pelo menos, de uma mancebia -, tímidas, em roupas pobres, mas sensuais e viciadas no consentimento, fingiam acreditar em tudo que lhes dizíamos. Quando víamos aquele ‘exército' de trabalhadoras saindo pelos portões ao mesmo tempo, não conseguíamos reprimir um sentimento feroz e um aperto no peito. Era melancólico! Escravas! Seus olhinhos refletiam a servidão e o medo de morrer de fome. Algumas já faziam uso de tranquilizantes. Febres, gripes, corrimentos, princípio de úlceras, alergias, fibromialgia... E o que era mais decepcionante era perceber que, num gesto ou em outro, aquelas inofensivas operárias, sob a égide do suor, pareciam querer imitar as mulheres dos patrões ou as atrizes de novelas. Havia algo de muito pobre, tóxico, doentio e de infantil nelas. Uma espécie de imbecilização proveniente dos programas de entretenimento... Algo como uma singeleza e uma simplicidade voluntária! Os corpos já marcados pela obediência e pela insalubridade. (Como diria M. Perrot: Les corps au travail est um corps menacé).  Casar, nos previnia o Werner, era uma espécie de suicídio! Jogar a própria vida no lixo! Aquilo nos dava ainda mais consciência de quanto a sociedade era fraudulenta e pensávamos na fábrica de roupas Triangle Shirtwaist, que lá em Nova Iorque, décadas antes, havia pegado fogo e queimado uma centena de mulheres.[3] Nossos gestos iniciáticos eram romanticamente lamentáveis. Cheios de eufemismos, nos dávamos as mãos e íamos em silêncio pelas ruas solitárias, duas misérias de mãos dadas, mergulhados em nosso amor furtivo. Eram umas pobres e mini proletárias que repetiam conosco tudo o que viam e ouviam de suas mães miseráveis e bordelines, fazendo com seus pais, autênticos burros de carga. Sentíamos que, do nada, precisavam vingar-se de alguma coisa e, o pior, em nós, como se fossemos seus pais, patrões ou irmãos. Como se em vidas passadas as tivéssemos estuprado, escravizado e desqualificado. Acorrentadas a um passado sem redenção! E quando percebiam que estávamos de pau duro, ficavam transtornadas. Pareciam querer saltar pela janela. Não sabiam o que fazer. Uma pantomima mais do que cruel e histérica. Fomos desenvolvendo um ódio mortal pela doutrina do meio-termo. Mas ainda éramos um poço de ignorância, não tínhamos uma visão aprofundada de nada, éramos aprendizes de aprendizes de cozinheiros dos feiticeiros... e seguíamos até rindo dos meandros de nossa condição e do nosso percurso. Mas, é verdade, as tínhamos idealizadas! De vez em quando, alguém de nossas famílias nos lembrava do conselho que uma velha cortesã veneziana havia dado a Rousseau: “lascia le donne e studia matemática!”[4] O que se poderia fazer e falar? O ônibus ia rasgando a monotonia da hora. Num ou em outro semáforo entravam os soldados em busca de algum ‘subversivo’. Ela apertava minha mão e com deboche, cochichava em meu ouvido: Miragens patrióticas! Eis aí os gatunos fardados! Cabeludo! Mãos para cima! Estudante de sociologia?! Comunista! De vez em quando desapareciam com um universitário quase de nossa idade. E os barnabés de todas as categorias não diziam nada. Compactuavam com aqueles psicopatas. Prisioneiros de seus trabalhos, contentavam-se em passar a vida amaldiçoando o capitalismo, a burguesia, o imperialismo e os patrões, mas sem resultado prático algum. Tinham fé na CLT como os beatos tinham na bíblia e no catecismo romano. Acreditavam que ela os protegia e que poderia vir a libertá-los um dia. E seguiam trabalhando dez ou doze horas diárias para ganhar uma miséria. Era difícil entender por que não se rebelavam... Difícil ver que continuavam como ovelhas dando continuidade àquele circo de horrores, quando poderiam, em uma única noite, com um único isqueiro, resolver definitivamente a questão...

Havia ditaduras e turbulências em vários lugares do mundo. Uma mais vil do que a outra, e todas relacionadas a dinheiro, trabalho, capital, poder e à cabeça dos subalternos... O massacre de Sabra e Chalita, num acampamento de refugiados em Beirute, era comentado com espanto por todos os lados. O fato dos judeus e dos árabes não conseguirem interromper uma briga iniciada há séculos, ainda nos tempos de Pilatos, nos parecia uma prova de que a espécie era cretina e não valia grande coisa. Todo mundo analisava, explicava, justificava, escrevia em defesa de um bando ou do outro, enxugavam o sangue, cada um com seu sudário, cantavam hosanas, cada um a seu Deus, e tudo ficava por isso mesmo. De um sujeito meio árabe e meio francês, se ouviu a frase: chacun de nous a une blessure secrète dans laquelle il se réfugie. Parole! Parole! Parole! O mundo estava intoxicado de palavras. 

Algumas vezes fazia frio, e antes de despedir-nos, nos jardins ou junto ao portão de suas casas, sempre precárias, nos masturbávamos furtivamente por debaixo de nossos casacões vagabundos, mesmo sabendo que por detrás das cortinas alguém de sua família, empenhado em casá-la, a esperava e nos vigiava… Apesar de ignorantes, intuíamos que aquele ritual tinha algo de escatológico. Dois adolescentes tacanhos, no meio da noite, às vezes até com a geada cobrindo o buquê azul das hortênsias, escravos de nossa adolescência, fodidos econômica e socialmente, ali, no meio do frio, se bolinando, escravos, além de tudo, de nosso egoísmo e de nossos hormônios! Quê miséria era aquela? E, o pior, é que aquele gozo nos enchia de alegria, de segurança e de ilusões… Seria aquilo o egoísmo dos genes? Havíamos ouvido dizer que, segundo Beckett, “les femmes flairent un phallus en l’air à plus de dix kilomètres et se demanden, Comment a-t-il pu me voir celui-là?” A noite! O frio! O tesão! Quando a mão deslizando por entre elásticos, botões, tecidos, chegava lá, entre as pernas, e descia por sobre aquela penugem, até tocar aquela greta entre duas colinas, sob uma folha de figueira, que se umedecia, aquilo tinha sobre mim um efeito transcendente, como se estivesse levando um choque, recebendo na veia uma poção poderosa de ópio. Alienação! Era, posso dizer, um sentimento e um experimento misterioso e quase místico que reduzia momentaneamente meus níveis de consciência. A xota! O ópio do povo! Sim, o ópio do povo não era a religião, como havia dito Marx, e nem o trabalho, como pensávamos, o ópio era a xota.[5] Misteriosamente, delas, nunca ouvíamos nada. Se gostavam, se não gostavam... Isso era para nós um mistério! Confusas entre tesão, religião e misticismo, ficavam quietinhas, se deixavam penetrar quase como múmias e, no máximo, deixavam escapar uns gemidos quase de dor ou de remorso, como se estivessem sempre pensando no pai, no inferno, no trabalho de amanhã, em suas marmitas e até querendo culpabilizar-nos. Naturalmente, era a repressão sexual, o veneno religioso. A voz interior de uma avó fdp que alertava: cuidado para não virem a ser umas putas. Dediquem-se a trabalhar! Uma mulher só é mulher, se trabalha! Independente desse silêncio e dessa frustração, nós gozávamos. Era o máximo! Uma maravilha! E a embriaguez  daquele gozo se estendia por dois ou três dias, até por semanas… Quando então, nos víamos novamente à porta da fábrica lá pelas 6 da tarde…como mendigos, escravos do desejo, à espera, enquanto o por do sol se refletia no telhado de vidro do alpendre. Com frequência ouvíamos um zé mané qualquer (patrão ou operário) recitando a frase mais cabotina daqueles tempos: o sol brilha para todos! (Abelhas domésticas voejavam a flor das mesquinharias e das imundices! - Diria Fialho d'Almeida).

E o mundo erótico – completava um cigano – é tão redondo como o mundo real: sempre nos afastamos para encontrar-nos, de alguma maneira e recomeçar.[6] E foi naquele período em que começamos, como todo mundo, a atuar a comédia do amor. Eu te amo! Eu também! Puro teatro! Nem sabíamos o que estávamos dizendo mas, havíamos aprendido, sabe-se lá de quem, que aquilo era um protocolo indispensável.

A ilusão da CLT! A abnegação! A escravidão disfarçada! A máquina social, os impostos, as correntes, as neuroses impostas pelo mercado financeiro e as ilusorias promessas de um grandioso porvir, propaladas diariamente pelos trapaceiros de turno. E as universidades e as escolas em geral (essas filiais das sacristias) sutilmente, adestrando adolescentes para a obediência e para a escravidão disfarçada... Sair da universidade direto para uma empresa, para uma fábrica ou para uma indústria era a gloria máxima! Trapaças de ponta a ponta! Era a sociedade, as velhas e os velhos customizados, crentes de que o trabalho, ao invés de uma fábrica de loucos, poderia vir-a-ser também uma espécie de gerador de dignidade... (!!!)

As geadas, os cafezais, o ouro, a guerra, as leis, a ditadura, o Milagre Brasileiro, as penitenciárias, as drogas, a cleptocracia e as políticas sociais para manter sempre disponível a tal “mão de obra” e o tal exército de reserva... (Na bolsa, sempre um livro de Knut Hamsun). Os ruídos no interior daqueles imensos barracões, os gemidos do lumpemproletariado, o vai-e-vem de empregados, mudos, passivos, marginalizados (síndrome de Bartleby), as vozes dos superiores abafando as dos subalternos… Líamos com repulsa esta frase de um personagem de Górki: O homem deve trabalhar e viver resignado! E como contraponto, quase como uma oração, resmungávamos a frase de Horkheimer, que alguém nos havia dito que estaria lá em seu livro Crítica da razão instrumental:

"A fábrica é o protótipo da existência humana. As pessoas, as mercadorias e as coisas são todas colocadas na mesma esteira e vão para os mesmos depósitos, de onde são distribuídas para o consumo…"

Nos compadecíamos delas, dos trabalhadores, da escravidão contemporânea e de nós mesmos e esperávamos ao redor das fábricas como cães ao redor dos açougues... Próximo a um dos portões por onde as operárias saiam, todas as tardes, ficava um homem ainda jovem, com tipo de cigano, que estava sempre com uma garrafa de conhaque e com  seu acordeão, tocando músicas antigas, de filmes. E parecia ter uma relação ébria e quase religiosa com aquele instrumento. Gostávamos imensamente de ouvir as canções que tocava. Se Fialho de Almeida o visse – me alertava uma das operárias -, seguramente murmuraria: como é possível que sobreviva nesse plebeu alcoólico, a mais aristocrática alma que a música tem soltado das misérias da carne...




[1]Declaração de uma operária francesa, no Libération, 1976. Citado por Chassagne e Montracher, idem, p.22

[2] Manufaturas = fazer com as mãos.

[3]  Foi no dia 8 de março de 1911 e morreram 120 mulheres queimadas. As portas de saída estavam bloqueadas. O acidente escancarou as péssimas condições de trabalho e a insalubridade a que aquelas mulheres estavam submetidas, obrigadas a trabalhar até 14 horas diárias, por um salário de merda.

[4] Pitigrilli, idem, p. 54.

[5] E não adiantava um ou outro professor, um ou outro velho desiludido qualquer querer nos prevenir de que o sexo era um engano mortal, mais ou menos como o Cavalo de Tróia, e que o gozo era uma espécie de relincho para alerta-nos. A lição de moral era inócua e vexatória! Já era tarde. Éramos adictos aos relinchos! Cavalo de Tróia? Fomos em busca de Homero. Aquela chatice grega se parecia à chatice dos Lusíadas... Mais tarde a achamos parecida também com a chatice do Bhagavad Gita e de outras bobagens épicas. Quem não consegue dizer o que sente em menos de trinta páginas é um charlatão.

[6] Kanfer, Stefan, p. 178. [7] 

  

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