sábado, 29 de setembro de 2012

Rascunho: Anões, ou da pequenez humana... [2]

...A história que  mais gostava de ouvir há uns 55 anos atrás, ao redor do fogão com os pinhões sapecando na chapa, os gatos ronronando em meu colo e a geada escorrendo silenciosa pelas forquilhas dos pessegueiros era a de uns tios implacáveis e justiceiros que nem cheguei a conhecer.  Muito antes de minha vinda ao mundo, meu avô materno teria sido uma espécie de delegado de polícia naquele "velho oeste" indomável e naqueles cafundós de solidão indescritível onde reinava por todos os lados a mais genuína das bandidagens. Numa certa madrugada - seguia a narrativa entre pinhões e ronronares de gatos - dois homens a cavalo bateram à porta de nossa casa - uma daquelas casas de arquitetura colonial tirolesa, azul, com rendas nas janelas, um galo no chaminé, com porão e sótão onde ficavam os queijos, os salames e as cervejas feitas em casa - e quando meu pai, o "homem da lei" destravou a janela os dois forasteiros o crivaram de balas... Era madrugada. O relinchar dos cavalos... o sangue e os gritos... a luz precária das lamparinas... O cheiro da pólvora... Mas não foram muito longe. Meus irmãos foram ao encalço deles, cada um com uma carabina italiana e, no mesmo dia, apenas algumas horas depois, lhes deram um destino semelhante e igualmente trágico...
E a narradora então fazia uma minúscula pausa, amassava um pinhão com um martelo de madeira e concluia num dialeto quase primitivo, especial só para aqueles momentos, e olhando diretamente para mim que, enfiado numa camisa xadrez de pelúcia, com olhos quase fora das órbitas e as unhas cravadas na penugem dos felinos já não tinha mais fôlego: É, meu filho... aqueles eram tempos de dente por dente e de olho por olho!!!

Um comentário:

  1. "...aqueles eram tempos de dente por dente e olho por olho...", engano da narradora, porque meio século se passou, e nada mudou, a não ser o silêncio das tragédias... Em alguns currais urbanos, e no interior, tudo continua como antes, mas agora "a coisa" é silenciosa ou silenciada... Outro dia peguei uma dessas vans que rodam pela cidade, e carregam as pessoas das comunidades, por um valor mais acessível que o ônibus, e bem mais rápido, porém o "desconforto" não é compensador. No horário de final de expediente, em torno das 18:00hs, eu estava andando para pegar um taxi, quando ouvi os gritos do cobrador anunciando o seu destino. Resolvi entrar no veículo, e espantei-me quando o trocador, um rapazola, estendeu-me a mão para ajudar-me a subir na van, e ainda me chamou de tia. Não sei se me assustei mais com a gentileza do rapaz, ou da carapuça de ser uma balzaquiana. A van foi enchendo, e eu seria uma das últimas a saltar, tempo suficiente para ouvir algumas histórias alarmantes, de duas senhoras que conversavam ao meu lado, e moravam em uma das comunidades do entorno. A que mais me espantou foi o relato de um Policial que havia entrado em uma das casas para "coletar" o "subsídio" do filho de uma delas que era motoboy da comunidade, e como não havia dinheiro em casa, além de quebrar a porta, a autoridade urinou no meio sala (se é que barraco tem sala), e ainda assaltou as migalhas que havia na geladeira, xingando e ameaçando os demais... Ouvi outras coisas, como troca de armas por objetos, e outras que não devo comentar, e lembrei-me da propaganda das UPP´s - Unidades Pacificadoras, colocando "ordem" nas favelas... E o resumo da conversa daquelas duas mulheres foi assim: - "Se ficar um dos bicho come, e se correr outros bicho pega, o que a gente faz?". É...

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