Recentemente passei umas boas horas
em fila na Praça Tiananmen para atravessar outra vez o mausoléu do velho Mao Tsé Tung e rever o
estado do defunto. Nada de bolsas, de isqueiros, canivetes, câmeras, telefones, garrafas de
água... Estava lá, na mesma posição, um terno preto e com a fachada até melhor que a de vinte anos
atrás... Veneração e silêncio absoluto. Nem a respiração se ouvia, a dos fanáticos e a
própria. Ingresso gratuíto e cada um com uma flor amarela para depositar num lugar apropriado e a
uns cinco metros das canelas do esquife... Nenhuma inscrição, nada!
Hoje entrei novamente aqui onde jaz
o cadáver de JK. Ingresso R$ 10,00. No topo das escadarias uma inscrição ambígua: Aqui Deus
habita para sempre! Fiquei em dúvida: estão se referindo ao Demiurgo ou ao ilustre Caixeiro viajante?
Contrariamente ao rigor chinês, entrei com bolsa, com isqueiro, com canivete,
câmera, uma garrafa de água, telefone, pen drive e outros badulaques perigosos da modernidade... Seremos para sempre os mesmos distraídos tanto nas burocracias da vida como nas burocracias da morte? Alguém me lembra que herdamos dos navegadores portugueses não apenas a falta de rumo e essa
cordialidade falsa e mascarada, mas também essa espécie de anarquismo estéril e
inútil, aliás, esse anti-anarquismo! Desta vez vim para ver
apenas a biblioteca do morto. Uns mil e quinhentos, dois mil livros, todos com
capa dura, em ordem e intocáveis. - Quantos teria lido? Ouvi a indagação de uma visitante ao
"guia", um senhor todo de branco que para não ser pedante com a
bobalhona secundarista e injusto para com o defunto, deu voltas e mais voltas
para, por fim, admitir que o ex-presidente "tinha sim o hábito da
leitura". Ela entendeu hálito. Depois moveu as orelhas em admiração... Me veio a dúvida: afinal, ter o hábito da leitura é uma virtude ou um vício? Uma riqueza ou uma miséria? Depende daquilo que se lê! Nós, que já somos putas velhas nesse métier e que temos
lá nossas invejáveis bibliotecas domésticas, sabemos que, em muitos casos, elas
são como espingardas muito bem lubrificadas que se tem em casa apenas para impressionar os inimigos e para turbinar nossa autoestima,
mas que, na verdade, se passa a vida inteira sem usá-las. Estou diante das estantes. Uma
foto do morto com aquele olhar de cigano da Boêmia insiste em observar-me. A cada movimento que faço um censor
dispara como se estivesse denunciando meu exagerado interesse para com os
títulos ou como se no meio daquelas páginas houvesse algo bem mais raro e
valioso que os chatos corolários de caduquices que conhecemos... O "guia", vestido como
um pai de santo me tranquiliza. Puxei a caneta e fui anotando "ao
azar" alguns dos títulos que o nobre defunto provavelmente tenha lido:
-Três raparigas modernas
(Magali.....)
-El jardim de Epicuro (A. France)
-As sete mulheres de Barba Azul (A.
France)
-O poder da carne ( R. Marchard)
-O sentido trágico da vida (Unamuno)
-Fracturas y luxaciones
(Terencio...)
-Traité de gynecologie
(Faure-Siredey)
-The practice de urology (Leon Herman)
-Jules César (W. Fowler)
-Dr. aqui está o seu chapéu (J. Jerger)
-Vols. 3,5,6,7 e 9 da Comédia Humana
(Balzac)
-1 volume espesso de Moliére
-O exemplar repetido de O marquez de
Barbacena ( J. Calogenas)
-Um sonho de pobre (H. Campos)
-História secreta do Brasil (B. Barroso)
-A vida de Jesus ( F. Mauriac)
-Poncio Pilatos (G. Silveira)...
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