sábado, 24 de setembro de 2022

BARULHO: O liquidificador e a gênese dos transtornos mentais das donas de casa...


"Não digas: que silêncio! Digas: eu não ouço nada!"

(Lição de um mestre à sua Lolita)


Acabo de comprar um liquidificador novo. Novíssimo! Vermelho! Com dez velocidades! Com um copo de vidro parecido com aqueles que se fabrica lá em Murano e em outras ilhas venezianas. A vendedora jurou-me que era uma peça futurista e o que existia de mais avançado no mundo. Quase um símbolo do Iluminismo! E mais: que havia nela o selo do inmetro, dando garantias de que a quantidade de barulho estava dentro do que é preconizado pela pós modernidade, pelos vivaldinos da OMS e pelas máfias do Comércio. Tudo mentira. Até os surdos que passeavam nos jardins lá em baixo, voltaram a cabeça em direção às minhas janelas. Bem mais do que 80 db! O que estariam fazendo os burocratas da saúde pública? Os copos, usados e esquecidos na pia, entraram em convulsão e a própria pia tremulava como se eu tivesse ligado um terremoto de 6,4 graus Richter. Inacreditável! Imaginem como deve ficar o Sistema Nervoso Central das velhinhas e das donas de casa que, todas as manhãs e todas as tardes, e às vezes até de madrugada (em sua servidão contemporânea) devem preparar um suquinho ou uma sopinha para os filhos e para o cafetão de plantão...

Só não o destruí com a marreta que sempre tenho ao alcance da mão, porque pensei nos quase 100 euros que havia transferido para a conta daqueles  mercenários. 

Sem lembrar que hoje é sábado, liguei para a fábrica. Silêncio! Liguei para um número que estava na bolsa e fui atendido por uma dessas mocinhas robôs: 

Obrigado por ligar! Disque 1 se é para falar sobre seu liquidificador... 

Fiz um discurso! Esbravejei que não era um idiota e nem surdo! Amaldiçoei os fabricantes. Recitei-lhe duas ou três teses de Bakunin e de Marx sobre as mercadorias inúteis, sobre a alienação, e sobre a cumplicidade dos operários na fabricação dessas e de uma infinidade de outras merdas. Ameacei criminalizar todo e qualquer tipo de propaganda. Coloquei a sociedade internacional de surdos na linha, falei de  labirintite  e de tampões. Da vida confinada em apartamentos de 28 metros quadrados! De uma dona de casa que botou fogo em seu barraco depois de ouvir por três minutos o ruído de seu liquidificador. Mencionei o Papa argentino e sua predileção por tangos e pelo silêncio naquelas alcovas sagradas. Falei sobre silêncio dos mestres Zen. Sobre a superlotação dos hospícios! Da imbecilidade generalizada. Dos malefícios irreversíveis do barulho sobre a libido da humanidade... Os vizinhos vieram bater à minha porta para saber se eu havia esquecido uma britadeira ligada. E tudo isso na velocidade 2. Havia outras 8 velocidades. Liguei para o INMETRO. (Silêncio). Liguei para a meu amigo psiquiatra e para um neurologista que estava trocando figurinhas ali na banca do Brito e os dois concordaram que, se se pretende evitar a loucura precoce, antes de ligar um liquidificador é recomendado tomar 14 gotinhas de Rivotril...

A  moça, no outro lado da linha, se derretia em gentilezas. Encostei o telefone no dito cujo e passei para a velocidade 8. Que horror! resmungou cheia de sensualidade. Pensei automaticamente na Cicciolina...

Voltei à loja para trocar aquela merda e pensando em protagonizar uma Ação Direta... mas, no caminho, lembrei: hoje é sábado... e fui ouvindo uma milonga, que fez meus instintos voltarem à normalidade. Afinal, tratava-se apenas de um liquidificador. E depois - raciocinei -, segundo Bauman, até o amor é liquido!!! 

Na loja, (não confundir com igreja maçônica) enquanto a trupe de vendedores inventava duas ou três mentiras para defender seus patrões e para ludibriar-me, eu ia perguntando para meus fantasmas: O que é um ladrão? E eles me respondiam em uma só voz: um comerciante no escuro!

Na esquina, um grupo de balzaquianas que haviam ficado fixadas nos anos 70, apoiadas por dois violonistas e um pandeiro, cantavam eufóricas, aquela conhecida homenagem à Era de Aquarius... (que virá depois do ano 2600!!!)






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