sexta-feira, 1 de julho de 2022

Cercados por currais e por estábulos por todos os lados...




Os dois anos de pandemia colocaram em alerta não apenas os virologistas, os infectologistas e os pneumologistas, mas também os antropólogos, os psicólogos, os sociólogos e até os astrólogos.

Talvez, nunca antes nos tivéssemos dado conta de como a sociedade é um aglomerado e a junção de currais, de corporativismos, de confrarias, de compadres, de comadres, de mediocridades e de gente cujo ofício principal é queimar incenso aos pés de quem, hoje à tarde ou amanhã, pode abrir-lhe as pernas e retribuir-lhe o gesto. 

Um bairrismo e um puxa-saquismo de dar pena: 

Este é de meu estado! Este é de minha religião! Este é meu colega de profissão! Este é meu parente! Este professa os mesmos moralismos que eu! Esse lambe as mesmas botas que meus tataravós lambiam e porquê temos o mesmo sotaque! 

Esse foi quem arrumou meu primeiro emprego! Esse representa minha classe! Esse chupa os mesmos picolés que eu e usa as mesmas fantasias! E cultivam, sorridentes, os mesmos rituais da Idade Média enquanto a fumacinha do incenso vai ziguezagueando... É que nos criamos no mesmo curral e que frequentávamos o mesmo estábulo! Somos como irmãos! Ah! e, curiosamente, de um dia para outro, escondem os anéis e os relógios, esquecem que passaram 35 anos incrementando as condições da miséria vigente, e vão às ruas pagar um almoço para famílias em penúria e até se desmancham em lágrimas ao verem aqueles famintos roendo uma coxa de frango e preferindo usar os dedos aos garfos. Disfarçam as unhas de rapina e começam a falar compulsivamente em aporofobia! E, entre eles, juram acreditar nas mesmas ficções e nos mesmos manuscritos apócrifos que cinco ou seis dementes dizem ter desenterrado no deserto! E adorar as mesmas pedras! Usar e confiar nos mesmos amuletos! Um horror! E o pior, é que se você, aí na sua vida de beócio, - como se diz - puxar o fio da meada, vai ser conduzido ao mesmo covil de sempre (de alto padrão, com os mesmos confrades cheios de anedotas para contar e que se auto-rotulam liberais, comunistas, fascistas e até monarquistas com a mesma teatralidade e desfaçatez). Se você puxar o fio você vai se dar conta de que tudo, absolutamente tudo ao seu redor e o que se prega e se promove por aí, no cotidiano, está contaminado pela baba e pela caca dessa gente. E que, mexer com um, é mexer com todos! Sim, montaram uma rede de proteção mútua mais ou menos como fazem os guapecas suburbanos. Confrades! Compadres! Cúmplices! Adictos da mesma beberagem! Fumantes do mesmo cachimbo! Clientes dos mesmos escritórios de advocacia! Uns declamam as poesias dos outros com tanta pantomima que um Schiller ou uma Florbela Espanca ficam no chinelo... Se mistificam! Juram nunca ter visto alguém tão sensível e tão humano, tão competente e tão maravilhoso como seu conterrâneo! 

Que reportagem! 

Que narrativa!

Que memória!

Que capacidade ímpar no trato com os negócios e no uso dos verbos e dos advérbios!

Deveria candidatar-se!

Que honra ser seu amigo e saber que somos da mesma região! E saber que fomos educados no mesmo aprisco e pelos mesmos pastores! 

E se defendem mutuamente, se glorificam. Sim, às vezes até parecem estar humilhando uns aos outros, (mas é só uma senha). Se elogiam; trocam Cartas de referências, se oferecem prêmios, medalhas, títulos, honoris-causa, bolsas de estudo, promoções. Uns convidam os outros para darem conferências em suas universidades e estes, logo depois, os convidam para escrever um editorial em seus jornais. Uma mão lava a outra é o postulado filosófico mais profundo que conhecem. Você alça meu filho para o generalato, que eu indico tua filha para a Corte Suprema e aquele teu afiliado, que ora está meio deprimido, empurro para o Patriarcado ecumênico de Bangladesh... E a coisa é tão delirante e tão caipira, que uns até indicam os outros ao Nobel... E quando se encontram só falam das notícias que viram nos jornais, que ouviram nos elevadores ou dos animadores de platéias e a conversação logo degenera em piadas, em infecções, em furúnculos, em trocas de receitas, em misérias de alcova, familiares e em fofocas... E vão obsessivamente juntos à igreja. Sabem rezar em latim, em italiano, em romeno, e até compartilham o mesmo rosário. Apesar de praticarem usura mesmo entre eles, as filhas de Uns só podem casar se for com os filhos dos Outros, e eles mesmos batizam e crismam os filhos engendrados naquela nuova famiglia... O que é, digamos, a superfície se juntando com a superfície! E dizer compadre é praticamente como dizer comparsa.  Enfim, o que todo mundo sabe, mas que ninguém quer encarar, é aquilo que denunciava Milorad Pavitch:

 "Só se pode ser um grande cientista ou um grande violinista quando se é apoiado por uma das grandes internacionais do nosso mundo. Internacional judaica, islâmica ou católica. Eu, como não pertenço a nenhuma, não estou em lugar nenhum. Entre meus dedos todos os peixes escorregaram, há muito tempo..."

É o que temos para esta sexta-feira, com um sol exuberante que desabrocha as flores amarelas das aboboreiras lá em baixo, elas que se mantêm absolutamente indiferentes a tudo isso que lhes digo.

 Convenhamos, este é apenas um breve retrato da miséria de todas as misérias!

Enquanto vou descascando umas batatas de inhame, penso na inscrição que vi rabiscada na tumba de alguém lá num cemitério parisiense: Se a metempsicose me conceder uma nova existência, quem quiser voltar a me encontrar que me procure lá entre os cães... (selvagens, evidentemente!)



2 comentários:

  1. Conheci meia duzia de pessoas autênticas na vida... o resto é exatamente isso aí que você descreveu.

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