Vim ao mundo em 08-12-49 numa região montanhosa e repleta de pinheirais no interior de Santa Catarina, lugarejo que nem constava no mapa e onde o idioma falado, tanto em casa como nas ruas era o de Paganini. Meu bisavô Matteo havia abandonado a cidade de Fonzaso, quase na fronteira com a Alemanha e famosa pela produção de graspa, atravessado os mares e lançado âncoras no RS de onde seus descendentes foram migrando para SC e, mais tarde para o PR. Essa vila onde nasci e deve até ter desaparecido, era constituída por umas vinte ou trinta casas de madeira, com varandas e venezianas, exatamente como as de Veneza e pintadas sempre com cores exóticas. As imagens mais importantes que consigo resgatar, daqueles anos, são imagens do inverno. A geada nas vidraças. As chaminés fumegantes, o cheiro do pinhão e os gatos, soberbos, transitando por sobre as cercas em busca de um pedaço de sol. Uns quatro anos depois os caminhões e os gipes em caravana escalando as montanhas rumo ao Paraná... A selva ainda intacta, as perobas, as onças rondando os galinheiros, as espingardas sempre carregadas, um tio tocando violino, os festins a cada matança de porcos, as tripas transformadas em salames, o cheiro da xota de uma priminha, os colchões mijados expostos nos telhados e as peças íntimas das irmãs secando nos varais... Depois a escola, os sapatos, o rádio, o incenso das missas, a melancolia dos sinos, todo dia na hora da tal Ave Maria. A adolescência, as punhetas intermináveis, as brigas de rua, a culpa, os embates familiares, as crismas, os casamentos, os revólveres, os tiroteios nos finais de semana, as terras griladas, o Governo Lupião e as escrituras falsas, a desmistificação dos adultos, dos mandamentos, da moral vigente. Da Bíblia para a Enciclopédia, da punheta para os braços e para as coxas das pequenas camareiras. O ginásio, a marcha de Sete de Setembro. A colheita do café. A banda semimarcial. Mussolini. Hitler, as Valsas Vienenses. A dificuldade para falar português. O "rr" enterrado e tatuado na língua. Ser padre ou médico? E a Itália sendo soterrada e negada. Ser gringo era quase um crime. A marcha das mulheres indo à igreja com seus véus e seus intestinos presos. Num inesquecível entardecer a mala aos pés. Adio! Arivederci! Curitiba. Colégio Estadual. Colégio Iguaçu. Universidade de Lisboa. Brasil. Londrina. Universidade de La Plata. Londrina. Brasília. Universidade do México. Brasília. Universidade do México, Universidade de Barcelona, Brasília, Universidade de Paris, Brasília. A universidade como um pretexto, porque o saber estava sempre à margem ou ao lado. A rua. O caos. A contramão. As entrelinhas. O inferno desconstruído. A Índia, o Nepal, a China. A grande marcha de cada um. Pukhet um pouco antes da tsunami. A solidão dos aeroportos e das espeluncas. O texto. O caderno de notificações. O asco pela mesmice. O horror ao trabalho. À alienação. À mentira convencionada. À polícia estatal, à igreja, o superego intransigente e lá no meio das coxas das mulheres, sempre o mesmo cheiro alucinante de outrora. A palavra em movimento. Um mosteiro interior, uma cidade estupenda construída somente de pesadelos. As ruas de Praga... A boca tenebrosa do metrô. Um morto boiando no Volga. A morte. Os cemitérios de Paris, de Istambul, da Bolívia. Cada lápide como um espelho. Devagar por entre os monumentos vendo as botas espelhadas aqui e acolá. Um corvo. Apenas um corvo numa manhã de neve nos arredores de Tel-aviv. Uma rajada de metralhadora e o silêncio. Trinta e cinco, quarenta, cinqüenta e oito anos. O rio São Francisco, o Ganges, o Mississipi. Os cabelos grisalhos, um naufrágio nas costas de Petrolina. O sol, o carcará, as moscas lambendo meus dedos... O texto, o caderno de notificações. Vargas Vila revisitado. A máquina fotográfica. Um violino como o Guarnierus do Paganini ou como o do meu tio. Meus dedos loucos e esqueléticos atrás das notas para executar precariamente a doçura de summertime. A famiglia desfeita entre os mares. A psique. Dos gatos soberbos transitando sobre as cercas em busca de um pedaço de sol à psicanálise. Milhares de horas de escuta. Para quê? As dores do mundo escutadas e condensadas no dia-a-dia, ano-a-ano, década-a-década. Curar-se. Curar-se de quê fratelo mio? Eu, como muitos outros, talvez nem tenha verdadeiramente uma biografia - como dizia um antropólogo - poderia se falar, mais bem, numa longa e maldita ficha policial.
Ezio Flavio Bazzo
ahlan-wa-sahlan (seja bem vindo), ezio: à inexistência do pecado original; ao efêmero; à finitude; ao cambiante; à existência fugidia; à aversão ao desejo da imobilidade, da eternidade e da imortalidade; às escapadas de toda argumentação; ao conhecimento trágico; à curvas perigosas e eróticas; à inauditos cenários; e, seja bem vindo à loucura irremediável e sem centro de gravidade da adesão radical aos enigmas da existência expressados como gozo incondicional.
ResponderExcluirEnfim, alguma informação sobre o enigmático e exótico escritor brasiliense!! Bons olhos o vejam, bons ouvidos o ouçam, caríssimo. Saber mais sobre um escritor é um grande privilégio, tanto mais quando se gosta do que ele escreve. A vida desses seres ("avis rara") é sempre fascinante e merece ser divida com os outros.
ResponderExcluirEzio, maldito! Soy un cocinero en vias de separación (divorcio) con la Sra. Gastronomía, combirtiendome en un gran farsante contribullendo a alimentar (con la palabra escrita) el gran fuego que se ciñe sobre Pompeya. Estaba escribiendo un guión cinematográfico sobre el vino y una copa de cristal cuando me tropiezo, en un teatro, con "Más allá de la comedia cotidiana..."
ResponderExcluirEnfurecí leiendolo! Así que los personajes del guión se contaminaron de tí, no lo he podido evitar, te he plagiado un poco y pienso venderlo a Universal Pictures. Qué piensas al respeto?
Un abrazo
num canto escuro de um sebo barato, numa entrelinha de algum grito odioso, na fenda reverberada entre uma imagem e um escrito...sim,assim sempre o encontramos......seu louco anônimo de uma Brasília defecada...
ResponderExcluirÉzio Flávio Bazzo! Parabéns pelos textos! Você dizia, no oferecimento de um livro ao meu pai, ser ele o mais lúcido e irônico dos homens que havia conhecido; pois lhe digo: você o é!
ResponderExcluirAndei a sua procura, e encontrei tanta criatividade e sarcasmo em relação à estupidez humana... Espero que possamos renovar contatos. Tenho um blog no qual escrevo sobre meus pais e irmã(há dois anos falecida); é http://estrelasemmeucaminho.blogspot.com/ Nele aparece um texto seu para o amigo Bras´´ilio.Abraços paranaenses.
Ézio, enfim encontrei-te! E quanta alegria me proporcionaste por poder doravante considerar-me um privilegiado. Sim, privilegiado por tê-lo conhecido pessoalmente nos idos 1976, quando eras estudante de psicologia em Londrina. Contigo aprendi a arte de comer arroz integral com as mãos e produzir livretos artesanais, custeados por parcos recursos advindos de tirinhas publicitárias. Parabéns, és de fato um triunfo!!
ResponderExcluirEu, tu, filhos da terra. E me pego na mais profunda reflexão, sobre sóis e geadas que me faltam. A minha infância cinza careceu de hipérboles e hematomas. Os portões só abriam caminho aos carros e cães maltrapilhos. A fantasia, minha única inseparável companheira, deu cores aos simples insetos que habitavam o nosso pequeno jardim, alegoria aos sonhos de uma criança que não queria saber os limites do real. Sou grato aos meus pais, que não enfiaram nenhuma merda em minha cabeça além das que uma cidade, podre vilã, proporcionava em noites terríveis, de sirenes e aviões, dos degenerados o perdão ao caótico ir-e-vir de aço e esperanças. Porque a cidade era linda. O marulhar da chuva ou o das poucas árvores se ocupavam de me acalentar, a alguém incrédulo atrás de um vidro embaçado, ou um gato, livre, a ulular lamentosamente à lua que fios e antenas não conseguiam esconder.
ResponderExcluirCabe aos capazes unir deste mosaico as cores, a que tua infância tanto coloriram, em graciosa nostalgia às notas de um velho violino, ao misturar bucólico de histórias de uma pequena vila, perdida do mundo. E resta nos perdermos nele.
Puxa, adorei o blog!!! A força dos escritos e do pensamentar. Enfim, algo inteligente na burrice geral... Abraços e obrigada por estares vivo. Segue... vivo. Carinhos.
ResponderExcluirSempre genial,nunca esquecível - O sábio no topo na montanha.
ResponderExcluirNa sala de espera do dentista, olhos desesperados passados nas revistas parciais; na trilha que vai dar na cachoeira do velho Itaquarussú; olhado a lua através da janela em noite fria de julho; com o peixe na mão e sem esperança porque o peixe era o exercício de esperança; pão quente com pedaços de folhas de bananeiras grudadas;
ResponderExcluirVocê é o cara !
ResponderExcluirQue brilhantismo raro e simples e vital na escrita(porque na vida!), que corredeira bela, que cachoeira lindamente sonora, que delícia!! Bj
ResponderExcluirNão entendi como foi dado o salto entre o pobre habitante de uma vila perdida em SC para o intelectual maldito que viaja o mundo inteiro. Como essa façanha foi conseguida?
ResponderExcluirUma biografia parida da alma! A cada frase uma vida inteira - palavras que tentam apresentar o homem/vulção que hora ou outra derrama sua lava quente...
ResponderExcluirPara mim um estranho estranho, para outros um estranho luz, um caminho, um barco, um céu, um mar, uma carta, um gênio...uma poesia!
Abraços.
Mais um que veio ao mundo e está nele, com a única diferença de que teve coragem de responder aqui"de onde viemos, quem somos e pra onde vamos".
ResponderExcluirLi sobre você em um site vegano aqui de Porto Alegre.
ResponderExcluirEscreve textos anarquistas excelentes, dos melhores que já li nessa minha vida medíocre e efêmera.
Realmente são textos que me convidam a agir mais, porque a vida num contexto geral tá indo de mal a pior, o conformismo da maioria das pessoas, a massificação da ignorância, a homogeneização da hipocrisia,o estouro das parafilias,o advento das violências gratuitas,o apogeu das drogas,o matadouro dos irmãos,o sexo ora reprimido ora banalizado mas sempre explorado assim como a mão de obra do trabalho...
Esse planeta é belo demais para desistirmos dele por causa de homens maus que parecem dominar a Terra, mas te digo que apesar de existir uma cambada de imprestáveis no globo terrestre, eu aindo confio nas pessoas raras, raríssimas que vão ter a coragem de fazer a diferença nesse "Vale das Sombras".
Para refletir:
"A guerra é um mestre rigoroso. Dá a morte e o sofrimento à maioria, fortuna para uns poucos, e a glória, dizem os sábios, a ninguém. Mesmo assim, os homens caminham para a guerra por uma ou outra razão própria. Alguns procuram aventura e excitação, outros estão desesperados e não encontram outra saída. Alguns outros estão tão rancorosos e carregados de ódio que decidem lançar todas as maldições na Terra. E ainda há alguns poucos, os poucos heróis que vão se esforçar para impedir tudo isso."
bom comenta´rio este!
ExcluirEzio, a casa que vc mora no Lago Norte, bairro caro de Brasilia, é sua?
ResponderExcluirisso é coisa que se pergunte? Cada um q aparece aqui!
ExcluirA casa que voce conhece aí em BRasilia é uma bagatela perto da que ele tem nos Emirados Árabes.
ResponderExcluirSheila V.
Descobri uma matéria sua na net "cristo nunca existiu - apesar do histerismo generalizado", achei o máximo, parabéns, quis saber mais sobre você e descobri que es foda...
ResponderExcluirAss: 28 anos de ateísmo.
Saudoso Èzio Flávio Bazzo,
ResponderExcluirObrigada pela frase que um dia me escreveu: "Quero que seja uma mulher diferente das outras mulheres, livre como uma índia e livre das mediocridades sociais".
Obrigada também pela sugestão (e seguida) de ter uma biblioteca em casa.
Com carinho e admiração e feliz por tê-lo encontrado aquí.
<(._.)>
ResponderExcluirMas que texto maravilhoso, Bazzo! Sabor de autobiografia, jeito de poesia ou lirismo.Aqui di o Rogério, mas um outro, não o outro sarcástico do comentário do "búfalo". Muito bom este texto, que inveja tenho ao lê-lo, queria saber escrever bem assim, quem me dera!
ResponderExcluiro sotaque do ézio sera parecido com este deste menino?
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=eeQwPExFNRU