Imagens do filme O Fantasma da Liberdade (Buñuel)
Russos investem em banheiros de luxo SOPHIA KISHKOVSKY DO "NEW YORK TIMES", EM MOSCOU No coração da capital russa, perto Kremlin, o Café Freud oferece um "insight" sobre uma das manifestações mais evidentes da Rússia pós-soviética: banheiros luxuosos e decorados com requinte, até mesmo exagero. Os restaurantes desta cidade que anda cheia de dinheiro do petróleo vêm competindo para criar banheiros cada vez mais luxuosos, incluindo elementos como privadas de ouro, paredes revestidas de couro, urinóis com espetaculares vistas do céu e pias de louça que se assemelham à porcelana Gzhel, a versão russa da delicada porcelana holandesa de Delft. O fenômeno pode ser visto como a confirmação da previsão feita por Lênin em 1921 segundo a qual algum dia as massas iriam se sentar sobre privadas de ouro. Apesar disso, no ano passado uma autoridade do setor nacional da construção disse que 40 milhões de russos -quase 30% da população- ainda não têm água encanada nem são atendidos pela rede de esgotos. No Café Freud, os clientes podem se banquetear com pratos com nomes como "Libido Sexualis" (sopa de tomates e alho, acompanhada de "croutons") em uma de três salas -Id, Ego e Superego-, e então ir até seus respectivos banheiros, passando por três portas com vitrais em tons vermelhos, retratando figuras femininas e masculinas e plantas e frutas sugestivas, em estilo abstrato que lembra o de Joan Miró. Profanação Nos tempos soviéticos, um simbolismo profundo era atribuído aos banheiros. As igrejas que escaparam de ser destruídas freqüentemente eram profanadas, com seus altares convertidos em vasos sanitários. A escassez permanente de papel higiênico -folhas do "Pravda" e de outras publicações soviéticas muitas vezes eram usadas para substituir o produto- e a imundície dos banheiros públicos eram ridicularizadas em piadas que funcionavam como antídoto ao desespero que marcou a era soviética. Na Rússia pós-soviética, o simbolismo dos banheiros ganhou novos tons. Três anos atrás o grupo de jovens Caminhando Juntos, que declara para quem quiser ouvir seu apoio ao presidente Vladimir Putin, atirou livros do romancista Vladimir Sorokin em uma privada simbólica erguida diante do teatro Bolshoi e deu a descarga. O grupo acusava o autor de nutrir uma obsessão malsã com a pornografia e os excrementos e fazia objeção aos planos do Bolshoi de encenar uma ópera baseada em libreto dele. Putin fez uma das maiores contribuições para o folclore que cerca os vasos sanitários na Rússia quando evocou uma frase famosa na qual prometeu "dar a descarga" nos terroristas tchetchenos no "sortir" (sair), um termo russo que indica privada suja. Exemplos de banheiros de baixo nível ainda sobrevivem nos toaletes portáteis de Moscou, estruturas precárias de plástico que pontilham locais estratégicos da capital, como as cercanias da Praça Vermelha. Elas costumam cobrar uma taxa de 10 rublos -cerca de US$ 0,35- e ostentam cartazes com os dizeres "não oferecemos desconto". O cineasta Andrei Konchalovsky, que deixou a União Soviética para trabalhar em Hollywood mas hoje passa seus invernos em Moscou, chegou a brincar com a idéia de criar um Partido das Privadas Limpas. É atribuída a ele a inspiração de um livro de quase 400 páginas sobre a história dos banheiros russos e o lugar que ocupam na história sanitária mundial, repleto de citações literárias sobre o tema, de autores que vão de Tchecov a Solzhenitsyn. Konchalovsky discerne complexos psicológicos de origens profundas por trás da febre de toaletes de luxo nos restaurantes e nas residências dos novos-ricos russos. "Os russos ricos de hoje, pelo fato de que há dez ou 15 anos não viviam em condições muito boas, sublimam sua atitude em relação ao dinheiro com banheiros extravagantes e impensáveis e garrafas de vinho de US$ 1.000", comentou o diretor. A psicanalista Yelena Bazhenova, que integra o corpo docente da Universidade Estatal de Moscou e atuou como consultora no projeto do Café Freud, detecta correntes ainda mais subterrâneas. "Em termos de desenvolvimento psicossexual, nosso país agora se encontra na fase anal", disse ela. "Os restaurantes já passaram pela fase oral. Todas as culinárias estão representadas no país. Agora chegamos à fase anal, e eles começaram a projetar seus banheiros." Bazhenova diz que é muito importante contar com o banheiro adequado. "É muito importante que o banheiro seja bonito, que essa fase seja refletida. Se uma criança sofre um trauma, terá uma neurose quando chegar à idade adulta." O crítico de restaurantes do jornal econômico "Vedomosti" apontou para uma justificativa mais pragmática dos banheiros de luxo. "É porque os homens do dinheiro estão competindo entre eles", disse Aleksei Zimin, acrescentando que seu banheiro favorito -situado num restaurante que, lamentavelmente, foi fechado- tinha um urinol no formato de cachoeira. "Há concorrência na comida, nos vinhos, na culinária. Os banheiros são uma outra forma de chamar a atenção." Buñuel O conhecido proprietário de restaurantes Yevgeny Katsenelson rejeitou as tentativas de analisar o banheiro extravagante, cujas peças foram todas importadas da Inglaterra, de seu mais recente estabelecimento de sucesso, Discreet Charm of the Bourgeoisie, cujo nome vem do filme "O Discreto Charme da Burguesia", de Luis Buñuel -cineasta que, em seus filmes, coincidentemente, fazia uso freqüente de imagens ligadas a banheiros. "Não sei por que os banheiros são tão bonitinhos. É uma nova tradição. Eu apenas os construo", disse ele, cortando o assunto. Casualmente, porém, citou diversos banheiros bonitos de restaurantes pelos quais já passou em diferentes partes do mundo, de Milão a Las Vegas, mencionando até o Sushi Rhumba, de Nova York (uma aparente referência ao Sushi Samba, que aparece no seriado de televisão "Sex and the City", do qual são fãs muitos dos moscovitas que freqüentam seus restaurantes). Marina Putilovskaya, que projetou o Palazzo Ducale, um estabelecimento abrigado numa construção extravagante de vidro e toques dourados, com temas venezianos, cujos banheiros seguem o mesmo estilo do resto da casa, defende os restaurantes fantasiosos e seus banheiros. "Quando as pessoas vêem algo bonito, isso as estimula a trabalhar mais", explicou. Para Andrei Konchalovsky, com base em uma perspectiva histórica, a obsessão russa com os banheiros é uma novidade promissora. Ele explica que, "quando os banheiros são sujos, a democracia vai mal". Publicado na Folha de São Paulo, em 17 de setembro de 2005. Tradução de Clara Allain |
Publicado em 2005!?? Nao entendi bulhufas Ezio...
ResponderExcluirPreste atenção: Sophia Kishkovsky vivia em Moscou como correspondente do NEW YORK TIMES e escreveu esse artigo fascinante, que foi depois traduzido para o português por Clara Allain e publicado na Folha de São Paulo. Que a publicação tenha acontecido em 1800, 2005 ou ontem, não faz a menor diferença. É só isso! E se relacionamos o conteúdo do artigo com a roubalheira de ouro da Amazônia, que vem acontecendo há décadas no Brasil, o artigo ganha ainda mais sentido. É só isso! Lembra da promessa de Lênin de que quando a revolução proletária tivesse êxito, os trabalhadores teriam até urinóis de ouro?
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