quarta-feira, 25 de novembro de 2020

A cada novo crime de racismo, a leitura de Frantz Fanon se faz mais necessária... Quando é que se vai incluí-la nas escolas de Primeiro Grau?



"Não sou prisioneiro da história. Não  tenho que buscar nela o sentido de meu destino. Tenho que lembrar a todo momento que o verdadeiro salto consiste em introduzir a invenção na existência."

"Oh, meu corpo, 

faça de mim um homem que sempre questiona!"

F. F

PELE NEGRA/MÁSCARAS BRANCAS

Prefácio 

(por Lewis R. Gordon)

"Houve uma época em que um professor universitário norte-americano que tentasse abordar a obra de Frantz Fanon em um ambiente acadêmico estaria sujeito a perder o emprego. Naqueles anos turbulentos das décadas de 1960 e 1970, a situação era diferente na América do Sul. No Chile, por exemplo, as idéias de Fanon estavam sendo ensinadas nas salas de aula, e uma leitura cuidadosa da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire revela o quanto essa obra sofreu a influência de Fanon. Nos anos de 1990 era possível estudar Fanon e Freire em cursos como Teologia Política, Filosofia da Libertação e Pensamento Social e Político, e os estudiosos em todo o mundo estão agora compreendendo a relação entre Fanon e outros intelectuais brasileiros como Alberto Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento. Esta tradução de Peau noire, masques blancs não é, portanto, a primeira vez que Fanon será ouvido no mundo lusófono.

Fanon é mais conhecido como um revolucionário. Nascido na ilha da Martinica em 20 de julho de 1925, era um homem carismático de grande coragem e brilho, tendo lutado junto às forças de resistência no norte da África e na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, ocasião em que foi por duas vezes condecorado por bravura. Após completar seus estudos em psiquiatria e filosofia na França, dirigiu o Departamento de Psiquiatria do Hospital Blida-Joinville na Argélia (hoje renomeado como Hospital Frantz Fanon) e tornou-se membro da Frente de Libertação Nacional da Argélia, entrando, assim, na lista de cidadãos procurados pela polícia em todo o território francês. Todo o resto de sua vida foi dedicado a esta batalha, enfatizando sua importância na luta para transformar as vidas dos condenados pelas instituições coloniais e racistas do mundo moderno. Fanon morreu de pneumonia em 6 de dezembro de 1961 em Bethesda, estado de Maryland, nos Estados Unidos, enquanto buscava tratamento para sua leucemia.

As idéias de Fanon estimularam obras influentes no pensamento político e social, na teoria da literatura, nos estudos culturais e na filosofia. Existem hoje centros, clínicas e hospitais fundados ou renomeados em sua memória, e, graças à Associação Filosófica Caribenha, a comunidade acadêmica outorga o Prêmio Frantz Fanon por Obras Excepcionais do Pensamento Caribenho. Existem quatro livros impressos sob sua autoria. Cada um deles é um clássico, marcando presença no cânone filosófico da Diáspora Africana. O mais conhecido dentre eles é Les damnés de la terre (Os condenados da terra, 1961), publicado postumamente e escrito durante um período de dez semanas, quando o autor já sofria de leucemia.Peau noire, masques blancs (1952) e L’an V de la révolution algérienne(1959), subseqüentemente lançado como Sociologie d’une révolution: l’an V de la révolution algérienne, foram publicados em vida. Sua esposa, Josie (Marie-Josèphe Dublé) Fanon, editou, também postumamente, uma antologia de seus escritos intitulada Pour la révolution africaine (1964).

O título Les damnés de la terre (Os condenados da terra) foi retirado de uma adaptação feita pelo poeta haitiano Jacques Rouman, em seu livro de poemas Bois-d’Ébène (1945), do primeiro verso da Internacional (1871) de Eugène Edine Pottier. A conexão com a Internacional, mediada pelas lutas dos negros no Caribe e na África, e com Jean-Paul Sartre, o mais famoso intelectual vivo na época e autor do prefácio da obra, fizeram com que o livro lançasse uma sombra sobre os outros escritos de Fanon por quase vinte anos. Só na década de 80, quando os estudos pós-coloniais conquistaram uma posição sólida no ambiente acadêmico do Primeiro Mundo, leituras mais cuidadosas das outras obras de Fanon começaram a aparecer nas publicações. Foi nos anos 90, entretanto, com a ascensão da filosofia da Diáspora Africana, que a riqueza teórica do “pensamento inicial” de Fanon obteve reconhecimento.

É estranho falar em pensamento “inicial”, em contraposição a “posterior”, quando nos referimos a um homem que morreu aos 36 anos de idade. Há um ditado do povo akan (na região do Golfo da Guiné) que ensina que os sábios já são sábios de nascença, não se transformam em sábios, referindo-se assim às pessoas que já nascem “velhas”. A outra dimensão desta observação é que tais pessoas morrem jovens. Mesmo quando elas vivem quase um século, como no caso de W.E.B. Du Bois, suas idéias permanecem tão vivas que seus autores parecem estar perpetuamente jovens. Fanon é uma dessas pessoas. Seu trabalho não pode ser dividido em “inicial” e “posterior”, porque em cada um dos momentos ele permanece maduro e vivo.

Peau noire, masques blancs foi ao prelo quando Fanon tinha vinte e sete anos de idade. Foi escrito quando o autor tinha vinte e cinco. Inicialmente destinava-se a ser sua tese de doutorado em psiquiatria, recusada pelos membros da comissão julgadora. Eles preferiram uma abordagem “positivista” no estudo da psiquiatria, exigindo mais bases físicas para os fenômenos psicológicos. Fanon, então, escreveu sua teseTroubles mentaux et syndromes psychiatriques dans l’hérédo-dégénération- spino-cérébelleuse. Un cas de maladie de Friedreich avec délire de possession (Lyon, 1951).

Fanon não se arrependeu de ter escrito Peau noire, masques blancs após obter o doutorado, como se nota em suas reflexões na introdução:

Il y a trois ans que ce livre aurait dû être écrit... Mais alors les vérités nous brûlaient. Aujourd’hui elles peuvent être dites sans fièvre. Ces vérités-là n’ont pas besoin d’être jetées à la face des homes. Elles ne veulent pas enthousiasmer. Nous nous méfions de l’enthousiasme.

(Este livro deveria ter sido escrito há três anos... Mas então as verdades nos queimavam. Hoje elas podem ser ditas sem excitação. Essas verdades não precisam ser jogadas na cara dos homens. Elas não pretendem entusiasmar. Nós desconfiamos do entusiasmo.)

Seu irmão, Joby Fanon, relatou que os colegas de Fanon diziam que ele era “zangado por dentro e por fora”. Fanon admite, em sua introdução, que ele estava irritado demais para produzir o tipo de trabalho necessário, aquele que precisava ser feito, porque, como explica na primeira página,“il y a trop d’imbéciles sur cette terre.”

Ao ser publicada, esta obra clássica do pensamento sobre a Diáspora Africana, do pensamento psicológico, do pensamento da descolonização, da teoria das ciências humanas, da filosofia e da literatura caribenha foi recebida ao mesmo tempo com escândalo e com indiferença. O ambiente em que a publicação ocorreu estava dominado pelo mundo latino, tanto francófono, quanto hispanófono ou lusófono, ou seja, um mundo em que o racismo contra os negros era considerado uma doença peculiar das sociedades anglófonas, especialmente nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália e África do Sul. O retrato exibido neste livro revelava uma história diferente. Mostrava como a ideologia que ignorava a cor podia apoiar o racismo que negava. Com efeito, a exigência de ser indiferente à cor significava dar suporte a uma cor específica: o branco.

Embora fosse um fato perturbador para o típico leitor francês, a má-fé prevalecia através de uma rejeição não-empírica de sua suposta falta de validade: eles simplesmente diziam que o racismo não existia (apelo à evidência) recusando examinar a evidência.

A reação a Peau noire, masques blancs evidencia um problema com que se defronta a maioria dos estudiosos que examinam as questões relacionadas aos negros. Como W.E.B. Du Bois observou, em vez de estudar os problemas enfrentados pelas pessoas negras, as próprias pessoas passam a ser o problema. O resultado é, como Fanon subseqüentemente argumentou, uma exigência neurótica de que os estudos sobre o negro pudessem existir se houvesse acordo de que o negro não existe. O mesmo se aplica ao pensamento negro.

Fanon oferece uma crítica incisiva à negação do racismo contra o negro na França e em grande parte do mundo moderno. Embora outros escritores também tenham criticado tal comportamento, existem características singulares na análise de Fanon que fizeram com que seu trabalho sobrevivesse ao século XX. Primeiro, ele examina a denegação como algo sintomático em muitas pessoas negras. Segundo, rejeita a tese estrutural ao admitir a tese existencial da contingência e das exceções. Em outras palavras, Fanon não considera todo o mundo como sendo racista. Terceiro, examina o problema em seus níveis subterrâneos e, ao fazê-lo, revela seu significado para o estudo do homem. Quarto, aborda questões disciplinares e problemas de dominação no âmbito epistemológico, na esfera do conhecimento, radicalizando assim sua crítica. Quinto, oferece discussões originais sobre a dinâmica da liberdade e do reconhecimento no cerne das relações humanas. E, sexto, mas em último lugar, Fanon propõe um conjunto de mecanismos retóricos que implementam as muitas maneiras de abordar o problema.

O livro fala por si mesmo, mas também é um livro que fala através de si mesmo e contra si mesmo. Fanon literalmente põe em cheque a maneira como entendemos o mundo e também provoca um desconforto na nossa consciência que aguça ansiosamente o nosso senso crítico. Ler este livro é uma experiência desafiadora. Temos indiscutivelmente que nos valer de uma série variada de recursos intelectuais, aí incluindo recursos emocionais. Fanon ressalta inicialmente que racismo e colonialismo deveriam ser entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele. Isto significa, por exemplo, que os negros são construídos como negros. Em outras palavras, não haveria razão para as pessoas na África, na Austrália ou em outras áreas do Pacífico Sul pensarem sobre si mesmas em termos raciais. Para entender como tais construções ocorrem, o caminho lógico é examinar a linguagem, na medida em que é através dela que criamos e vivenciamos os significados. Na linguagem está a promessa do reconhecimento; dominar a linguagem, um certo idioma, é assumir a identidade da cultura. Esta promessa não se cumpre, todavia, quando vivenciada pelos negros. Mesmo quando o idioma é “dominado”, resulta a ilegitimidade. Muitos negros acreditam neste fracasso de legitimidade e declaram uma guerra maciça contra a negritude. Este racismo dos negros contra o negro é um exemplo da forma de narcisismo no qual os negros buscam a ilusão dos espelhos que oferecem um reflexo branco. Eles literalmente tentam olhar sem ver, ou ver apenas o que querem ver. Este narcisismo funciona em muitos níveis. Muitos brancos, por exemplo, investem nele, já que teoricamente preferem uma imagem de si mesmos como não racistas, embora na prática ajam freqüentemente de forma contrária.

A questão da língua também levanta outras questões mais radicais sobre seu papel na formação dos sujeitos humanos. Fanon argumentava que a colonização requer mais do que a subordinação material de um povo. Ela também fornece os meios pelos quais as pessoas são capazes de se expressarem e se entenderem. Ele identifica isso em termos radicais no cerne da linguagem e até nos métodos pelos quais as ciências são construídas. Trata-se do colonialismo epistemológico.

No começo da obra, Fanon anuncia que gostaria de transformar o negro em um ser de ação. Isto é importante por causa das barreiras à liberdade em ambientes racistas e coloniais. O problema torna-se mais agudo no capítulo sobre a psicopatologia, onde Fanon mostra que o mundo moderno não tem uma noção coerente sobre o que seja uma pessoa negra normal ou um adulto negro. O comportamento patológico é freqüentemente apresentado como “autenticamente” negro. Caso um negro ou uma negra não se comportem como tais, seriam considerados “inautênticos”, o que resulta em uma confirmação da patologia. O efeito disso era corriqueiro numa época em que, no mundo anglófono, negros adultos, homens e mulheres, eram chamados de “menino” (boy) ou “menina” (girl), mas ainda hoje influencia a cultura popular, na medida em que os adolescentes negros dominam a representação do negro. Fanon desafia a eficácia da terapia sem um modelo de normalidade. Se a psicologia para o negro resulta em uma psicologia do anormal, o negro não seria mais um ser de ação porque não teria para onde ir. Haveria uma relação niilista com o mundo social.

A maioria dos negros, inclusive na África, está obcecada em “fixar- se”. Esta obsessão, sugere a argumentação de Fanon, é resultado da impotência social. Não conseguindo exercer um impacto sobre o mundo social, eles se voltam para dentro de si mesmos. O principal problema desta atitude está na contradição em buscar a liberdade escondendo-se dela. A liberdade requer visibilidade, mas, para que isto aconteça, faz-se necessário um mundo de outros. Esquivar-se do mundo é uma ladeira escorregadia que, no final das contas, leva à perda de si. Até mesmo o auto-reconhecimento requer uma colocação sob o ponto de vista de um outro. Esta é uma verdade difícil de aceitar, e não é por acaso que Fanon enfrenta essa discussão após oferecer lágrimas no final do quinto capítulo. Ele está nos dizendo que nós devemos nos livrar de nossas barreiras, rumo a um corajoso engajamento com a realidade.

A liberdade requer um mundo de outros. Mas o que acontece quando os outros não nos oferecem reconhecimento? Um dos desafios instigantes de Fanon para o mundo moderno aparece aqui. Na maioria das discussões sobre racismo e colonialismo, há uma crítica da alteridade, da possibilidade de tornar-se o Outro. Fanon, entretanto, argumenta que o racismo força um grupo de pessoas a sair da relação dialética entre o Eu e o Outro, uma relação que é a base da vida ética. A conseqüência é que quase tudo é permitido contra tais pessoas, e, como a violenta história do racismo e da escravidão revela, tal licença é freqüentemente aceita com um zelo sádico. A luta contra o racismo anti-negro não é, portanto, contra ser o Outro. É uma luta para entrar na dialética do Eu e do Outro.

Fanon mostra também que tal luta acontece não apenas no âmbito das interações sociais, mas também em relação à razão e ao conhecimento. Nas palavras de Fanon:

La raison s’assurait la victoire sur tous les plans. Je réintégrai les assemblées. Mais je dus déchanter. La victoire jouait au chat et à la souris; elle me narguait. Comme disait l’autre, quand je suis là, elle n’y est pas, quand elle est là je n’y suis plus.

(A razão assegurava a vitória em todas as frentes. Eu era readmitido nas assembléias. Mas tive de perder as ilusões. A vitória brincava de gato e rato; ela zombava de mim. Como dizia o outro, quando estou lá, ela não está, quando ela está, não estou mais.)

Parafraseando-o, poderíamos dizer que, ao entrarmos na sala a razão sai. A razão, em outras palavras, não está sendo razoável.

Encontramos aqui a situação neurótica e a melancolia dos negros no mundo moderno. Reivindicar a razão, agarrá-la, seria exibir a não- razão, mesmo diante da razão sendo irracional. Aqui Fanon, como os negros, deve argumentar com a razão. Este desafio, isto é, ser de fato mais razoável do que se espera que os outros, especialmente os brancos, o sejam, situa o negro como sofrendo uma perda antes mesmo que ele comece a lutar pela existência. Isso sinaliza a melancolia da existência negra. Na verdade, espera-se que os negros não tenham sido negros a fim de legitimarem-se como negros, o que é uma tarefa impossível. Caso o negro deseje uma condição pré-moderna, ou pré-enegrecida, isto requereria uma contradição: um negro que não fosse negro. Os negros, em outras palavras, enfrentam o problema de sua relação com a razão e com o Eu enquanto indígenas do mundo moderno. Tal Eu sofre de melancolia, uma perda pela qual eles não podem ser o que ou quem são.

Como o leitor verá, tal dilema não é um convite ao pessimismo. Fanon nos lembra que parte da nossa luta envolve entender as dimensões críticas do ato de questionar, o que ele exemplifica encerrando o livro com uma oração. Dadas as muitas traduções e comentários sobre o seu trabalho, a grande quantidade de novos grupos de pensadores influenciados por suas reflexões, e as instituições, criadas em prol da dignidade humana, que trazem seu nome e seu legado, fica claro que suas indagações têm encontrado eco neste novo século".

"Os brancos racistas criaram a palavra Negro, os negros criaram a negritude..."



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