quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Uma singela elegia ao Lirio da Amazônia... (Distraídos venceremos...)




O dia amanheceu quase radiante. O Lirio da Amazônia que hidrato há décadas, só com água Perrier, abriu sua primeira flor branca, em forma de estrela, e na direção do sol... Como existe gente que duvida que a terra é redonda (eu mesmo não tenho provas suficientes do contrário), existe também gente que, mesmo depois de Copérnico, ainda tem dúvidas se é o sol ou a terra que giram por aí, um ao redor do outro, na imensidão dessa loucura e dessa fraude que é o universo...  

Do predio vizinho ouço o zum zum zum de orações. Não consigo entender completamente o conteúdo das frases mas, pela sonoridade, sei muito bem do que se trata. Ouvia a mesma lenga lenga e o mesmo zum zum zum, e até em outro idioma, ainda quando era apenas um pobre, voraz e afoito bebê, implorando para não desgrudar daquelas nostálgicas tetas...  

Presto atenção. Digamos que é uma poesia em prosa, sonetos parnasiano/luciferianos, executados em grupo, paródia mixuruca de um ato psicodramático. Parnasiano? O que é isso?  Humildes e patéticas paixões! Vejam como se fabrica um louco: 

"Cristiano,

Recuerda que hoy tienes a

Tu Dios para servir y glorificar,

Tu Salvador Jesús para imitar,

La Virgen, su madre, para rezar,

Tus pecados para expiar,

Tu alma para salvar,

La muerte, tal vez, para sufrir,

El infierno para evitar,

El Cielo para ganar" (P. Solignac, p. 7)

Enquanto meu cachorro levanta a perna esquerda sobre as raízes de uma árvore do cerrado, afino os ouvidos. Seriam cristãos? Budistas? Testemunhas de Jeová? Da turma do Seicho no-ie? hinduístas? Adeptos de Hare Krisna?  Do Rajneesh? Do Xico Xavier? Beatos do Vale do Amanhecer? Fiéis da Cova de Jacó? Gnósticos? Ateus fundando uma nova seita? Escuto. Passei uns 30 anos sendo domesticado e adestrado para ouvir, para escutar o inaudível, para prestar atenção à alma das entrelinhas daquilo que os outros pensam que estão dizendo... Parece que são vozes só de mulheres. Uma choradeira sem intermezzo. Alguém teria morrido? Penso na carreira das carpideiras profissionais! Teriam carteira assinada? E onde estariam os machos domésticos? Os energúmenos? Mistura de ressentimentos e de agradecimentos. E no meio dos soluços se ouvia a palavra paz. Paz! Paz! Eu e meu cachorro pensávamos imediatamente em Maquiavel, que dizia: "a paz como escravos é mais pesada do que a guerra como homens livres..." E rezam para quem, afinal? Para si mesmas. E afasto de mim a ideia maligna de que quando mais de duas mulheres rezam juntas, estão sempre rezando contra outras... Ah! mas é fashion acreditar e propalar os efeitos positivos e milagrosos da reza sobre a alma dos rezadores e, mais ainda, sobre os fragmentos de espírito dos pecadores. Ouço a frase: Perdoai os nossos pecados! Tenho alergia por essa frase. Se não se trata de comerciantes - fico pensando - que pecados essas pobres e castas beatas poderiam ter cometido? E, admitindo que existissem, quem é que teria a presunção e a arrogância de perdoá-los? 

Ah, mas é terapêutico! Ali no Campus da universidade, frequentemente fotografava um grupo de mulheres (todas  descompensadas, despirocadas e pra lá de Marrakesh) que se reuniam ao redor de uma árvore imensa, frondosa, onde, num dos galhos mais robustos, havia o iglu de um João de barro, e que se punham a rezar, a choramingar e a martirizar-se com a justificativa de que aquilo era terapêutico. Eu, temeroso e com todo o cuidado, lhes lembrava de Spinosa: nenhum sofrimento voluntário será recompensado! Elas me ignoravam com um rio de lágrimas que lhes descia por sobre as carótidas e pela gola das blusinhas hermeticamente abotoadas... E os doutores, que passaram três ou quatro 'Anos Sabáticos' zanzando pelo mundo, respaldavam aquele desvario e aquele frenesi com os argumentos mais cretinos que se possa imaginar... E o mesmo se diz da poesia, das canções e mesmo do pranto. Não se diz que quem canta seus males espanta? (E quando se trata dos Cantos Gregorianos, então, há até relatos inverossímeis de verdadeiros milagres...) E quem é que ainda não se deparou com aqueles grupos de lunáticos que passam de hospital em hospital incomodando os internos e rezando em voz alta sob as janelas ou pelos corredores, com o pretexto delirante de estar curando os doentes? De onde teria surgido essa melancolia e essa neurose? E como curar-se? Não, não há solução. O que importa mesmo, agora, no auge de toda essa babaquice, é seguir acreditando que, - como diria o Paulo Leminski, no meio de um haikai e de uma bebedeira -: "distraídos venceremos!"  

Um ambiente embasbacado, onde uns ficam descrevendo o martírio de suas vidas e extorquindo a cumplicidade dos outros... Sim, rezar, cantar e até chorar faz bem... Me dizia a esposa do Mendigo K. Um bem que, evidentemente, não advém dos céus ou dos infernos e nem de outro lugar além das entranhas de si mesmo. Trata-se de um malabarismo pulmonar. Experimente: Esvazie seus pulmões. Empurre a fumaça do incenso, as penas e os ácaros do travesseiro e a poeira do mundo para fora e dirija suas rezas ou seus lamentos a qualquer coisa, a uma das mil divindades oficiais, a uma árvore, a um guarda roupa ou a uma pedra e verás que o alívio é sempre o mesmo, imediato e fugaz... Já que até a tristeza e a depressão também são fraudes e que o corpo, afinal, é uma geringonça vagabunda e condicionada... Faça esse teste, mas sem ficar pensando naquele velho e cabotino adágio espanhol que ameaça: Detrás de la cruz está el diablo...

 







Um comentário:

  1. Rezar em hospitais... um dia estou eu lá todo custurado e veio um desgraçado desses me convidar pra rezar.
    Recusei! Mesmo estando fudido!
    O sujeito demorou uns 10 segundos pra aceitar a recusa ahaahhahahaha

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