sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O Mendigo K e a solitudine da morte...


 
Nesta sexta-feira 20, já no final da tarde, encontrei o Mendigo K, na padaria de sempre onde, segundo ele, eventualmente presta pequenos serviços ao velho espanhol, dono do panefício, em troca de um ou outro sandwiche. 
Estava furioso, indignado e até envergonhado com o assassinato de um negro num mercado do RS.  Disse que ficou impressionado, não só com a morte do moço, mas com o grau de violência dos agressores. Observe a cena... Aqueles miseráveis agressores estavam completamente loucos!
Contou-me que hoje, por coincidência, foi ao enterro de um colega de profissão aqui na cidade. Não estava abalado e nem exageradamente impressionado. Pelo contrário, achou o ritual até cômico. Toda aquela mendigada reunida naquela liturgia escabrosa, cheiro de velas, gente que não se via há muito tempo, uns mais envelhecidos e arruinados do que os outros, chorando, trocando afagos, mentiras e bactérias. Uma festa. Chegou até a mencionar um livro de Durkheim, sobre o assunto. O que mais o impressionou -disse - foi o discurso do padre que encomendou a alma do morto para os braços de Deus. Mas esse cara, o defunto.., (me confidenciou, no meio de uma gargalhada) eu o conhecia bem de perto, era um porralouca completo, não sabia quem era sua mãe, nem seu pai e nem seus avós, Deus, para ele, nunca passou de uma ficção de sapateiros, não tinha alma nenhuma. Era um pobre fodido. A policia não podia vê-lo que já atiçava sobre ele seus cachorros... Seu niilismo era tão profundo que chegou a ser expulso de uma confraria  estrangeira e absolutamente laica... Fez um breve silêncio, deixando para o final do relato este lance, até meio romântico: e já quase no final das pompas fúnebres, - foi dizendo com voz emocionada - quando todos os mendigos, por sujestão do padre, passaram a jogar, com uma certa delicadeza, punhados de terra sobre o caixão (um caixão de quinta qualidade doado por uma funerária), apareceu uma moça, também mendiga, elegante, delicada, com duas tetas vibrantes e rígidas se insinuando sob os farrapos, que foi abrindo caminho e se aproximando da cova o suficiente para, com as sandálias enfiadas na terra fresca, lançar sobre o morto, primeiro um botão e em seguida a flor inteira de uma orquídea que, segundo ela mesma, havia roubado nos jardins de uma casa de três andares ao redor do cemitério.... A mendigada, com a morte em sursis, entrou em êxtase! Um deles, chegou a resmungar: caralho! dar a morte embutida na vida é uma traição imperdoável! E o padre, meio desconfiado, resmungou mais duas ou três bobagens póstumas e metafísicas (serenidade, paz, amor, esperança, coragem) e achou melhor abreviar a pantomima afirmando: Hoje mesmo nosso irmão... H? G? F?... estará entrando no Reino dos Céus... Nesse momento - segundo ele - os mendigos começaram a pigarrear, a olhar para os lados e a se dispersarem pela solitudine das outras covas...





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