quarta-feira, 31 de maio de 2023

O teatro dos proto-caudilhos da América Latina...


" Não me venham gritar e fazer gestos de liberdade 

sacudindo no ar vossas correntes (...) Eu não lhes concedo o direito de cidadania na urbe do pensamento... "

V.V.




A foto do Maduro (uns cinco palmos mais alto do que o Lula), circulou por todos os jornais, e o pessoal da esquerda e o da direita não conseguem interromper o lero-lero sobre esse "glorioso" encontro dos "chefes-de-estado" da América Latina, e sobre essa ilusória aurora anunciada ontem, por aí... E como em todo teatro mambembe, uns jornalistas são pagos para criticar e outros, para elogiar... Uns para negar e outros para falsificar a história...

A discussão central é se a Venezuela é um país democrático ou não. Ora, isso é mais ou menos como discutir a aparição daquela santa lá numa aldeia portuguesa... Eu, de minha parte, da Venezuela, só lembro de duas coisas: daquela lenda em que o Chaves, depois de morto, teria aparecido a seus lacaios em forma de passarinho e, mais tarde, da cena de milhares de cães esqueléticos, morrendo de fome pelas ruas de Caracas. Se estes dois fatos aconteceram sob um regime democrático, plutocrático ou teocrático, pouco importa.., o circo é o mesmo...

Enquanto os ouvia discursando e repetindo os mesmos chavões, sofismas e as mesmas frases lá dos tempos das rebeliões estudantis, ia pensando no lodaçal e na miséria que rege a América Latina inteira... Sim, eu sei, existem as garras vorazes do império gringo, (que em breve serão trocadas pelas dos chineses) mas quando é que esses países vão começar a fabricar, pelo menos, o papel com que se limpam o cu??? Penso também, e com todo respeito em Vargas Vila, nesse latino-americano que escreveu:

1. As aristocracias são cruéis porque são formadas por antigos escravos que se vingam...

2. Aspirar em desmascarar ou em eliminar as falsas verdades já é ter uma fé em uma verdade; e eu não sei em quê o despotismo científico que padecemos seja mais livre do que o despotismo teológico que o precedeu; e isto, porque toda fé é uma tirania; e porque mudar de fé é mudar de servidão. Só a dúvida é livre...

3. O único método reflexivo de triunfar é a mentira; a verdade é espontânea e irrefletida, por isso leva sempre à derrota; ninguém se salvou por dizer uma verdade; todos os vencedores o foram pelo poder de uma mentira...

4.  Quando um argumento é conveniente, perde todo o encanto; só o sofisma tem vitalidade, porque faz crer na verdade, mas não a revela...

5.  O despotismo é sempre o justo castigo dos povos pervertidos (...) a história não registra o nome de nenhum povo que não tenha merecido a canga que levou...

6.  As democracias têm isto de triste: escolhem sempre um escravo que as governe; e o que  pode ser o governo de um escravo, senão uma escravidão???

7.  O grande cúmplice da tirania é o silêncio; não atacar o despotismo é a maneira mais covarde de servi-lo; não denúnciá-lo é auxiliá-lo; estar próximo dele sem feri-lo é a maneira mais vil de protege-lo; e proteger o crime é mil vezes pior que cometê-lo..

8.  Se estes são os homens de amanhã, que será desta pátria amanhã, nas mãos destes homens? Todos são religiosos e viciosos... Todos têm a alma mística e lasciva de um noviço adolescente... 

9. Na linguagem dos escravos, adorar é calar. A etimologia do verbo adorar é colocar-se a mão sobre a boca. Adorare manum ad os admovere. E o povo adora a seu amo colocando-se a mão sobre a boca; e o amo paga essa adoração enchendo-lhes a boca de sobras...

10. Pobres povos, que em marcha dentro da noite se detêm para amaldiçoar o sol ao qual deram miseravelmente as costas...

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Fatma Said - Yo soy Maria de Buenos Ayres...


"... Digan ustedes si no es lindo vagar! levantarse a la una, bañarse, almorzar y salir luego con una canción casi prendida a los lábios, mirando la humanidad que trabaja para pagar el puchero! Digan ustedes, si no es lindo vagar..." 
Roberto Arlt











E.., por fim, lá no Recoleta...


"El rojo espejo occidental en que arde una ilusoria aurora..."

(Jorge Luis Borges, in: Las cosas)
























 

















 
















domingo, 28 de maio de 2023

Bye bye Buenos Aires...





 

Não esqueça: além do Ezeiza, existe o Aeropuerto Buenos Ayres, ou Jorge Newbery ou Aeroparque...

Quem chegasse nesse aeroporto vindo de outro planeta ou de outro mundo, teria certeza de haver pousado num hospital-dia, num manicômio, num hospício ou coisa parecida...

 Gritos, berros e brigas por todos os lados. Cada balcão de check-in parece um pátio de rinhas... Voos atrasados, preços abusivos, cancelamentos... E todo mundo parece querer jogar merda na Aerolineas Argentinas. Os funcionários vão ao chão, mas de repente se recuperam e fazem o contra-ataque. O reclamante aumenta o tom, a gritaria se espalha. Quem é o gerente dessa merda? Acá no hay gerente porra nenhuma, hermano! Uma espécie de esgrima pobre e binária, entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre a limpeza e a sujeira, entre a honra e a desonra... Pecho Bueno y pecho Malo... Como não pensar na quase metafísica posição esquizo-paranóide da M. K...

Nos banheiros, filas imensas. Cada um deposita com nojo suas maletas no lado de fora do "gabinete". Um latino americano gorduchinho, para mijar, precisa baixar as calças até os joelhos e exibe umas cuecas da cor da bandeira colombiana... Pelo menos não pode ser acusado de ser apátrida... Aproveito para fazer um parágrafo de literatura nômade... Nada depõe mais contra a espécie do que um banheiro de aeroporto, com aquela gente de cócoras e com aqueles cheiros universais... Sim, Borges tinha razão: para suportar esse circo é necessário ser budista mesmo negando a existência de Buda...

 No saguão, o barulho aumenta. Dois policiais aparecem.., - observo que levam na parte traseira do uniforme as letras PSA (penso naquele famoso hormônio prostático) -. Crianças gritando, buzinas, a cada cinco metros uma televisão ligada e um cretino falando ao telefone... até um mini trator carregado de malas e de sacos vai pelo meio da multidão de viageiros... Um sujeito bizarro passa arrastando o estojo preto de um violoncelo: é a imagem perfeita de um coveiro, no meio da noite, pelo hall de um hospício, levando o que restou de um interno... Mais ao fundo, parece que estão desconstruindo uma parede. Outra briga, agora diante de um embarque nacional. Uma mulher está em fúria. Acompanho seus gritos e penso nos índices de seu cortisol... Seu filho, fazendo um esforço imenso, a abraça. A turba inteira do aeroporto suspira. Ah, que lindo gesto filial! O alto falante atrapalha os brigões. Um babacão jovem passa com uma mochila amarrada às costas e outra ao peito. Katmandu não é aqui seu babaca! De onde veio e para onde irá esse idiota? 

Um gringo de uns 35 anos, com cara de demente, assiste a tudo meio assustado e comenta com sua companheira, ela também com cara de espanto: como Borges, "Soy el que envida a los que ya se han muerto..."

Um cachorro rastreia uma migalha de chorizo por debaixo do divã... Comidas em bandejas e mercadorias em padiolas, gente que se abraça e chora, tanto na partida como na chegada. Não entendo qual é a lógica das lágrimas. Um silêncio repentino. Gente de preto e gente de branco formam uma fila diante de um balcão sem nome que fica ao lado de uma porta de emergência. Isto é um aeroporto ou um hospital dia? E na sobreloja, acreditem, ao longo de uma galeria com boutiques, WCs, cafés e etc, mais de cem moradores de rua estirados no piso dormindo e abraçados a seus crimes, suas misérias, seus cobertores e tralhas. O cheiro é inconfundível... Penso no lançamento do livro Aporofobia, (fobia aos pobres) da Adela Cortina, em 2017, lá em Madrid. Aqui, pelo menos aparentemente, trata-se de uma manifestação de aporofilia... O jogo é interminável... E os transtornos bipolares vão se incorporando e fazendo parte desse show...

Todos loucos! E não estou fazendo metáfora, me refiro à loucura clínica...

Vou embarcar as 4:20 da manhã... E, pior: para outro hospício... Sento no meio da turba e faço + uma página de minha suposta literatura nômade... Pensando em meu violino e na música do Piazzolla, aquela lá do rádio do taxista: 

"No ves que vá la luna por Callao... (...) Como un acrobata demente saltaré..."


 

 



quinta-feira, 25 de maio de 2023

Mientras...





Ao meio dia a Praça de Mayo já estava transformada num lamaçal. E parecia que toda Argentina havia ido para lá... E de todas as avenidas que desembocam ali, chegavam novas Delegações com suas bandeiras, suas faixas, bandas e entusiasmos... A Cristina estava por todos os lados. E havia a fumaça dos chorizos, dos salsichões, das cebolas e da maconha. Muita fumaça. Muitos gritos. Muita gente com os estereótipos revolucionários dos anos 80... Uma bandinha de camponeses tocava e dois ou três mendigos sapateavam...

A juventude peronista administrava os espaços, as filas e os movimentos... Vendo aquelas multidões chegando, aos gritos, perguntei a um artista de rua: Vão incendiar a cidade? E ele me respondeu: Não, não passa nada! Hoje é apenas um dia de festa! Mais tarde, apontando para uma faixa que dizia: Todos com Escobar, perguntei a um manifestante: Estão se referindo ao Escobar colombiano? E ele, meio irônico: Claro! Exactamente a el colombiano! Bem depois, quando a praça já parecia um departamento do inferno e quando a missa que estava sendo rezada na catedral da frente, em homenagem aos ossos de San Martin, com sua cantoria gregoriana, passou a ser reproduzida nos alto falantes da praça, indaguei a um homem mais ou menos de minha idade: no passado, em manifestações como esta, se ouvia Violeta Parra, Victor Jarra e etc., o que aconteceu para que agora se ouça um réquien? O que teria acontecido? Ele, meio acanhado, retirou-se, respondendo: são os tempos em que vivemos... E a missa continuou. Por todos os lados os chouriços na grelha, as chipas recheadas, outros tipos de linguiças e os panelões de azeite fervente... e a fumaça, e os cheiros, e a fé na mãe Pátria... Em Peron, na Evita e em Dios...

No Café Pertutti, no outro lado da praça, a burguesia apreensiva, assistia a tudo por detrás das imensas vidraças, fingindo indiferença. Quando a porta se abria e aquela mistura de fumaças e de odores adentrava ao ambiente, não escondiam seus ímpetos de asco. Ouvi uma mulher ainda jovem dizendo à sua colega de mesa: que me desculpem todas as congregações, mas se essa gente chegar ao poder é preferível morrer... Essa gente, evidentemente, seriam os proletários e os camponeses.  Pensei na aporofobia e numa frase que Lênin, segundo Giovanni Papini, teria proferido: Um proletário urbano vale por mil camponeses...

Inacreditável o fervor da turma!

Começou a chuviscar. As massas pareciam cada vez mais agressivas e furiosas entre si. Sim, parece haver uma raiva contra si mesmo; uma necessidade de fazer mal a si próprio nas classes exploradas, que as faz, atuar contra si mesmas... Fora das calçadas o lamaçal era imenso. Por que ficar pregando entre si, enfiando toda aquelas porcarias nas tripas; ficar pisando-se nos calcanhares, patinando na lama e enlameando-se voluntariamente?  Mas então... todas as escolas de Lacan, os discípulos da APA e as centenas de livrarias não serviram para nada???

Subi pela Calle Florida identificando a solidão porteña por todos os becos e por todos os lados e com o niilismo a flor-da-pele... 

Desse jeito, a América Latina ficará mergulhada nessa porra-louquice e nessa lenga lenga melancólica e sem sentido, por mais mil anos...

Comi uma empanada de queijo com cebola num quiosque não muito recomendável... a melhor da viagem... e tomei o rumo do aeroporto achando que todo aquele pesadelo havia  terminado, ... mas, no radio do taxi...