segunda-feira, 25 de abril de 2022

Outro fragmento do Vade mecum da vadiagem (um capítulo extraviado dos evangelhos...)






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(...)  ... Quer fazer medicina para quê? (...) Quer fazer advocacia para que? (...) teologia para quê? 

Teologia? Ora! Só se fosse louco! Pensava nas visitas sazonais à zona. Aqui a resposta era mais fácil. Qualquer merda que dissesse servia. E dizia o que me vinha à cabeça: para compreender o voo das abelhas! Para dialogar com os fantasmas! Para saber por que os cães latem. Para traduzir a poesia de Tagore ou de T. S. Eliot. Para entender melhor as origens da demência…Para recitar Villon nas catedrais! Para reajustar as tonalidades do sol… para descobrir por que os ovos coagulam na frigideira. E enquanto ele ouvia minhas respostas “filosóficas” eu mantinha os olhos fixos em algum detalhe de seus óculos, a cor, o material, o grau: bifocal? Tri focal? E pensava na entrevista que tinha marcada para o outro dia numa farmácia. Vai a uma entrevista? Lembre-se, é necessário saber fazer lobby de si mesmo e vender-se. Pense nas putas. Na atuação das putas mais bem sucedidas no interior dos puteiros. Carmim, simpatia, muita simpatia e submissão não fazem mal a ninguém! E não esqueça: todo ofício tem seus malefícios! E na farmácia, ia pensando: os remédios! A fobia das pacientes! Fórmulas! Barbitúricos! 90% placebos! A letra indecifrável dos médicos! A ética! As bulas! (1) 'Eu sou um farmacêutico sem farmácia; e tu és a nota mundana da minha farmácia imaginária!' (Pitigrilli). Enquanto ele me olhava por detrás dos óculos... Eu viajava em fantasias farmacêuticas e em diagnósticos. As panaceias! O mundo como uma imensa enfermaria, como um hospital onde ninguém se salva. Na melhor das hipóteses adquire mais meia dúzia de bactérias, passa a ingerir medicamentos tóxicos e tem seu funeral adiado, cercado por meia dúzia de  negociantes de branco. As doenças inventadas e até criadas. Os males da iatrogenia clínica somados aos males da iatrogenia social. Uma moça só com três dedos, os efeitos da talidomida. Doenças inexistentes! A vida medicalizada! O Mercado negro da saúde! Remédios para combater a preguiça, já que, dizem, ela não é apenas um Pecado Capital, mas uma infâmia social! A iatrogenia médica! O médico é o único que pode matar impunemente. Ao lado do defunto, coloca a culpa no morto, nos equipamentos, nos colegas, nos remédios e até na fatalidade… E só não assopra um pífano, porque não tem o dom musical. Penso em Nêmesis Médica (a deusa grega da vingança) e nos progressos científicos em proveito da indústria e não dos sujeitos. O entrevistador me olha através daqueles óculos quase bizarros. Onde os teria comprado? As indústrias das lentes e das armações praticam e fomentam todo tipo de trapaças. Esconderia duas cataratas ou um glaucoma congênito? E a tal retinose pigmentar? Teria sido receitado por alguém ou comprado num Mercado chinês? Penso fugazmente nos dias alucinados em Hong Kong. A chinesa do hotel que havia fugido de Pequim e que perscrutava minha mala em minha ausência. Seus óculos eram quase como o fundo das garrafas de saquê. O que estaria buscando? Quais seriam suas fantasias? Seus avós haviam morrido nos campos de trabalho forçado do velho Mao? (2) E por quê se diz 'óculos', no plural? Alguém os teria trazido de uma viagem à Buenos Aires ou à Itália? Teria pertencido a seu avô? Quem introduziu seu uso no mundo? Então os olhos também tinham validade? Seria míope? Estaria me vendo como eu realmente era? E os nativos asiáticos que operavam míopes com estiletes de bambu? E as cataratas que, como o Alzheimer, simbolicamente são cortinas que pretendem poupar o sujeito das aberrações do mundo? Os médicos decidiram que elas são doenças e se apressam em querer arrancá-las. Ainda o encontraria cego e mendigando numa avenida poluída e envenenada pelos automóveis e pelos gritos dos pequenos comerciantes? Atravessando a rua conduzido por um samaritano qualquer? Lembro que vi o Borges tateando as paredes de uma livraria em Buenos Aires… Me ausentava intencionalmente. A entrevista. Que horror! E a Carta aos cegos, do Diderot? Sim, e o Borges? O bibliotecário argentino que não enxergava nada? Que ironia para com alguém que precisava ler. E os especialistas em iridologia? Fugia daquela situação esdrúxula, assimétrica e tirânica. Foda-se o porvir e a prosperidade! Acreditava que já havia em mim tudo o que existia de mais próspero: a resistência e a vagabundagem. O horror a todo e a qualquer tipo de servidão. Pensava em Marcuse e via por todos os lados gente que se esforçava por inventar e manter uma “força de trabalho feliz". E vagava pela cidade sem rumo, sem tempo e sem nenhum projeto a não ser o de vadiar, mas sempre atento à Lei que criminalizava a vadiagem. Havia sido o Getúlio, aquele baixinho de botas que a havia instituído. Sempre que passava por uma loja de sapatos pensava em Sacco e Vanzetti, os dois italianos que foram acusados de participarem de um assalto numa fábrica de sapatos nos EEUU e que foram condenados à morte. Também eles estariam tentando esquivar-se do trabalho? As prisões! A ideia imperativa de derrubar as prisões! Mas mesmo preparar um assalto deve dar muito trabalho, não é? E os mendigos iam chegando todas as manhãs, nos mesmos horários e nos mesmos lugares, embriagados pela acídia. Teatralizavam. Um ou outro pronunciava uma frase teatral de Brecht. Brecht? Quem era Brecht? A haviam ouvido do lado de fora do teatro. Do mesmo teatro onde, uma semana depois, mendigavam um bilhete para ver Ubu Rei e Esperando Godot… Mas, afinal, quem era Alfred Jarry e Samuel Beckett? (pp.71,72)



1. Foi meu segundo trabalho, os dois em farmácias. O primeiro, ainda adolescente, foi verdadeira e paradoxalmente uma iniciação prazerosa. Sentia-me bem dentro daquela ‘botica’, e do avental branco. Percebia que o sentimento do rebanho a meu respeito era quase como se eu fosse o ensaio de um feiticeiro ou de um sacerdote. Apesar de toda minha ignorância, simbolicamente era visto como quem curava. E lia em pé, lá no balcão, aquilo que foi minha primeira Enciclopédia: o Almanaque Biotônico Fontoura, idealizado por Monteiro Lobato. Acreditava piamente na ciência, nos elixires, nos xaropes, nos frascos lacrados e nas drágeas coloridas. Fui descobrindo que vários escritores também haviam sido balconistas de farmácias e passado por aquela iniciação, em pé, abusando da empatia e da compaixão. Montando fórmulas, homeopatias, relendo bulas, entrando na intimidade corporal das pessoas: Erico Veríssimo, aquele dos Lírios do Campo; Drummond de Andrade; Avelino Fóscolo; Manoel Lobato e mais tarde, o poeta Mario Quintana. Garcia Marquez, o dos 100 anos de solidão que herdou a farmácia do pai. (Ver: Literatura, história e farmáciaum diálogo possível,artigo de Irene Nogueira, 2015) E ali, no meio de vasos de louça azulada, seringas, esparadrapos, ampolas, pequenos tachos de bronze onde se preparavam as pomadas e se maceravam as raízes, lia a Revista O farmacêutico brasileiro, bancada pela Bayer (se é Bayer é bom!) e ia vendendo as mais variadas fórmulas mágicas, as mesmas misturas para sete ou oito doenças diferentes, e tomando consciência da dependência do país e dos médicos às multinacionais dos medicamentos. Magia! Pompas líricas! Os principais pós vinham da Alemanha, da Holanda e da Suíça (para não dizer da Amazônia). Serviriam para alguma coisa? Enquanto ia aviando uma ou outra receita, olhava o paciente aflito, alquebrado, assoando o nariz, secando uma lágrima, ou apertando as duas mãos sobre os rins e pensava na frase de Jean Cocteau: "É possível que esses infelizes passem toda a vida sem jamais acharem remédio. É possível também que o remédio que consigam descobrir, os mate”. A ilusão da luta contra os sintomas. Morria-se com ou sem remédios. Nas farmácias não há nada além de uma xaropada de simulacros para os presunçosos, dizia Cioran. Muitos doentes, inclusive, tinham uma espécie de paixão por suas doenças e por seus sintomas e não queriam livrar-se delas em hipótese nenhuma. Até iam ao médico e compravam os remédios recomendados, mas os jogavam fora. Curar-se? E com que preocupar-se depois? E o velhinho alquimista que misturava as pomadas e os pós num quartinho reservado, gostava de falar em filogenia e em ontogenia. Que porra era essa? Uma – explicava um professor, no outro dia - tratava da relação evolutiva entre grupos de organismos e a outra, da origem e do desenvolvimento de um organismo. O corpo! Os mistérios e as armadilhas do corpo! Os preços... os rótulos e a mistificação dos serviços de saúde. Muitos remédios, com fórmulas iguais, eram produzidos por fábricas distintas e levavam nomes e preços diferentes. Placebos superfaturados. Ilusões. Do pó ao pó e finalmente ao pó! O Cheiro forte do formol para embalsamamentos. A família do morto mora no outro lado do planeta. Quer ver o parente antes que seja enterrado. As funerárias oferecem o trabalho de embalsamamento. Aparam-lhe os bigodes e entopem-lhe as veias de formol. O horror da vida coroado pelo horror da morte. Os cheiros! A farmácia, essa usina do Pensamento mágico. Ver A farmácia de Platão (Derrida). A cura do incurável. Drogas injetáveis, drogas orais, vaginais, anais, dérmicas, oculares. Aparelhos de borracha e vidro para extrair leite de mulheres. Hormônios. Calmantes. Bulas, Excitantes. Pílulas para dormir e para acordar. Aquelas cápsulas de quinino que pareciam hóstias retorcidas. Tinturas para o cabelo e para os bigodes. E as unhas, objetos para cortar as unhas. Fungos. Qual seria o mistério das unhas? E o rabo? De vez em quando uma criança nascia com uma espécie de minúsculos rabos que logo eram amputados. Por que as unhas e o rabo, mesmo depois do iluminismo, continuam insistindo em crescer? Manchas amareladas de iodo nas unhas. A postura artificial de sacerdote, nos dias em que o delírio era maior pensava-se até em Hipócrates... em nigromancia. Aqueles que conhecem a origem dos males, podem mitigar as dores e diminuir o desespero da hora final... Quando aparecia o vagabundo colombiano por lá, e me via com aquele avental com o slogan da Bayer desenhado no bolso e numa postura de palhaço sóbrio, gostava de ironizar-me com outra citação de Vargas Vila: “Basta escrever livros, defender teorias, fundar sistemas, para que qualquer ajudante de farmácia venha um dia a diagnosticar vossa genialidade..." (IN: De sus lises y de sus rosas, vol, 17, p. 114)

 2. No dia em que mudei-me para um hotel mais vagabundo ainda, presenteou-me com o livrinho vermelho do Mao. Quotations from chairman Mao Tse-Tung. Um livreto de 569 páginas, com uma dezena de fotos do velho revolucionário, uma delas jogando ping-pong. Não lembro muita coisa dos dias em que estive por lá. Mudo, indo e vindo por aquele luxo artificial e por aquela Idade Media disfarçada atrás dos prédios gigantescos. Os gafanhotos em gaiolas. Os sapos, as serpentes, as meninas, com seus óculos espelhados e seus relógios falsificados que abriam as pernas por meia dúzia de dólares, mesmo na retaguarda do imenso e sagrado Templo. As luzes na rua do Templo dos mil Budas! O que diriam? Confucionistas. Elogios à embriaguez. O Mercado das flores, em pequenos arranjos ou em vasos da Dinastia Ming, pareciam olhar-me bem nos olhos. Uma alfaiataria quase no meio da rua, com o alfaiate cercado por dois pequenos cachorros. Os operários das pizzarias, jogando a massa de um lado para outro. Cheiros inesquecíveis. Os milionários no saguão dos hotéis. Garçons afeminados, quase como meninas. As máfias de gigolôs desfilando pela rua principal que não anotei o nome. As luminárias e as luzes vermelhas. O chá numa pequena bandeja onde estava estampada a trompa de um elefante. Os mendigos ruminando sobras. Ruelas misteriosas que acabavam no interior de prédios antigos. Uma família dormindo no interior de um riquixá. Uma borboleta imensa dando voltas ao redor de um pisca pisca e de um neon psicodélico. Aquela fala que, vinda de um beco ou de um bêbado, parece sempre estar nos ameaçando e nos acusando de algo. O livro de poemas IN QUEST de Cho En Lai, esquecido no balcão de uma peixaria. Abro-o ao azar, página 19. Leio (sem entender) o trecho sublinhado: "Co-existence with mutual benefit? The sweating of men alive? The indolence of line-in-death! E as lojas imensas sob um cartaz imenso da CANON. Lentes, tripés, detonadores. A câmera como fetiche. A religião da fotografia. E gente do mundo inteiro se acotovelando por lá. Um filtro, um diafragma, um detonador quase mágico. Fazer a melhor foto do mundo. Ser um novo Sebastião Salgado, um novo Cartier-Bresson, sem precisar fazer cumplicidade com o clero e nem com a academia. Confúcio! O capitalismo! Seria isto a Revolução cultural de Mao Tsé Tung? O barco para Macao. O cassino. As marcas dos lusitanos ainda por lá. E todo mundo trabalhando, nem que fosse só para encher as tripas. Ah! Se se pudesse cagar dinheiro!

5 comentários:

  1. Um vagabundo que lê muito e pensa demais! Ficção ou realidade?

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  2. Travei conversa com uma caixa de supermercado( meia dúzia de palavras). A mesma foi mandada embora em virtude disso. Motivo: o dono não permite que ninguém a não ser ele tenha a intenção do prazer sexual com a tal moça. Ela está ali exclusivamente para...trabalhar! Que fdp!

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  3. oh ezío mô quirido aqui é Mindigo Káká Kôkô Kéké Kiki Kuku, to indiginado com o mindigo de Celândio, o trono de mindigo popi é meu, e não dele, e agora o de celandia virou infruencer dijital, ezio... ah só dando com um gato morto nos córno... mas falando cério ezio, onde posso comprar este livro aí, sério, bota o link onde poderemos comprar.

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