segunda-feira, 11 de abril de 2022

Outro fragmento do Vademecum dos maus funcionários... (Um texto sagrado da vadiagem!) No prelo.

 O futuro ginecologista que, às vezes, respondia pelo apelido de Akaki (uma referência ao  personagem de Gorki e ao casaco que usava) silenciava por uns instantes, tempo suficiente para reprimir uma pueril emoção e nos prevenia: Isto não é literatura, é verdade. Quê sinais deveriam identificar em mim? E que lembranças persecutórias deveriam trazer de seus ancestrais e de suas histórias pessoais? Só sabia deles que haviam atravessado o Atlântico jogados nos porões de precárias caravelas, trinta dias rezando ou ouvindo, além do murmúrio das ondas, as mesmas músicas de um mísero realejo. Na manivela uma velhinha magra e sorridente. Ela própria, em sua terra natal, construía aqueles instrumentos e confeccionava aqueles rolos de papel furado, suas exóticas partituras e aqueles feixes de flautas[1].

 Desse jeito, vai acabar sendo sapateiro! Essa ameaça paterna voltava a atormentar-nos e sempre no auge de nossa vagabundagem.

Um padre amigo da dona da pensão aparecia por lá de vez em quando, com sua postura andrógena e de deprimido, com as unhas roídas. Era um pobre personagem que causava piedade em qualquer um, até nos ateus, e que ninguém sabia se por debaixo daqueles arreios havia um homem ou uma mulher. Enquanto a velha fazia ruídos estranhos no banheiro, ele acomodava-se num sofá da sala e ia lendo um livreto publicado em 1854, em Roma: Venere ed Imene (Manuale dei confessori). Para nós, era a personificação da decadência e da melancolia.

 E a preguiça, para aqueles imigrantes cristãos, (quase todo o clero e derivados era descendente e de italianos) era considerada um pecado. Tanto é que Dante, aquele pároco disfarçado, reservou para os preguiçosos um lugar no IV Círculo do Purgatório, ao lado dos iracundos, no III Círculo e dos avaros e pródigos, no V.[2] Mas para outros, como diria Alphonse Allais, “o preguiçoso é o homem que não finge que trabalha". E nesse particular, admirávamos cada vez mais aos mendigos que estavam todos os dias lá, na mais descarada vagabundagem. Eram os avatares de miséria concreta. Haviam precocemente entendido que a luta pela sobrevivência desqualificava a vida. Radicalizaram! Temiam e detestavam o trabalho e o demonstravam, na prática! Como não desejavam possuir nada – diria mais tarde Cioran – cultivavam seu desprendimento, que era a condição principal de sua liberdade…

E a vida, continuava salpicada de incógnitas. Seguíamos fingindo estudar, mas com a mente sempre voltada para o Gogó da Ema e para o Cracóvia, duas casas noturnas, não necessariamente puteiros, que ficavam no caminho de nossa pensão e que atormentavam nosso imaginário… De vez em quando entrávamos lá, tímidos e excitados. A recepcionista, uma mulher simpática e luterana de uns 40 anos, já nos conhecia e gostava de chamar-nos de guris.

E então guris, chegou a mesada?

Riamos mais intimidados ainda por estarmos torrando o dinheiro de nossos pais com putas.

Hoje, - seguia ela – só a Gisele e a Ingrid estão trabalhando. Qual vocês preferem?

 Estão trabalhando! Aquela frase interferia em minha ereção. Em seguida a Ingrid aparecia sorridente, infantil e sutilmente hebefrênica por detrás de uma cortina avermelhada. Havia chegado há menos de um ano, vinda de uma comunidade de imigrantes alemães. Também era luterana, mas trazia no pescoço a medalha de uma santa católica. Panteísta! Não se diferenciava em nada de minhas colegas de colégio, das operárias das fábricas e do rebanho de adolescentes que ficava em fila no restaurante estudantil. O estigma que pesava sobre elas era falso e cruel. Sobre uma cama estreita e improvisada, aquele corpo ainda com pentelhos escassos, lembrava os afrescos no teto da Capela Sistina. O corpo feminino era o ópio do povo! Sobre a mochila escolar, pendurada num braço da cama, estavam dois livros de Gibran Kalil, O Louco e O vagabundo. Mesmo já tendo efetuado o pagamento à cafetina luterana, antes de sair do quarto dividia com ela o dinheiro que havia reservado para a comida da semana. Esse gesto, percebia depois, era não apenas de um cristão romântico e babaca, de um Filho Pródigo, mas de um verdadeiro otário. Lembro de ter ouvido de uma daquelas pequenas cortesãs esta frase mais profunda do que todas as filosofias posteriores: Bazzo, no amor, se não quer decepcionar-se, apaixone-se sempre por uma ou até mesmo por várias pedras!

Um caminhão de boias-frias atravessa perigosamente o cruzamento. Muitos daqueles trabalhadores da agricultura, descalços, com artrose nas mãos, o nariz escorrendo, com a enxada ou a foice em punho, se comparados aos mendigos não passavam de uns palhaços da fatalidade, que gostavam de recitar o Rerum Novarum de 1891, do Papa Leão XIII (o Papa dos operários): “O homem, - dizia - mesmo no estado de inocência, não era destinado a viver na ociosidade…” E quem já entrou num mosteiro católico deve ter visto por lá uma tabuleta com a seguinte inscrição: Ora et labora! Que o trabalho é a chance de passar do temporal para o eterno. Nos templos budistas ou Xintoístas de Bangkok ou de Katmandu se encontravam tabuletas semelhantes. Quase a mesma coisa que decretaram Marx e Marcuse: O trabalho como expressão real da liberdade. E lá na antiga Grécia, dizem que São Paulo, dirigindo-se aos vagabundos de Tessalonic ordenava: "procurai viver com serenidade, trabalhando com vossas mãos. É assim que vivereis honrosamente em presença dos de fora e que não series pesados a ninguém." Praticamente a mesma pregação que o judeu Marx, viria a fazer mais tarde: “O trabalho desempenha um papel fundamental na constituição do ser humano. É através dele que os seres humanos se diferenciam dos animais". Tudo igual! Como se por detrás de tudo houvesse uma confraria de sanguessugas, de trapaceiros e de mercenários… uma queimação de incenso ao patronato. Quanto menos pensar, melhor será o trabalhador. Eis aí o mantra dos empregadores. E a tosse indicando uma tuberculose vinha dos andaimes do prédio vizinho. Empregos para pobres! O álcool. As fábricas de álcool auxiliavam os patrões. Finais de semana bêbados! O que poderiam querer mais os exércitos de trabalhadores? E mistificavam a embriaguez.[3] Parecia-lhes até o máximo de liberdade. Ah, se fosse possível ir trabalhar com uma garrafa no bolso! Acelerava a morte. O que anseia um trabalhador da linha de produção, (enfiado naqueles uniformes de idiotas e sabendo que todo apelo à produtividade é um apelo à escravidão, seja de sapatos ou de automóveis), além de apressar o seu fim? Greves! Retratos da miséria dos trabalhadores. No famoso Maio de 68, não só em Paris, mas pelo mundo a fora, estudantes como nós e operários denunciavam a ditadura do trabalho produtivo e o trabalho estereotipado como a fonte dos piores males, como uma fonte do medo, do estresse, da alienação e do desastre pessoal, engendrado e mantido pelas elites para, entre outras coisas, garantir a manutenção da ordem. Mas tudo ia ficando apenas na retórica e na performance literária. Sejamos realistas, exijamos o impossível! Esta frase, escrita nos murros de Paris nos emocionava. Mas, o que seria o impossível? Os mais niilistas respondiam: não ter nascido! (páginas 29, 30, 31)



[1]Foi uma neta dessa senhora que, já quase demente, contava agora a um de seus bisnetos a história dos sirgadores do Volga lá na Rússia imperial. Aqueles escravos que amarrados em arreios de couro tinham a função de rebocar barcos contra a correnteza. Segundo ela, esse trabalho desumano e de bestas, foi documentado numa tela do pintor russo Ilia Repin. E ela fazia o relato com uma certa emoção, principalmente quando descrevia as vezes em que navegou pelo Volga, desde sua nascente no planalto de Valdai até sua desembocadura no Mar Cáspio. Ia tocando seu realejo nas embarcações e nos vilarejos ao longo do rio para sobreviver. Ficava indignada com as cantorias dos sirgadores, aqueles escravos que enquanto puxavam as embarcações como animais, iam cantarolando para amenizar o sofrimento:

Caminamos junto a las barcazas/cantamos al sol nuestra canción/

Ai-sí, sí, ai-sí/Ai-sí, sí, ai-sí/cantamos al sol nuestra canción.
Hey, ¡tirad!
Hey, ¡tirad!
¡Una vez más, y otra vez!
Hey, ¡tirad!
Hey, ¡tirad!
¡Una vez más, y otra vez!

Quando percebia o interesse de seu bisneto, passava de Ilia Repin para outra pintura monumental que também denunciava o horror do trabalho, Os britadores de pedra, do realista francês, Courbet (1819-1877). Essa obra, observava, foi destruída pelos bombardeios sobre Dresden, na Segunda Guerra Mundial. O mais fascinante de suas histórias eram os relatos que fazia dos Cossacos, aqueles grupos nômades que viviam em tendas à beira do Volga. Gente que gostava de dançar, que se negava a fazer o serviço militar, a pagar impostos e a trabalhar como escravos... (Queríamos ser como os cossacos!)

[2]Bem mais tarde, já adulto, entendi que os conceitos que havia recebido na comunidade onde cresci, sobre o inferno, o paraíso e o purgatório, haviam sido retirados simploriamente da obra desse poeta italiano e de sua obra maior: A Divina Comédia. A farsa não poderia ser mais lírica do que isso. Para chegar ao paraíso era necessário passar antes pelo inferno e pelo purgatório. Espiar uma culpa imaginária. Gênese do masoquismo universal.

[3] Quem é que não se lembra do texto de Baudelaire fazendo apologia da embriaguez? "É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do tempo que voz abate e vos faz perder para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis".


 

3 comentários:

  1. Ótimo texto. Que se foda o trabalho! E claro todas as religiões que defendem o mesmo...

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  2. Kkkkkkkkk vamos colocar o mundo de cabeça para bsixo!

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