Neste domingo acinzentado, vi o Mendigo K. atravessando a rua, travestido de fotógrafo. Levava a tiracolo uma antiga CANNON. Perguntei-lhe o que pretendia fotografar e ele, rindo, confessou-me que sua câmera nem sequer estava com filme. Que andava com ela apenas numa espécie de terapia pessoal. Lhe fazia bem. Lhe dava a ilusão de que a vida continuava. Que de um momento para outro poderia aparecer um marciano ou um espectro qualquer...
Depois, menos ironico, foi relatando sua relação amorosa com a câmera. Não sabia mais andar sem ela. Dormiam lado a lado. Haviam compartilhado momentos fascinantes e temerosos ao redor do mundo. Construído uma cumplicidade inabalável. Chegou a dizer até que as fotos haviam sido sempre apenas um pretexto, que não significavam nada. Que qualquer idiota poderia fazê-las. Que o importante era a câmera nas mãos, o seu peso e seu cheiro, o movimento das lentes, a escolha do objeto, a regulagem da luz, da velocidade, do ângulo, o clic... a ilusão... Algumas vezes - dizia - depois de passar um dia inteiro fotografando, jogava o filme numa lixeira, no Rio Amazonas, no Sena ou no Ganges... Instalar outro filme em seu interior era sempre um novo e grande gozo. Um dia a esqueceu num restaurante... atravessou a cidade de madrugada para ir resgata-la.
Enquanto ele ia falando e dando uma aula sobre sua velha câmera, passou a nosso lado uma moça extremamente sedutora e com tipo de quem recém havia saído do banho. Ele silenciou antes de fazer este breve comentário: Bazzo, observe - lembrando a Cesare Pavese - como toda mulher se orgulha secretamente de saber despertar o desejo nos homens, mas fica horrorizada ao imaginar que alguém possa conhecer essa sua capacidade...
Nos despedimos e vi, de longe, que simulava estar fotografando a turba de mendigos amontoada nas escadarias de um mercado. Era até cômico ver aqueles desgraçados, em farrapos, se arrumando os cabelos, limpando os olhos e, diante da câmera sem filme, fazendo poses estereotipadas da petite burguesia...
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